domingo, 18 de novembro de 2018

✽ Luiz Sérgio Henriques: Política e valores

- O Estado de S. Paulo

Com o bloco vitorioso em 28 de outubro, difícil exagerar as dificuldades que teremos à frente

Buscar clareza e coerência em planos, projetos e ações pode ser algo muito difícil ou impossível em meio a este mal-estar generalizado contra o “sistema”, quando mapas de voo não existem ou são trocados e retocados ao sabor das circunstâncias, como vimos com os programas na última campanha presidencial. Personagens antes evidentemente postos à margem passam a protagonistas, figuras da tradição soletram apressadamente o novo vocabulário “antiestablishment”, tendências e visões de mundo se misturam sem muita lógica e fazem nascer um mundo mais imprevisível do que o habitual.

Examinemos algumas referências notórias do bloco vitorioso em 28 de outubro. O intelectual ultraliberal, ele próprio um emblema da reforma que se quer imprimir à economia, promete-nos uma “sociedade aberta”, que não se sabe como conciliar com a retórica repressiva do líder político que avaliza perante os “mercados”. Esse mesmo líder, de formação corporativa e, à sua maneira, laica, escora-se em apoiadores religiosos que não raro parecem querer guiar-se por uma noção arcaica de “poder direto”, ou quase isso, na pretensão de moldar e controlar, por via legislativa, costumes e comportamentos que países livres delegam ao arbítrio dos indivíduos. E não por acaso uma anti-ideologia de gênero, tão confusa e mal explicada quanto sua antípoda, ameaça trazer prejuízos generalizados para os direitos civis.

Mas não é só. Um anticomunismo extravagante pretende servir de cimento ao novo bloco: uma dessas ideias flagrantemente fora de lugar, incapazes de criar um sistema de orientação para a sociedade e o próprio Estado, uma vez que temos os pés e a cabeça projetados muito além da guerra fria e da contraposição entre ordens antagônicas que ela supunha. Não se pode imaginar, por exemplo, que uma anacrônica Cuba nos ameace de algum modo, como modelo de transformação ou de organização social, ou que a verdadeira revolução comunista do século 20 tenha ocorrido em 1949, e não em 1917, de tal forma que devêssemos agora desafiar o dragão chinês, quando antes tínhamos de nos alinhar automaticamente contra o bolchevismo russo.

Esse emaranhado de ideias e situações, hoje envolto numa pesada capa de chumbo ideológica, tem dado corpo a debates infindáveis e muito pouco produtivos no plano da chamada guerra de culturas ou de valores. Em geral, o palco é o fornecido pelas redes, o esquematismo é a regra, os contrastes se extremam até o ponto da caricatura e da demonização. E quando entramos com ingenuidade nesse conflito tal como ele nos é dado, terminamos por nos vestir com apetrechos de outrora, como se “fascistas” e “comunistas” estivessem fadados a se engalfinhar indefinidamente nas ruas virtuais e – pior ainda – não virtuais, fazendo confluir potencialmente a violência simbólica e a física.

✽ Celso Lafer: A política externa e seus desafios

- O Estado de S. Paulo

Cabe ao Brasil se orientar na diplomacia pelos princípios consagrados na Carta

Discuti neste espaço em 19/2 a relevância da política externa como política pública. Sublinhei que ela tem como nota identificadora avaliar a abrangência das necessidades internas do País e ponderar quais as possibilidades externas de torná-las efetivas. Pontuei que a conversão de necessidades em possibilidades requer um apropriado juízo diplomático que leve em conta os ativos e as especificidades do País e saiba orientar-se num mundo com as características do atual, dentro do qual se dá a inserção internacional do Brasil. Vale a pena retomar a discussão nesta antevéspera da posse do presidente Bolsonaro.

Destaco inicialmente que o novo governo partirá de um meritório reposicionamento da política externa empreendido no governo Temer pelos chanceleres José Serra e Aloysio Nunes Ferreira, que se dedicaram a conduzi-la como política de Estado. Deixaram de lado, num movimento que o resultado das eleições endossou, uma preponderante política de governo, inspirada pela visão circunscrita de um partido e seus interesses.

Aponto, por exemplo, o resgate da válida vocação original do Mercosul como expressão de regionalismo aberto, empenhado no livre-comércio, devidamente escoimado das distorções provenientes das preferências político-ideológicas.

A tarefa de damage control proveniente da erosão do soft power do País deverá ser uma faceta da condução da política externa. Trata-se de um dado das percepções, repercutidas na mídia internacional, que resultam de manifestações do presidente na campanha eleitoral em matéria de direitos humanos e convivência democrática. Para a erosão acima mencionada tem também contribuído a ideológica irradiação externa em circuitos de esquerda de uma autocentrada “narrativa” petista.

A agenda diplomática do próximo governo lidará, respaldada pela qualificada competência dos quadros do Itamaraty, com alguns significativos campos de atuação da política externa de um país. 

Passo a comentá-los na sua abrangência, lembrando, como dizia Hannah Arendt, que somos do mundo, e não apenas estamos no mundo.

Eliane Cantanhêde: Sobre heróis e vilões

- O Estado de S.Paulo

Esquerda e direita veem o fim do mundo, mas o Brasil precisa de pés no chão e crescimento

A esquerda insana imagina uma imensa articulação internacional, quiçá intergaláctica, para as forças pró-finanças e anticivilização dominarem os países e trucidarem os povos, inclusive o Brasil e os brasileiros. E a direita delirante vê globalistas, China maoísta, esquerda internacional, ambientalistas, abortistas, corintianos, flamenguistas, marcianos e jupiterianos destruindo a civilização ocidental cristã. O ponto em comum entre os dois polos é o horror à globalização, um processo sem volta. Uma nova guerra mundial? Ou o fim do mundo?

Tudo grandiloquente, eletrizante, como as histórias em quadrinhos do grande Stan Lee, em que heróis com poderes sobrenaturais enfrentam vilões ambiciosos e desalmados que ameaçam a humanidade. Muita ação, cor, fantasia, capas, máscaras e símbolos que saem de escritos e pranchetas e invadem não países, mas revistas, livros, telas e a imaginação de milhões pelo mundo afora. A ficção diverte, mas as teorias conspiratórias e fundamentalistas ameaçam.

Um mesmo personagem faz furor na história em quadrinhos que se mistura com a realidade do Brasil, mas num duplo papel. Ele é excêntrico, grandalhão, usa um topete curioso e cabelos cor de laranja e tem um harém à sua disposição. “Dono” da maior potência política, econômica e bélica, ele faz e fala o que quer. Para a esquerda, ele é o grande vilão a ameaçar a Terra. Para a direita, o único herói, ou Deus, capaz de salvar o Ocidente e os valores cristãos que vêm sendo devorados pela esquerda.

Enquanto a esquerda delira e a direita vai conferindo um arcabouço teórico grandioso para o bolsonarismo, nós, leigos, meros mortais, estamos mais preocupados com questões bem mais urgentes do que invasões extraterrestres, heróis que voam, escalam paredes, dominam oceanos, correm na velocidade da luz e ameaçam o planeta.

Lourival Sant'Anna: A onda antiglobalismo

- O Estado de S.Paulo

A escolha do futuro chanceler Ernesto Araújo trouxe à tona no Brasil a discussão sobre o significado do antiglobalismo, por ele defendido

A escolha do futuro chanceler Ernesto Araújo trouxe à tona no Brasil a discussão sobre o significado do antiglobalismo, por ele defendido. Sob a influência dessa doutrina, o presidente Donald Trump rompeu ou reviu acordos multilaterais firmados pelos EUA e os britânicos decidiram sair da União Europeia (UE).

Os antiglobalistas creem que os valores ocidentais e cristãos, assim como as culturas e identidades nacionais, estão ameaçados pelo livre trânsito de pessoas, produtos, serviços, capitais, ideias e costumes, chamado de globalização.

Os antiglobalistas evitam se colocar diretamente contra a globalização, associada ao livre-comércio e ao capitalismo, para não causar rejeição em parte dos conservadores que pretendem atrair.

Daí a ênfase do antiglobalismo na cultura, na identidade, na religião e na moral. Em vez de falar em comércio, eles preferem o tema da imigração; em vez de integração, soberania. Tanto no plano conceitual quanto no prático, porém, é muito frágil essa dissociação entre “globalismo” e “globalização”.

O livre trânsito de pessoas é um desdobramento lógico do livre-comércio. A mão de obra é um componente da produção, tanto quanto matérias-primas, insumos, peças, máquinas e capital. Foi por isso que a União Europeia criou a Área Schengen, que eliminou os controles de fronteiras para pessoas e mercadorias entre 22 países do bloco e outros 6, que estão a ele associados.

O principal argumento em favor do Brexit no plebiscito de 2016 foi o suposto descontrole da entrada de imigrantes vindos do continente europeu para as ilhas britânicas. Além disso, havia a queixa de que os “eurocratas”, não eleitos pelos britânicos, tomavam decisões que interferiam no seu dia a dia. E que os contribuintes britânicos pagavam mais do que lhes era entregue pela UE.

Affosnso Celso Pastore *: O bode e as reformas

- O Estado de S.Paulo

Há um silêncio ensurdecedor sobre os investimentos em infraestrutura

A vitória de Bolsonaro provocou uma valorização dos ativos financeiros. Desapareceu o risco de um novo governo do PT ou, no humor cínico do mercado financeiro, o resultado da eleição “tirou o bode da casa”. Porém, enquanto esteve na casa, o bode estragou o mobiliário, danificou a hidráulica e a instalação elétrica, evitando-se o caos somente porque, na tentativa de construir uma “ponte para o futuro”, um “administrador substituto” realizou reparos. No entanto, sabemos que para tornar a casa habitável, não basta “tirar o bode”: é preciso que o “novo administrador” promova reformas estruturais.

Com a indicação de Sérgio Moro para o Ministério da Justiça, Bolsonaro deu um forte atestado de respeito às leis, reduzindo os decibéis da narrativa da esquerda radical que o acusava de fascista. Deu também um passo para solidificar as instituições que combatem a corrupção sistêmica. Porém, o sucesso do novo governo não depende apenas do respeito à Constituição e às leis, e sim de sua capacidade de recolocar o País na rota do crescimento econômico. Quais são as perspectivas?

Primeiro, a situação fiscal é insustentável, com mais de 50% dos gastos primários – a Previdência – fora da regra de congelamento dos gastos reais fixada na Constituição. Sem uma robusta reforma da Previdência, o teto de gastos não se sustenta. Se fosse aprovada a proposta original de Marcelo Caetano, a economia, em 10 anos, em relação ao sistema atual, seria de R$ 850 bilhões, quase o dobro da gerada pela versão desidratada hoje no Congresso. As características da proposta de Arminio Fraga e Paulo Tafner são muito superiores a essas duas, e levam a uma economia acima de R$1,2 trilhão. Apesar de muito superior, contudo, ainda é insuficiente para truncar o crescimento da dívida, atestando a dificuldade da tarefa. Com o respaldo de mais de 50 milhões de votos, o governo deveria lutar por essa reforma, e não por outras politicamente menos custosas e defendidas por corporações que não querem perder privilégios. É estranho o silêncio do governo a respeito dessa proposta, mas, se tiver coragem política, Bolsonaro poderá, com ela, começar a mudar a feição do País.

Merval Pereira: #Elanão

- O Globo

O empoderamento feminino não anda fazendo bem aos machos-alfa dessa parte de baixo do Equador

O empoderamento feminino não anda fazendo bem aos machos-alfa dessa parte de baixo do Equador, onde não existe pecado, segundo relato do holandês Barlaeus no século XVII. Nos últimos dias tivemos exemplos, uns menos, outros mais degradantes desse comportamento machista, vindos de personalidades que supostamente fazem parte de nossa elite.

Desde o famoso apresentador de televisão que assediou a cantora ao vivo e a cores, passando pelo ex-presidente da República que sugeriu que a Juíza que o interrogava, por ser mulher, deveria entender mais de cozinha do que ele. Sem contar com o presidente eleito do maior país da América do Sul, que não cansa de parecer homofóbico e misógino.

Estamos falando do Brasil dos tempos atuais, em que a campanha #Mexeu com ela mexeu comigo, decorrência da americana #meToo, que alcançou centenas de celebridades e subcelebridades hollywoodianas por assédio sexual ou moral, conseguiu tirar de cena um famoso ator global, mas não impedir a repetição de cenas de machismo explícito.

A semana foi marcada pela cena constrangedora de Silvio Santos declarando-se “excitado” com a roupa de cantora Claudia Leite, na frente de milhões de pessoas e da própria mulher e filhas na platéia de seu programa de auditório. Assédio duplo, sexual e moral, já que ele é o dono do programa e da televisão.

As reações vieram, até mesmo da cantora que, se no dia o máximo que conseguiu dizer é que seu namorado não ia gostar, no seguinte tomou coragem para postar um protesto no Facebook. O comportamento machista ou homofóbico continuou durante os dias seguintes com líderes políticos de peso, o ex-presidente Lula e o presidente eleito Jair Bolsonaro.

Bernardo Mello Franco: 2016 ajuda a entender 2018

- O Globo

Estreia nesta semana o 3º documentário sobre o impeachment. A queda de Dilma já parece pré-história, mas o filme ajuda a entender como Bolsonaro se elegeu

Estreia na quinta-feira “Excelentíssimos”, o terceiro documentário sobre o impeachment de Dilma Rousseff. A derrubada da ex-presidente já parece pré-história, mas o filme mantém interesse pelo que viria a seguir. As cenas captadas em 2016 ajudam a entender o processo que desembocou na vitória de um candidato da direita radical em 2018.

O diretor Douglas Duarte chegou a Brasília com o objetivo de mostrar os bastidores do Congresso. A crise o convenceu a abandonar o roteiro original. O foco passou a ser a articulação para varrer o PT e a esquerda do poder.

Com a promessa de que o filme só seria exibido depois da votação, os deputados adotam uma sinceridade incomum em conversas gravadas. “Eu vou ser franco com você”, diz o emedebista Carlos Marun. “Fosse o que dissessem lá, eu votaria a favor do impeachment. Se dissessem lá que ela roubou um picolé, eu votaria”, admite.

No discurso oficial, a razão do processo de impeachment eram as pedaladas fiscais. Mais tarde, Marun seria recompensado com o cargo de ministro do governo Michel Temer.

Em outra sequência, o documentário acompanha uma reunião fechada em que líderes partidários contam votos para derrubar a presidente. Mendonça Filho, do DEM, interrompe a conversa para saber se os microfones estão abertos.

Míriam Leitão: Novo governo e o tempo do mercado

- O Globo

Bom humor do mercado financeiro com o governo Bolsonaro pode mudar se não for aprovada uma reforma da Previdência consistente

O governo Jair Bolsonaro terá menos tempo do que se pensava da confiança do mercado. Se não for feita uma reforma da Previdência consistente, o entusiasmo inicial dos investidores locais pode mudar de direção. Os estrangeiros sempre estiveram mais céticos em relação à aposta de que o novo governo fará um ajuste fiscal robusto e uma importante redução do tamanho do Estado. Isso é o que se pode ouvir em conversas com analistas de bancos e economistas.

Ninguém acha que reformar o sistema de pensões e aposentadorias seja a panaceia, mas o que os analistas dizem é que sem isso não há como se ter um programa realmente sustentável de redução dos gastos públicos em nenhum dos três níveis de governo.

— E se for uma reforminha não conseguirá enganar ninguém que sabe fazer contas — diz um economista de prestígio no mercado brasileiro.

Na verdade, entre os economistas que trabalham no setor financeiro há entusiasmo entre os mais jovens, que foram os primeiros a acreditar que ele representaria uma guinada liberal no governo, a despeito de, em toda a sua vida política, ter dado sustentação ao nacional-estatismo. Os mais sêniors nos bancos e consultorias têm visão mais completa do cenário e acham que tem havido excessivos curtos-circuitos na equipe do novo governo e há muitas contradições. A avaliação de um economista com muita experiência em setor público é que: “eles se prepararam para uma campanha e não para um governo”. Isso é que explica cenas explícitas e diárias de improviso. Os integrantes da futura administração têm que passar por um rápido período de aprendizado e, por isso, o resultado é incerto.

Ascânio Seleme: Crimes de ódio, lá e aqui

- O Globo

Os números são impressionantes. Os crimes de ódios relatados nos Estados Unidos cresceram 17% de 2016 para cá, e vêm aumentando de maneira regular e consistente desde a eleição do presidente Donald Trump. No ano passado, 7.100 crimes desta natureza foram registrados, sendo que três em cada quatro ocorreram por questões raciais ou étnicas. Religião e orientação sexual são as outras duas motivações mais importantes de crimes de ódio, segundo relatório do FBI publicado na quarta-feira pelo jornal The New York Times.

Os dados divulgados estão com certeza subestimados. Apenas 12,6% das delegacias e outras instituições policiais relataram ao FBI crimes de ódios em suas jurisdições. Os departamentos de polícia de Miami e Las Vegas, por exemplo, não notificaram um caso sequer em 2017, o que é claramente impossível. Por outro lado, crimes que ficam apenas no campo da agressão verbal ou física muitas vezes não são sequer denunciados pelos agredidos, que não acreditam que a sua notificação vá resolver alguma coisa.

O elemento que causou o aumento expressivo nesse tipo de crime foi a crescente tensão política no país desde a posse de Trump. Nenhuma dúvida sobre a enorme mudança de clima, em se comparando o governo do presidente Barack Obama com o do seu sucessor. Os Estados Unidos pularam de um estado de espírito tranquilo e quase passivo, sob Obama, para um de permanente excitação, com Trump. O exemplo americano pode ser muito útil no Brasil, que, em 45 dias, inaugura novo governo que, sob todos os aspectos, quer se parecer com o de Donald Trump.

Um chefe de estado que transpira intolerância, como é o caso do presidente americano, contamina todo o tecido social. Se o presidente pode ser agressivo e destilar ódio, por que o cidadão não pode? A pergunta é ridícula, mas ela é sistematicamente feita nos Estados Unidos por pessoas suscetíveis, de perfil psicológico frágil e limitadas cognitivamente. E as respostas aparecem nesses dados coletados pelo FBI.

Elio Gaspari: A reunião da irresponsabilidade fiscal

- O Globo

Para quem temia que depois da eleição viesse mais do mesmo, ressurge a maldição do príncipe de Salinas no romance “O Leopardo”: “Depois será diferente, porém pior”

No mesmo dia em que anunciou um “momento de regeneração”, Jair Bolsonaro foi a uma esquisita reunião de governadores eleitos copatrocinada pelo paulista João Doria. Nada havia sido combinado com sua equipe. O que muitos governadores querem é suspender as exigências e os efeitos da Lei da Responsabilidade Fiscal. Uma legítima superpedalada, capaz de superar os çábios da “contabilidade criativa” que custou a presidência a Dilma Rousseff.

Como o presidente eleito ainda não desceu do palanque, fez brincadeira com a sua presença no conclave: “O que eles querem, eu também quero, dinheiro”. Antes fosse, o que eles querem é atropelar a lei que obriga os Estados a limitar em 60% o comprometimento das receitas com o pagamento de despesas de pessoal

O Rio está com um comprometimento de 81%. Minas Gerais, 79% e o Rio Grande do Sul, 78%. Isso para não se falar no campeão, o Rio Grande do Norte, com 88%. Ao todo, são 17 os Estados que ofenderam a LRF, mas nove governos comportaram-se como deviam.

Os governadores querem mais dez anos de prazo para cumprir uma lei de 2000 e prometem um conjunto de medidas para buscar o equilíbrio financeiro. Velha conversa, como a do Supremo Tribunal Federal que quer o aumento para já, prometendo o fim dos penduricalhos dos juízes para depois. Ademais, dentro de dez anos os governadores serão outros.

Bolsonaro deveria ter desarmado a cilada da reunião, expondo a irracionalidade do pleito. Doria, que governará o Estado que exibe melhor desempenho (54% de comprometimento, graças a Geraldo Alckmin), poderia ter evitado a ribalta.

Para quem temia que depois da eleição viesse mais do mesmo, ressurge a maldição do príncipe de Salinas no romance “O Leopardo”: “Depois será diferente, porém pior”.

Luiz Carlos Azedo: O bom e o ruim

Correio Braziliense

“O Brasil vive sob o signo do maniqueísmo. Entretanto, os grandes problemas não decorrem das ideologias, mas da realidade objetiva do país”

Maniqueu, filósofo cristão do século 3, também conhecido como Manes ou Mani, dividia o mundo simplesmente entre Bom, ou Deus, e Mau, ou o Diabo. Ganhou influência no mundo greco-romano a partir das antigas Babilônia e Pérsia, sincretizando ideias do hinduísmo, do budismo, do judaísmo e do cristianismo, depois de viajar pela Índia, China e Tibete. Foi perseguido pelos sacerdotes do zoroastrismo, os Magos, durante o reinado de Vararanes 1º (274–277). Preso e condenado como herege, foi esfolado vivo: sua carne foi atirada ao fogo e a pele, crucificada em praça pública, na cidade de Bendosabora, no atual Iraque.

Para Maniqueu, a luz e as trevas originaram o mundo material, essencialmente mau. Por isso, os “pais da Justiça” vieram à Terra redimir os homens, mas a mensagem deles foi corrompida. Maniqueu pretendeu completar a missão deles, como o salvador prometido por Cristo, que detinha os segredos para a purificação da luz, destinados apenas àqueles que tinham uma vida ascética. No dualismo maniqueísta, a matéria é intrinsecamente má, e o espírito, intrinsecamente bom. Com o tempo, maniqueísta passou a ser um adjetivo para toda doutrina fundada nos dois princípios opostos do bem e do mal.

Seu mais famoso discípulo foi Agostinho de Hipona, Santo Agostinho, que fundou as bases da filosofia adotada pela Igreja Católica, depois de romper com o maniqueísmo. Até então, os filósofos cristãos defendiam que o fundamento e a essência da vida deveriam ser a fé. A partir dela, os homens tomariam decisões importantes em suas vidas e realizariam os julgamentos morais. A razão regia decisões menores e rotineiras da vida cotidiana. Profundo conhecedor de diversas religiões, porém, Agostinho buscou na Razão a justificativa para a fé. Foi além da própria fé para levar os descrentes a considerá-la. Por exemplo, defendeu o livre-arbítrio como uma graça divina. De fato, liberdade não combina com maniqueísmo.

Janio de Freitas: Sem riscos de decepção

- Folha de S. Paulo

Pelos primeiros passos, já se vê que Bolsonaro faz o que se pode esperar dele

O governo Bolsonaro já começou. Para o mundo, foi assim reconhecido quando o Egito cancelou a visita de um ministro brasileiro, não em represália ao governo Temer, mas à hostilidade de Bolsonaro ao mundo muçulmano.

No plano interno, a ruptura do acordo com Cuba e com a Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), para médicos cubanos suprirem a carência médica pelo Brasil afora, não foi motivada pelo governo Temer. Deu-se por exigências de Bolsonaro contrárias à continuidade do convênio e hostis a Cuba e à Opas.

Por esses primeiros passos de governante, já se vê que Bolsonaro tem uma qualidade: não decepciona. Faz o que se pode esperar dele. No caso, para autenticidade ainda maior, foi uma providência que castiga "o lombo" (no dizer de Bolsonaro) dos mais necessitados.

São os 24 milhões que contam com médicos cubanos. Entre eles, as populações de numerosos municípios que dispuseram de um médico pela primeira vez. Não o terão por muito tempo.

Se há em torno de 2.000 vagas no Mais Médicos, que jamais conseguiu contratar o esperado número de brasileiros, é vazio o anúncio de concurso para 9.000 substitutos dos médicos cubanos.

A única possibilidade estaria em aumento substancial dos quase R$ 12 mil de salário, o que não entra no orçamento de 2019 nem na cabeça de Paulo Guedes.

Vinicius Torres Freire: Névoa forte um mês antes da posse

- Folha de S. Paulo

Economia pode emperrar com planos genéricos e ambiciosos demais de reformas

Faz três semanas, o país está entretido com a remontagem das peças do Lego Ministério do presidente eleito, Jair Bolsonaro. De seu plano de ação, sabe-se apenas de reformas ainda indistintas em uma névoa de ambições grandes. No entanto, afora a semana de festas, falta um mês para a posse.

Em parte, o jogo da transição interessa, pois se trata de definição de grupos de poder, de alianças sociais (ou da falta absoluta delas) ou de preliminares de reformas graves na administração e nas políticas públicas.

Em parte, se trata apenas de fetichismo, da tentativa de chegar ao corte prometido em campanha, a um número cabalístico e populista de ministérios, o que na imaginação popularesca passa como “corte na carne”.

Pode bem ser que o governo tenha planos secretos. Mas a gravidade anormal da situação econômica requer urgência em certas decisões.

O governo de transição de Bolsonaro pretendeu por um momento votar a reforma da Previdência de Michel Temer, que pouco antes chamara de “porcaria”. Dada a indiferença do Congresso, cogitou aprovar pedaços apenas do projeto temeriano lipoaspirado.

Clóvis Rossi: O Brasil a caminho do rebaixamento

- Folha de S. Paulo

Simpatia do novo chanceler é pela terceira divisão

Desde a redemocratização e, principalmente, desde a estabilização da economia, o Brasil passou a ser convidado para a mesa dos grandes do mundo. Faz bem para a autoestima e pode ser útil diplomática, comercial e financeiramente.

Agora, se o novo chanceler, Ernesto Araújo, levar a cabo as ideias estapafúrdias que destila em seu blog e em ensaio para Cadernos de Política Externa, o Brasil ficará relegado à mesa dos marginais da política.

Um pouco de memória: durante a ditadura, não era de bom tom para as democracias ocidentais serem vistas abraçando o regime militar. Podiam, claro, fazer negócios, receber os ditadores, como fazem com tantos outros, mas havia sempre um certo pudor.

Com a democracia, a super-inflação fazia com que americanos e europeus não conseguissem entender como o Brasil funcionava. Por extensão, tinham dificuldades para abraçar esse país tão grande e tão disfuncional.

Estabilizada a economia, Fernando Henrique Cardoso passou a ser convidado para as reuniões da chamada Terceira Via, rebatizada para Governança Progressista.

Congregava os então líderes dos principais países ocidentais: Tony Blair, Bill Clinton, o alemão Gerhard Schroeder, o francês Lionel Jospin, o italiano Massimo D’Alema —a nata enfim do mundo rico.

Os hidrófobos do bolsonarismo certamente dirão que se tratava de um bando de perigosos comunistas, mas o superministro de Economia, Paulo Guedes, liberal de carteirinha, teria orgasmos ao ler algumas frases do manifesto de lançamento do grupo: “O Estado não deve crescer, mas reduzir-se”; “menos regulamentação e mais flexibilidade”.

Hélio Schwartsman: Por que temos filhos?

- Folha de S. Paulo

Do ponto de vista econômico, paternidade favorece a sociedade como um todo

A pergunta do título comporta vários níveis de resposta. No plano biológico, a reprodução é um imperativo, fazendo parte de várias das definições de vida. Mas a biologia é só parte da história. A paternidade também encerra dimensões culturais, econômicas e emocionais.

Inspirado em “Anti-Pluralism”, de William Galston (agradeço ao colegaJP Coutinho pela boa dica), arrisco algumas reflexões sobre a matéria. Até o começo do século 19, filhos eram um ativo econômico.

Ajudavam desde cedo com o trabalho doméstico, colaborando para o bem-estar da família, e ainda faziam as vezes de plano de aposentadoria para os pais.

Hoje, contudo, crianças ficaram caras. E, para piorar, elas demoram muito até começar a trazer contribuições econômicas. Como observa Galston —e isso foi, para mim, um verdadeiro insight—, no espaço de dois séculos, a criação de filhos deixou ser um bem privado para tornar-se um bem público.

Embora a paternidade possa trazer recompensas emocionais, do ponto de vista estritamente econômico, ela favorece a sociedade como um todo, enquanto a maior parte dos custos recai sobre os genitores.

Mary Zaidan: A realidade é dura

- Blog do Noblat | Veja

Jair Bolsonaro parece não saber o que quer

Trapalhadas, bate-cabeças, idas e vindas. A 40 dias de sua posse, o presidente eleito Jair Bolsonaro parece não saber o que quer. Nem mesmo consegue formatar o desenho primário do governo. Transita entre dias de extinção e fusão de ministérios, misturando alhos e bugalhos para chegar aos 15 prometidos na campanha, outros de recuo e até de criação de novas pastas, como o recém-anunciado Ministério da Cidadania. E antes mesmo de tomar assento no Planalto já contabiliza sua primeira baixa: a do general da reserva Oswaldo Ferreira.

Responsável pelo Departamento de Engenharia do Exército durante anos e até então afinadíssimo com Bolsonaro, Ferreira não explicou publicamente os motivos de sua desistência. Algo no mínimo curioso para um dos mentores da aglutinação dos transportes, portos, aviação civil, mobilidade urbana, recursos hídricos e saneamento no mega-Ministério de Infraestrutura, imaginado entre o primeiro e segundo turnos da eleição.

Nele estarão concentrados quase todos os recursos de investimento que o país faz – ou deveria fazer. E toda sorte de problemas. Mais de 7 mil obras inacabadas, boa parte delas vítimas da corrupção. Absurdos como as Ferrovias Norte-Sul, em construção há 31 anos, e Transnordestina, iniciada em 2006 e completamente abandonada, além de heranças pesadas dos PACs do ex Lula e da presidente cassada Dilma Rousseff.

Se Bolsonaro começou a transição em grande estilo, com o anúncio do juiz Sérgio Moro para a Justiça e de gente de peso, como Joaquim Levy para o BNDES, foi o primeiro a colocar seu próprio governo na berlinda ao emitir sinais contraditórios.

É uma farsa o objetivo do Escola Sem Partido: Editorial | O Globo

Em vez de ‘neutralidade’, o que se deve buscar é o pluralismo, que incentiva o aprendizado crítico

Natural que um governo eleito trabalhe para cumprir promessas feitas em campanha, tente executar sua agenda. Não significa, porém, na democracia representativa, que o voto popular tudo permita. Há ritos e instituições que filtram excessos e até podem ajudara aperfeiçoar ideias. Ou simplesmente barrá-las, por impróprias.

Se Lula e seguidores não conseguiram executar tudo o que queriam inspirados no nacional-populismo, Bolsonaro e eleitores não podem imaginar que toda a agenda mais à direita que defendem poderá ser seguida. É assim que funciona a democracia representativa, e ainda bem. Se não, estaríamos em um regime autoritário, desses que existem pelo mundo, de direita e esquerda.

Na lista de propostas a serem barradas, destaca-se a ideia da “Escola Sem Partido”. Ela deriva de compreensíveis preocupações com o risco de doutrinação em vez de ensino nas salas de aula. Compreende-se, mas a forma com que bolsonaristas e aliados procuram resolver o problema é tosca, equivocada, para dizer o mínimo. Como seria se a mesma iniciativa viesse da esquerda.

Há um movimento antigo em torno do tema, e um projeto de lei substitutivo, de Flavinho (PSC-SP), para impedir “doutrinação política” nas escolas, encontra-se em comissão especial da Câmara, ondes e travam duros debates. Se aprovado, deverá ir para o Senado. Na terça-feira, a sessão foi suspensa, para os trabalhos serem retomados nesta semana. Devem-se procurar referenciais que não podem ser negociados. Um dos princípios inarredáveis: o ensino é um espaço amplo e aberto, para a formação dos alunos. O que significa informar os jovens sobre ideologias, em aulas e conversas francas.

Buracos nos estados: Editorial | Folha de S. Paulo

Relatório mostra que finanças das unidades da Federação voltaram a se deteriorar

Não chegou a durar dois anos o efeito paliativo do último programa federal de cobertura de rombos nos caixas dos governos estaduais, tão precário quanto as operações tapa-buracos das também lastimáveis estradas brasileiras.

Em 2016, negociou-se mais prazo para o pagamento de dívidas das unidades da Federação com o Tesouro Nacional. No ano passado, a situação das contas regionais continuou a se deteriorar, como revela balanço recém-publicado pelo Ministério da Fazenda.

Não espanta, aliás, que no primeiro encontro dos futuros governadores com auxiliares do presidente eleito, Jair Bolsonaro (PSL), novo socorro tenha sido pleiteado.

De fato, existe o risco concreto de que as finanças de outros estados descambem para a agonia vivida por Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Minas Gerais. O colapso da prestação de serviços à população —educação, saúde e segurança pública, principalmente— elevará a pressão política sobre os cofres do governo federal.

Em 2017, mais uma vez o aumento de despesas superou o da arrecadação, na média estadual. Feitas todas as contas de receitas, de impostos ou financeiras, o resultado orçamentário voltou a um déficit explosivo, de R$ 20,3 bilhões.

Questão de moralidade: Editorial | O Estado de S. Paulo

Como entidades privadas que são, os partidos políticos deveriam ser totalmente custeados por recursos de seus quadros e por doações de cidadãos simpatizantes de suas agendas programáticas. O País ainda não atingiu este patamar de maturidade democrática e, por esta razão, as agremiações contam com dinheiro público farto e fácil para bancar suas estruturas administrativas, campanhas eleitorais e sabe-se mais o quê. “A democracia tem um custo”, dizem, não sem uma boa dose de cinismo, os que defendem o modelo de financiamento público.

Em setembro de 2015, vale lembrar, o Supremo Tribunal Federal (STF) proibiu doações de pessoas jurídicas para as campanhas eleitorais. Como se sabe, esta era uma das principais fontes de receita dos partidos políticos. Em boa hora, o STF decidiu acabar com esta excrescência. Afinal, empresas não têm direitos políticos.

A “solução” encontrada pelos políticos após o bom juízo do Supremo foi a mais fácil possível: criar um tal Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC), que neste ano contou com R$ 1,7 bilhão em recursos do Tesouro. Um descalabro muito confortável para os que não querem ter o trabalho de conquistar doadores privados na base do convencimento.

Partidos derrotados buscam reinvenção após eleição polarizada

Siglas discutem como manter relevância e competitividade sem se ligar a bolsonarismo ou petismo

Joelmir Tavares | Folha de S. Paulo

SÃO PAULO - Que caminho seguirá o espectro que vai da centro-direita à centro-esquerda depois que Jair Bolsonaro (PSL) derrotou Fernando Haddad (PT) e as urnas escancararam a rejeição do eleitor a partidos que fazem um discurso de moderação?

Nem os próprios partidos que ocupam o largo canal entre os candidatos do segundo turno sabem bem para onde vão. Mas o cenário pós-eleições, com o avanço da direita no plano federal, nos governos estaduais e no Legislativo, indica a necessidade de uma reinvenção para ontem, na opinião de lideranças políticas.

Siglas como PSDB, MDB, PPS, PSB e Rede se debruçam sobre as causas do fracasso e discutem como se manter relevantes e qual papel exercer em relação ao novo governo.

"Há mais de um ano eu defendo que o PSDB faça uma reformulação, uma autocrítica", diz o senador Tasso Jereissati (PSDB-CE). Ex-presidente nacional do partido, ele disse em setembro que a legenda cometeu "erros memoráveis". Um deles: entrar no governo Michel Temer (MDB).

O futuro dos tucanos está diretamente ligado à ascensão de João Doria. Aliado de Bolsonaro, o governador eleito de São Paulo se movimenta para empurrar a legenda rumo à direita. Fala também em tirar da sigla a pecha de que fica no muro e não toma posição.

Partidos derrotados na eleição também discutem se unir para enfrentar os novos tempos. No entanto, ao longo da campanha, iniciativas nesse sentido falharam. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) tentou articular um bloco para aglutinar candidaturas e fazer frente a bolsonarismo e petismo. Como se sabe, não obteve sucesso.

"Acho que pode vir uma coesão do centro, mas vai depender de como será o relacionamento político e quais serão as primeiras atitudes de Bolsonaro. Se vai entrar radicalizando, se vai moderar", diz Tasso.

A expressão "oposição democrática" tem sido usada à exaustão por caciques partidários para descrever a relação com o futuro governo. A ordem é agir com responsabilidade, sem fazer um contraponto sistemático ao Planalto.

Blocos nessa linha estão se desenhando no Congresso, com partidos como PDT, Rede, PPS, PV, PSB e até de siglas distantes do centro do espectro, como o esquerdista PC do B. Membros poderiam votar com o novo governo em pautas como reformas econômicas, mas buscariam marcar posição em temas como direitos humanos e respeito às liberdades.

A intenção é constituir uma oposição sem o PT, ideia defendida pelo ex-presidenciável Ciro Gomes (PDT) e que conta com a adesão de siglas que querem abandonar o guarda-chuva do partido de Haddad.

O MDB, por anos fiel da balança de qualquer governo e que saiu menor e menos relevante das urnas, aposta na eleição de Renan Calheiros (AL) para a presidência do Senado para garantir algum protagonismo no governo Bolsonaro.

Presidente nacional do PDT, Carlos Lupi diz que o papel de terceira via assumido por Ciro, o terceiro colocado da eleição, continuará sendo necessário. "Tivemos a onda que elegeu Lula e agora a que deu vitória a Bolsonaro. É cíclico. Daqui a pouco vira de novo."

Lupi compartilha do entendimento de que o candidato do PSL deu um baile na velha política ao estabelecer comunicação direta com os eleitores. "Deveríamos ter trabalhado com mais eficácia a rede social. Isso o Bolsonaro conseguiu", constata o líder do PDT.

"O ciclo de governos mais progressistas se encerrou com uma crise profunda das instituições e partidos", diz o presidente nacional do PPS, Roberto Freire. "A política tradicional foi derrotada", segue ele, que tem mandatos há 44 anos, é suplente de deputado federal e não conseguiu uma vaga na próxima legislatura.

Para se manter no time das legendas "que serão ouvidas e terão espaço lá no futuro", nas palavras de Freire, o PPS aposta na refundação do partido, processo que já estava em curso e agora se mostrou urgente.

A metamorfose, que inclui troca de nome ("Movimento" é uma opção), se dará com a adesão de membros do Agora!, do Acredito e do Livres, grupos que erguem a bandeira da renovação política, e com a possível fusão com a Rede.

A legenda da ex-senadora Marina Silva está com a sobrevivência ameaçada porque elegeu só uma deputada federal e, com isso, não superou a cláusula de barreira. A consequência é a restrição no acesso a recursos do fundo partidário e ao tempo de televisão.

Embora ainda falte a palavra final, tudo se encaminha para a união dos dois partidos. O molde também é incerto, já que, pela lei, só siglas com no mínimo cinco anos de registro podem se fundir. Oficializada em 2015, a Rede tentará na Justiça derrubar a regra.

"O PPS não está discutindo mudança por deleite de mudar, mas porque é necessário", afirma Freire. A expectativa é que a aliança com organizações de oxigenação da política ajude a reformular os quadros, estabelecer nova ponte com a população e ter conexão maior com redes sociais.

"A sociedade brasileira não está majoritariamente nos extremos", analisa Freire. "No primeiro turno, um movimento anti-PT deu impulso a Bolsonaro e, no segundo, um grande grupo votou em Haddad para ser anti-Bolsonaro."

Carlos Drummond de Andrade: Elegia

Ganhei (perdi) meu dia.
E baixa a coisa fria
também chamada noite, e o frio ao frio
em bruma se entrelaçam, num suspiro.

E me pergunto e me respiro
na fuga deste dia que era mil
para mim que esperava,
os grandes sóis violentos, me sentia
tão rico deste dia
e lá se foi secreto, ao serro frio.

Perdi minha alma à flor do dia ou já perdera
bem antes sua vaga pedraria?
Mas quando me perdi, se estou perdido
antes de haver nascido
e me nasci votado à perda
de frutos que não tenho nem colhia?

Gastei meu dia. Nele me perdi.
De tantas perdas uma clara via
por certo se abriria
de mim a mim, estrela fria.
As arvores lá fora se meditam.
O inverno é quente em mim, que o estou berçando
e em mim vai derretendo
este torrão de sal que está chorando.

Ah, chega de lamento e versos ditos
ao ouvido de alguém sem rosto e sem justiça,
ao ouvido do muro,
ao liso ouvido gotejante
de uma piscina que não sabe o tempo, e fia
seu tapete de água, distraída.