Caça aos extremistas
• Forças de segurança da França mobilizam 88 mil homens em operações de busca
Fernando Eichenberg - O Globo
PARIS - No dia seguinte ao atentado que vitimou 12 pessoas na sede do semanário "Charlie Hebdo", as forças de segurança da França se lançaram em um esforço sem limites na caça aos suspeitos. Pela primeira vez desde sua criação, os chamados "Grupos de Intervenção da Polícia Nacional" (GIGN) e as unidades de elite do "Busca, Assistência, Intervenção, Dissuasão" (RAID) passaram a atuar em conjunto em uma mesma operação. Os dispositivos de segurança foram igualmente reforçados para assegurar a proteção das cidades francesas. No país, um total de 88 mil homens foram mobilizados, sendo 9.650 deles em Paris.
O alerta de terrorismo, que havia sido elevado ao seu nível máximo na capital francesa no dia do ataque, foi estendido ontem para o Norte do país. O foco das atenções das forças de ordem passou para a região da Picardia, onde os irmãos Chérif, de 32 anos, e Saïd Kouachi, de 34, supostos autores do massacre, estariam foragidos. Os dois foram vistos pela última vez na manhã de ontem no posto de gasolina Relais de Moulins, em Villers-Cotterêts. Roubaram comida e combustível do estabelecimento, e foram reconhecidos pelo proprietário, que logo depois avisou a polícia. Segundo o dono do posto, a dupla viajava em um carro modelo Clio de cor cinza, no qual haviam fuzis de assalto Kalashnikov e um lança-foguetes. Até ontem à noite, carros de polícia, blindados e helicópteros circulavam intensamente pela região, entre os distritos de Aisne e Oisne, no encalço dos suspeitos.
Estado Islâmico e al-Qaeda elogiam terroristas
As autoridades descobriram a identidade dos irmãos graças a um amadorismo dos criminosos. A carteira de identidade de Saïd Kouachi foi deixada no primeiro carro usado pela dupla na fuga após o ataque, e depois localizado pela polícia. Além do documento, também foi encontrado no veículo uma sacola com roupas. Já no segundo carro abandonado pelos suspeitos, havia coquetéis molotov e bandeiras negras do Estado Islâmico (EI).
Ontem, o EI, que controla grande parte do Iraque e da Síria, elogiou, por meio de sua rádio, os autores do atentado: "Heróis jihadistas mataram uma dúzia de jornalistas e feriram mais de dez que trabalhavam no jornal "Charlie Hebdo", para vingar o profeta Maomé." Ainda ontem, o braço da al-Qaeda no Norte da África também exaltou os terroristas. A al-Qaeda no Magreb Islâmico (Aqim) classificou os assassinos como "cavaleiros da verdade".
Na França, o ministro do Interior do país, Bernard Cazeneuve, anunciou que Saïd Kouachi foi "oficialmente reconhecido", por meio de fotografias, como um dos atores no massacre. Até ontem, as autoridades não tinham provas para incriminar o terceiro suspeito indicado pela polícia, o jovem Hamyd Mourad, de 18 anos, que se entregou em uma delegacia na madrugada de quinta-feira, em Charleville-Mézères, a 230 quilômetros de Paris, após ver seu nome citado nas redes sociais. Mais de 90 pessoas foram interrogadas pela polícia, e nove estão detidas.
- Meticulosas investigações telefônicas e de internet continuam em curso - disse Cazeneuve.
Os dois suspeitos haviam sido objeto de vigilância, disse o ministro do Interior, mas "nenhum elemento incriminador suscetível de levar à abertura de um inquérito judicial foi encontrada".
O primeiro-ministro francês, Manuel Valls, alertou que, apesar da vigilância dos serviços de Inteligência sobre suspeitos, "não há risco zero":
- A polícia e a Justiça desmantelaram numerosos grupos, atrapalharam projetos de atentado. É uma prova de que agimos. Centenas de indivíduos são vigiados, dezenas de pessoas foram intimadas, dezenas de pessoas foram presas. Isto mostra a dificuldade que enfrentam nossos serviços: o número de indivíduos que representam uma ameaça.
A explosão de dois carros no início da noite de ontem, em Villejuif, ao sul de Paris, reavivou o pânico nos franceses. Eram cerca de 20h40m, quando um Renault Kangoo e um Fiat Scudo, estacionados há vários dias na concessionária Renault, na esquina das ruas Paul-Vaillan-Couturier e Jean-Baptiste-Baudin, explodiram, sem causar feridos. Os dois veículos pertenceriam ao proprietário da concessionária, Gabriel Horcholle, e estavam à venda. Segundo ele, a detonação veio do interior dos carros. Técnicos da polícia examinaram o local para saber a origem das explosões.
Antes, pela manhã, um segundo tiroteio já havia atemorizado os habitantes de Montrouge, no subúrbio sul de Paris. Por volta das 8h10m, na altura do número 101 da Rua Pierre Brossolette, após um incidente de trânsito normal, um homem vestindo um colete à prova de balas, desceu de um Clio de cor branca e começou a disparar com uma pistola automática, provocando a morte da policial municipal Clarissa Jean-Philippe, de 26 anos. Dois suspeitos foram presos pela polícia, mas o atirador continuava foragido. De acordo com o Ministério do Interior, o ataque não tem relação com o atentado ao "Charlie Hebdo".
Jornais europeus publicam editorial conjunto
Ontem, alguns dos principais jornais europeus, como "Le Monde", "The Guardian", "Süddeutsche Zeitung", "La Stampa", "Gazeta Wyborcza" e "El País" publicaram um editorial conjunto, intitulado "Seguiremos publicando", em homenagem aos jornalistas e cartunistas mortos. O texto lembra os profissionais como "ferrenhos defensores do pensamento livre" e classificam o atentado de "odioso". "Não é apenas um ataque à liberdade de imprensa e à liberdade de opinião. É, além disso, um ataque aos valores fundamentais de nossas sociedades democráticas europeias", conclui. Já a ONG britânica Index on Censorship, que defende a liberdade de expressão, organizou um protesto via internet: "Apelo a todos aqueles que acreditam no direito fundamental à liberdade de expressão a se juntarem na publicação de caricaturas ou capas de "Charlie Hebdo", em 8 de janeiro, às 14h GMT."
- O que aconteceu ontem é uma guerra contra contra a liberdade, e esta guerra nós devemos ganhar - afirmou Maryse Wolinsk, mulher do cartunista Georges Wolinski, um dos mais conhecidos da França, morto no atentado.
O escritor Michel Houllebecq, personagem da capa do último número publicado do "Charlie Hebdo" antes do atentado, e um dos autores franceses contemporâneos mais traduzidos no mundo, decidiu ontem cancelar a turnê de promoção de seu mais novo romance, "Submissão", abalado pela morte de seu amigo Bernard Maris, morto pelos terroristas. A trama do polêmico livro, lançado no mesmo dia do ataque, se passa na França do ano de 2022, na qual um candidato de um partido islâmico vence as eleições presidenciais numa disputa de segundo turno contra Marine Le Pen, líder do partido de extrema-direita Frete Nacional (FN). O personagem principal da história, um universitário, se converte a nova realidade francesa, em que as mulheres perdem seu espaço no mercado de trabalho e passam a andar cobertas por véus, a poligamia é permitida e a laicidade, esquecida. O romance tem provocado acalorados debates, pró e contra, sobretudo após os últimos acontecimentos no país.