Para José Murilo de Carvalho, muita coisa ruim pode ser feita dentro dos limites da Constituição
Mario Cesar Carvalho | Folha de S. Paulo
SÃO PAULO - É um teste de fogo para a democracia brasileira a eleição do deputado federal e capitão reformado Jair Bolsonaro (PSL) para a Presidência da República.
A opinião é de José Murilo de Carvalho, 79, um dos mais importantes historiadores do país, autor de um clássico sobre a nascente República ("Os Bestializados") e de uma obra que se tornou referência no estudo da relação dos militares com a política ("Forças Armadas e Política no Brasil").
Carvalho acha que o maior risco não é um golpe ou autogolpe, para o qual, segundo ele, faltaria o apoio das Forças Armadas. "O problema é que a Constituição de 1988 é muito generosa em relação à interferência militar na política", afirmou à Folha.
O artigo 142 da Constituição, segundo ele, permite que militares sejam chamados para garantir ameaças aos poderes constitucionais e à lei e à ordem. "Muita coisa ruim pode ser feita dentro desses limites sem caracterizar golpe", diz.
Carvalho, professor emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro e membro da Academia Brasileira de Letras desde 2004, prevê anos difíceis pela frente. "Haverá tentativas de introduzir, por lei ou decreto, medidas que representem retrocesso democrático. A principal tarefa da oposição será combater sem tréguas essas tentativas".
Se as instituições chegarem intactas em 2022, "já será um ganho", na opinião dele.
O historiador, que também é cientista político, diz que só por uma "enorme burrice" Bolsonaro manteria o discurso ofensivo e preconceituoso que caracterizou seus mandatos como parlamentar e sua campanha à Presidência. "Imagino que haverá pessoas a seu redor, inclusive generais, que o farão mudar de retórica. Caso contrário, ele estaria cavando a própria sepultura política".
• Como explicar a chegada de Jair Bolsonaro, um deputado do baixo clero, à Presidência da República?
Precisaria de um tratado para responder a essa pergunta. Não tenho nada de diferente do coquetel que tem sido apresentado: falta de confiança nos políticos e na política desde 2013, crise econômica, desgaste do longo governo do PT, Lava Jato, violência, reação a mudanças que afetaram os conceitos e valores tradicionais a respeito de família e gênero.
• A eleição de Jair Bolsonaro é uma ameaça à democracia? Há risco de um golpe?
É um teste de fogo para nossa democracia. A haver golpe seria o que o general Mourão [vice-presidente eleito] chamou de autogolpe, isto é, dado pelo próprio governo, como em 1955 e 1969. Não acredito que vá haver o indispensável apoio militar para isso. O problema é que a Constituição de 1988 é muito generosa em relação à interferência militar na política. O artigo 142 dá às Forças Armadas o papel de garantidoras dos poderes constitucionais e, a pedido de um desses, de garantidoras da lei e da ordem. Muita coisa ruim pode ser feita dentro desses limites sem caracterizar golpe.