O cientista político José Álvaro Moisés diz que Bolsonaro ajuda a acirrar clima de intolerância no Brasil e afirma que o regime democrático está sob ameaça
Por Roberta Paduan | Revista Veja, edição nº 2600
José Álvaro Moisés, 73 anos, especializou-se em democracia brasileira, assunto sobre o qual já escreveu três livros. Atualmente, o cientista político coordena o grupo de estudos sobre o tema no Núcleo de Pesquisa de Políticas Públicas da Universidade de São Paulo (USP), onde se formou e também fez doutorado. Um dos fundadores do PT, em 1980, ele se afastou definitivamente do partido durante o governo Itamar Franco. “Desde 1989, vinha percebendo que o PT não sabia lidar com a complexidade democrática. Mostrou isso em 1989, depois da queda do Muro de Berlim, quando deveria ter se afirmado como um partido de esquerda democrática, e não o fez.” Em entrevista a VEJA, Moisés falou sobre as singularidades da atual eleição, o significado do ataque ao presidenciável Jair Bolsonaro e por que acredita que a democracia, como ele a estudou, está sob ameaça — no Brasil e no mundo.
A seguir, sua entrevista.
• O atentado contra o candidato Jair Bolsonaro é um sinal de radicalização da política no Brasil?
Sim. Demonstra que estamos chegando a um grau de intolerância em que o uso da violência começa a ser encarado como “natural” na solução de conflitos políticos. As pessoas vêm reagindo de maneira raivosa diante das disputas, mesmo aquelas que não estão envolvidas diretamente na política. O autor do atentado diz ter decidido atacar Bolsonaro simplesmente por não aceitar a maneira como ele pensa. Espero estar errado, mas acredito que esse é mais um sinal da reintrodução da violência na política brasileira, o que é um retrocesso gravíssimo.
• Quais foram os outros sinais disso?
Assistimos há pouco tempo ao atentado contra a caravana do ex-presidente Lula no Paraná. Há seis meses, o Brasil presenciou, chocado, o assassinato da vereadora Marielle Franco, do PSOL, no Rio de Janeiro. Antes disso, nas eleições municipais de 2016, houve o assassinato de candidatos a vereador e a prefeito, particularmente na Baixada Fluminense. É um nível de tensão política que não existia desde o período militar — quando vivíamos a violência do Estado contra os opositores do regime, que resultou em luta armada. Agora, estamos em um clima quase generalizado de intolerância. O próprio Bolsonaro vai nessa direção quando diz que “é necessário metralhar a petralhada”. Quando Bolsonaro diz isso, não é mais uma crítica ideológica, política, ou contra a corrupção. É uma manifestação que induz o indivíduo a pensar que é aceitável usar a violência na disputa eleitoral.
• Dizer que Bolsonaro incita a violência não é uma forma de culpar a vítima?
De maneira alguma. Uma coisa não está relacionada à outra. Bolsonaro foi vítima de um atentado inaceitável. O autor quis eliminar o candidato simplesmente por não aceitar as suas ideias. Mas, independentemente de ter sido vítima, há o fato inconteste de que Bolsonaro incita a violência e não tem grande amor pelos princípios que constroem uma democracia, como o respeito pelas minorias, conforme deixou claro em mais de uma ocasião.
• Mas, apesar de suas falas, Bolsonaro nunca pegou em armas para agredir um adversário.
É verdade, mas ele persiste num discurso perigoso quando afirma que para resolver a situação do Brasil seria preciso terminar o serviço que a ditadura não fez, “fuzilando uns 30 000, a começar pelo ex-¬presidente Fernando Henrique Cardoso”, como já disse. Esse tipo de discurso pode não influenciar pessoas racionais, equilibradas, mas ajuda a dividir a sociedade entre “nós” e “eles”, a exemplo do que fez o PT. Bolsonaro também ajuda a polarizar a sociedade entre “esquerda” e “direita”, reproduzindo exatamente a cartilha petista. É um discurso que tem o potencial de estimular pessoas como o rapaz que atentou contra a vida dele. E esse tipo de conduta não deveria, em nenhuma hipótese, ser replicado por um homem público que quer liderar uma nação. Na democracia, o homem público tem responsabilidades, e uma delas é defender a solução pacífica dos conflitos políticos e sociais. Líderes democráticos são responsáveis, ou deveriam ser, pelo clima de entendimento entre os diferentes.
“Bolsonaro ajuda a polarizar a sociedade entre ‘esquerda e direita’, como fez o PT. Essa conduta não deveria ser replicada por um homem público que quer liderar uma nação”
• Bolsonaro põe em risco a democracia?
Ele é um exemplo de político com características de autocrata, quando analisamos suas posições à luz do diagnóstico de Steven Levitsky (refere-se ao cientista político americano autor do livro Como as Democracias Morrem), cuja tese principal é que, nos dias de hoje, as democracias são minadas não mais pela força de golpes militares, mas por meio de políticos eleitos pelo voto e que enfraquecem as instituições democráticas aos poucos. A pesquisa de Levitsky mostra que esse tipo de político costuma dar sinais de seus pendores autoritários antes mesmo de ser eleito. Algumas de suas características são incentivar a violência, contestar a legitimidade dos adversários e atacar as liberdades civis, por exemplo. Bolsonaro faz precisamente isso ao desmerecer minorias e pôr em dúvida o processo eleitoral quando questiona o funcionamento da urna eletrônica, como quem diz que só perderá a eleição se houver fraude eleitoral.
• Por que esse tipo de discurso, antes intolerável na sociedade brasileira, vem ganhando mais força?
Porque vem crescendo no brasileiro a sensação de que ele próprio é irrelevante para o funcionamento da democracia. Essa sensação produz um sentimento de desprezo pelo sistema, e pode levar à percepção de que pouco importa se ele for substituído por alternativas autoritárias. A campanha das Diretas Já foi um ponto alto no engajamento pela democracia. Ela acabou associada ao direito não só de votar, mas também de participar, de ser ouvido. Hoje, essa sensação de participação se perdeu em razão de muitos fatores. Atualmente, quase 90% dos entrevistados de pesquisas de opinião declaram não se sentir representados por nenhum partido político. Dos 147 milhões de eleitores, apenas 17 milhões são filiados. Além disso, metade dos eleitores afirmou que a democracia pode funcionar sem os partidos e sem o Congresso Nacional. Essa aversão aos políticos já havia sido sugerida em 2013, nas Jornadas de Junho. Mas Brasília permaneceu insensível, o que só faz ¬aumentar a distância entre governados e governantes.