quarta-feira, 2 de janeiro de 2019

Ascânio Seleme: Que socialismo, presidente?

- O Globo

O discurso no parlatório, Bolsonaro parecia um candidato em campanha e exagerou no tom

Jair Bolsonaro fez um discurso mais político e popular no Parlatório. Parecia um candidato em campanha. E, como sempre ocorre nesses casos, exagerou no tom e no conteúdo. Dizer que estava ali para libertar o Brasil do socialismo não foi apenas retórica, foi discurso para quem queria ouvir isso mesmo. Mas era bobagem. Primeiro, de que socialismo falava Bolsonaro? Do herdado de Michel Temer? Se fazia referência aos governos petistas, chegou atrasado, seu antecessor já havia mudado a direção do governo para a linha que o empossado escolheu seguir. E mesmo os governos dos ex-presidentes Lula e Dilma nunca foram socialistas. Foram sociais democratas com foco na distribuição de renda. Ponto final.

No tom, foi além do ponto ao fazer fora do script a referência à bandeira brasileira. Nem tanto ao repetir o mantra de que a bandeira brasileira jamais será vermelha, mas ao dizer que só ficaria vermelha com o seu sangue na defesa das cores verde e amarela. Exagerou e a plateia adorou. Aliás, público como aquele não queria um discurso que não fosse nesse tom. Bolsonaro entendeu isso e falou da família brasileira que vai defender de nefastas ideologias. Usou e abusou de ataques à esquerda, afinal por que mesmo ele estava ali?

Merval Pereira: Duas vozes

- O Globo

Bolsonaro foi eleito pelo núcleo duro de cidadãos claramente radicalizados, a quem ele dedica sua retórica de guerra política

Entre repetições de clichês que não surpreenderam, o presidente Bolsonaro colocou algumas questões no meio de seu discurso no Congresso que representam avanços na configuração do que imagina deva ser a relação do Executivo com os parlamentares, ponto fundamental para a aprovação de reformas estruturantes que precisa aprovar.

A formação do ministério sem consultas aos partidos políticos foi um choque positivo na relação promíscua já naturalizada no nosso presidencialismo de coalizão, que se transformara em uma mera troca de favores.

Pela primeira vez Bolsonaro levou a discussão para o campo das ideias, tentando advertir seus antigos pares de que prosseguir nessa relação espúria é desmoralizar a política e colocar em risco a credibilidade parlamentar, já bastante abalada.

Foi nesse discurso que ele entrou no debate das reformas, sem explicita-las, mas ressaltando sua importância na retomada do crescimento econômico. Outra questão insinuada no seu discurso é a saída para o desemprego. Bolsonaro sempre defendeu a tese de que é preciso abrir mão de alguns direitos para criar mais empregos.

Está sendo construída uma estratégia para defender, não apenas essa flexibilização de direitos e deveres trabalhistas, como também para convencer a população de que a reforma da Previdência será feita para acabar com privilégios, não para tirar direitos adquiridos para a aposentadoria.

Terá que conseguir isso para continuar merecendo a confiança de seu eleitorado, fazendo mudanças que podem significar mais tempo de trabalho antes da aposentadoria. A melhoria dos serviços públicos seria uma contrapartida a esses cidadãos.

Míriam Leitão: As divisões até na hora de somar

- O Globo

Bolsonaro atribuiu o ato do criminoso que atentou contra a sua vida aos “inimigos da pátria”, insinuando serem seus adversários políticos

O presidente Jair Bolsonaro poderia ter só somado ontem, mas preferiu dividir. Era momento de festa cívica, o da posse de um presidente eleito, resultado da oitava eleição consecutiva desde a redemocratização. Mas ele escolheu restringir em vez de ampliar. Isso ficou claro até no momento mais tocante, quando, no Parlatório, a primeira dama Michelle falou aos deficientes auditivos usando a linguagem de libras para incluí-los na cerimônia. Logo depois, Bolsonaro afirmou que iria acabar com o politicamente correto. O gesto que sua mulher acabara de fazer era politicamente correto. E lindo.

Nos seus discursos, Bolsonaro deu sinais em sentidos opostos. Convocou o Congresso para ajudá-lo a reconstruir o país e resgatar a esperança. Num improviso, brincou que estava “casando” com o Congresso. Falou em dar mais poderes aos estados e municípios. Disse que reafirmava seu compromisso de construir uma sociedade sem discriminação e sem divisão.

Ele afirmou que queria a ajuda do Congresso para libertar a pátria da “irresponsabilidade econômica”. Precisou ser lembrado pelo presidente do Senado, Eunício Oliveira, de que ele não começava do zero, que vários avanços econômicos foram conseguidos na gestão do ex-presidente Temer.

Sua insistência no que chama de “ideologia de gênero”, ou “viés ideológico”, é a repetição do que disse na campanha, mas é contraditório. Esse é um governo com viés e ideologia. Foi eleito entoando discurso de direita. Governará com estas ideias. Isso é natural. O que ofende os fatos é dizer que agora o país estará “livre das amarras ideológicas”. Está trocando amarras, pelo visto.

No ponto mais perigoso do seu discurso no Congresso, Bolsonaro coletivizou o ato do criminoso que atentou contra a sua vida ao dizer: “quando os inimigos da Pátria, da ordem e da liberdade tentaram pôr fim à minha vida, milhões de brasileiros foram às ruas”. Nessa narrativa ele joga o epíteto de “inimigos da pátria” aos seus adversários políticos e os mistura com o autor do atentado. Cria uma ambiguidade perigosa. Disse que foi eleito a partir da reação da sociedade a esses “inimigos”. O Brasil conhece o risco das narrativas que distorcem os fatos. Conhece também o perigo dos líderes que se apropriam da bandeira nacional como sendo expressão de uma ideologia, em vez de ser o manto que nos une.

Bernardo Mello Franco: E o capitão não desceu do palanque

- O Globo

No dia em que vestiu a faixa, Bolsonaro confundiu o traje de presidente com o de candidato. Em vez de abrir espaço para diálogo, dobrou a aposta na divisão

Ao discursar no Congresso, Jair Bolsonaro falou em “unir o povo”, “preservar nossa democracia” e governar “sem discriminação ou divisão”. A promessa de moderação durou pouco. Duas horas depois, ele já retomava o tom agressivo que marcou a sua escalada até o Planalto.

Com a faixa no peito, o novo presidente voltou a se pintar para a guerra. Bradou contra o fantasma do socialismo e descreveu seus rivais políticos como inimigos da pátria, da ordem e da família. Em seguida, prometeu “acabar com a ideologia que defende bandidos”, sugerindo que fará vista grossa para a violência policial.

Finalmente, insinuou que recorreria às armas para impedir que a esquerda volte a disputar o poder. “Essa é a nossa bandeira, que jamais será vermelha. Só será vermelha se for preciso o nosso sangue para mantê-la verde e amarela”, radicalizou. Faltou pouco para repetir as ameaças de “fuzilar a petralhada” e mandar os adversários para a “ponta da praia”.

Num momento que pedia distensionamento, Bolsonaro insistiu na tática da divisão. Confundiu o parlatório, onde presidentes falam à nação, com o palanque, onde candidatos atiçam seus seguidores. Adotou um tom eficiente para manter a tropa mobilizada, mas impróprio para quem terá que governar para todos os brasileiros.

Sérgio Abranches: O desafio político do novo governo

- O Globo

Pistas dadas por Bolsonaro indicam agenda de reformas que exigirá várias emendas à Constituição

O novo governo começa embalado em altas expectativas e muita controvérsia. Sua eleição encerrou um ciclo do presidencialismo de coalizão, mas anulou o modelo político. Se o pleito presidencial implodiu o duopólio PT-PSDB, as eleições proporcionais resultaram em um multipartidarismo mais fragmentado, com bancadas partidárias significativamente menores. A formação de maiorias ficou mais difícil. Requer mais partidos, ao custo de menos afinidades político-programáticas. A pauta de demandas e desejos que elegeu Jair Bolsonaro tem um núcleo muito conservador, mas a maioria que o levou à vitória é difusa e diversificada.

O presidente eleito precisará de uma agenda que, sem desatender ao núcleo conservador, atenda a um espectro mais amplo de anseios, sob o risco de frustrar a larga faixa do eleitorado que votou mais contra o situacionismo. Ao mesmo tempo, terá que enfrentar os desafios que estão postos no campo fiscal e econômico.

O novo governo tem a seu favor um clima de otimismo como há muito não se registra no país. A esperança da opinião pública é um fator que impulsiona adesões no Congresso. Mas, embora um ingrediente necessário ao sucesso legislativo da agenda presidencial, não é suficiente.

Principalmente para um conjunto tão diferenciado de questões, que vão da economia — sobre a qual há relativo consenso no geral, todavia muita divergência no particular — até questões de direitos e costumes, em relação às quais não há concordância, nem no todo, nem nas partes.

O momento de maior probabilidade de sucesso corresponde aos primeiros quatro meses do primeiro ano do primeiro mandato. Em todas as presidências, desde 1990, com Collor, até Dilma, foi este o momento de maior sucesso parlamentar relativo, com o menor custo político e fiscal.

Elio Gaspari: O capitão chegou

- Folha de S. Paulo

No palanque de mármore do Palácio do Planalto, Jair Bolsonaro fez o seu último discurso de campanha

Jair Bolsonaro chegou ao Palácio do Planalto pela vontade da maioria dos eleitores e com a esperança de dois terços da população. Discursos de posse podem querer dizer muito, ou nada.

O de Tancredo Neves, que não foi lido, queria dizer muito, os de Jair Bolsonaro, afora as teatralidades, acrescentaram pouco ao que disse na campanha. Ele propôs genericamente um "pacto nacional entre a sociedade e os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, na busca de novos caminhos para o Brasil" e reafirmou seu "compromisso de construir uma sociedade sem discriminação ou divisão".

Quem saiu da cerimônia e soube que, pouco depois, Bolsonaro anunciou que "o Brasil começa a se libertar do socialismo e do politicamente correto", ficou sem entender nada. Socialismo por cá nunca houve e o "politicamente correto" pode ser muita coisa ou coisa nenhuma.

Entre o discurso feito no Congresso e o do parlatório parece haver um abismo. No palanque de mármore, Bolsonaro repetiu temas que lhe deram o mandato popular. Fica a dúvida em relação ao "pacto". Ele existe, cheio de remendos, mas chama-se Constituição.

A partir de hoje, discursos de campanha serão inúteis, pois começa o serviço. Ele demanda eficácia e respeito às instituições dentro do pacto existente.

A ideia segundo a qual o Brasil precisa se libertar do "politicamente correto" (uma questão de comportamento) ou do "socialismo" (simples fantasia) é uma construção apocalíptica.

Igor Gielow: Discursos são coleção de tuítes temperada com messianismo

- Folha de S. Paulo

Ao Congresso, presidente fez aceno de olho na necessidade de apoio para reformas; na praça, falou a língua agressiva que o elegeu

Pouco antes do discurso de posse presidencial do pai no Congresso, o deputado federal reeleito Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) havia dito que o texto seria “uma caixinha de surpresas”.

Não foi, exceto pelo exíguo tempo que tomou da plateia que tanta dificuldade teve para passar por bloqueios de segurança e alcançar o plenário da Câmara dos Deputados.

O texto foi lido em pouco menos de dez minutos, um sussurro perto dos caudalosos 44 minutos utilizados em 2003 pelo petista Luiz Inácio Lula da Silva. A fala foi um resumo de todos os tuítes postados por Jair Messias Bolsonaro (PSL) e seus lugares-tenentes nos últimos meses. Se há uma linha-mestra do bolsonarismo, está colocada ali para quem quiser criticar ou cobrar a aplicação depois.

A fórmula foi repetida, repaginada, no discurso seguinte no parlatório do Planalto. Lá, falando para seu público fiel, usou e abusou do linguajar pelo qual notabilizou-se ao longo de sua carreira. Prometeu libertar o Brasil do "socialismo, da inversão de valores, do politicamente correto e do gigantismo estatal".

O texto lido no Congresso, por óbvio uma peça mais formal, foi mais estruturado. Citações a Deus, promessas de responsabilidade econômica e reformas estruturantes, concessões pontuais nos seus pontos de imagem mais frágeis (defesa da democracia, pedido de sociedade sem discriminação, ainda que respeitando a “tradição judaico-cristã"), defesa do armamento da população como forma de combater a violência, busca pelo fim da corrupção, crítica à ideologia de gênero e à submissão ideológica, suporte a uma política externa que traga grandeza política e econômica.

Ricardo Balthazar: Os esquecidos

- Folha de S. Paulo

Presidente é o primeiro a assumir o cargo sem incluir entre suas prioridades o combate à pobreza e à iniquidade social

José Sarney não teve tempo de preparar um discurso de posse em 1985. Tancredo Neves fora internado às pressas na véspera e ficou impedido de assumir. Numa breve mensagem ao novo ministério, o vice reafirmou os compromissos do presidente eleito e prometeu governar como escravo da Constituição.

Em 1990, ao defender seu programa de modernização do Estado e da economia, Fernando Collor incluiu entre as prioridades do governo o “resgate de nossa gritante e vergonhosa dívida social” e criticou a maneira como seus antecessores haviam tratado do problema.

Collor classificou as políticas sociais do passado como paternalistas, populistas e irresponsáveis, mas descartou também a indiferença e a passividade. “Não deixarei o problema da pobreza à mercê do automatismo do mercado”, discursou.

Em 1995, Fernando Henrique Cardoso definiu a busca de “justiça social” como objetivo primordial de seu governo. Prometeu trabalhar para “diminuir as desigualdades até acabar com elas” e defendeu a solidariedade como um valor essencial da nação brasileira.

“Vamos fazer da solidariedade o fermento da nossa cidadania, em busca da igualdade”, afirmou, ao propor um “grande mutirão nacional” para “varrer do mapa” a fome e a miséria.

Marcos Augusto Gonçalves: Donald Bolsonaro

- Folha de S. Paulo

Trump brasileiro põe à prova a nossa imatura democracia

Jair Bolsonaro já foi chamado de Donald Trump brasileiro. Comparações como essa podem ser arriscadas, mas ele mesmo já declarou que se espelha no presidente norte-americano —de maneira, aliás, um tanto subalterna para nossa tradição diplomática.

Trump, por sua vez, contraria padrões tradicionais que regem (ou regiam) a Presidência de seu país. Comporta-se como uma espécie de irmão do norte do estilo populista da América Latina.

Em janeiro de 2017, Ishaan Tharoor, jornalista do Washington Post, escreveu uma análise sobre o republicano com o título “Trump é o primeiro presidente latino-americano dos EUA”.

Na argumentação, polêmica, citava, entre outros, Diego von Vacano, premiado cientista político de origem boliviana, que dizia o seguinte:

“O populismo, o autoritarismo, o personalismo, o machismo, o racismo e o caudilhismo têm sido historicamente vistos como males quase inerentes à cultura política latino-americana. Com a eleição de Donald Trump, podemos ver agora que os EUA são de fato parte das Américas como um todo e compartilham essas patologias.”

Bruno Boghossian: Governando com fantasma

- Folha de S. Paulo

Presidente apela para risco da volta do PT e deixa planos concretos em segundo plano

Nos discursos que abriram os quatro anos de governo de Jair Bolsonaro, o inimigo foi protagonista. O novo presidente mostrou que pretende reproduzir durante o mandato a dinâmica de embate com o PT que alimentou sua popularidade durante a eleição.

Empossado, Bolsonaro não se desviou da retórica de campanha porque o fantasma da esquerda é uma de suas principais fontes de poder. É por isso que ele costuma repetir que o fracasso de seu governo abriria caminho para a volta dos petistas.

Essa ameaça deve ser explorada a partir de agora pelo presidente para cristalizar apoio popular a sua gestão. Cada medida anunciada virá acompanhada de um alerta implícito: é isso ou o retorno da esquerda.

O mesmo vale no Congresso. As propostas de Bolsonaro serão embaladas em um falso voto de confiança, em que os parlamentares serão instados a decidir se querem aprovar os planos do presidente ou optar pelos estertores da era petista.

A assombração toma contornos realistas quando Bolsonaro evoca escândalos de corrupção protagonizados pelo PT e a crise provocada pela política econômica de Dilma Rousseff. Ele apela para falsificações grosseiras, porém, quando busca oponentes imaginários.

Vinicius Torres Freire: A revolução moral de Bolsonaro

- Folha de S. Paulo

Presidente dá ênfase à ideia de que quer purgar país de vícios morais e ideológicos

Jair Bolsonaro refez promessas de campanha ao tomar posse do governo. Se no princípio está o seu fim, seus primeiros discursos presidenciais dizem muito de suas prioridades. Se isto lá é verdade, haveria adiante um projeto de purificação nacional e de recuperação de tradições perdidas ou pervertidas por ideologias.

Tudo isso pode parecer uma aberração inocente no pior sentido da palavra, uma extravagância que se vai desfazer no ar assim que as tarefas de governo absorverem o novo presidente. Talvez o discurso não venha a passar de propaganda.

Pode não ser o caso. Suponha-se que Bolsonaro seja de fato uma diferença, uma novidade tão grande quanto a revolta e o direitismo que o levaram ao poder. Quais seriam as consequências de o presidente gastar tempo e outros recursos políticos de seu governo na tentativa de purgar o país de seus males?

Pois é disso que se trata. Está lá, posto logo de pronto nos discursos do primeiro dia.

Em um país arruinado, que é preciso "restaurar", "reerguer" e "reconstruir", trata-se de combater a "corrupção, o crime, a irresponsabilidade econômica e a submissão ideológica". Neste primeiro dia, disse no parlatório, o Brasil "começou a se libertar do socialismo, da inversão de valores, do gigantismo estatal e do politicamente correto".

Ao dar valor à família, às "religiões e nossa tradição judaico-cristã", ao "combater a ideologia de gênero", o Brasil voltará a ser "livre das amarras ideológicas". "Ideologia" e variantes aparecem nove vezes nos dois discursos, quase tanto quanto Deus (12 vezes).

A purificação já teria começado na política, com a montagem de um ministério "técnico", livre de "conchavos políticos". A economia será livre, sem o peso do Estado e ideologias, portanto meritocrática.

As políticas de bem-estar social são mencionadas em um parágrafo, tanto espaço quanto levaram os direitos e elogios dos policiais e do armamento. A economia aparece no terço final do discurso do Congresso, levando pouco mais de 10% das palavras presidenciais.

Palavras de conciliação e união nacional ocuparam pouco mais do que uma frase.

Se Bolsonaro vai transformar imagem em ação, como vai proceder? Vai se contentar em satisfazer suas obsessões de modo tópico, com uma ou outra lei para ele mesmo ver, mas sem impacto geral significativo? Ou não?

Eliane Cantanhêde: ‘Vamos restabelecer a ordem no País’

- O Estado de S.Paulo

Jair Bolsonaro inovou com um discurso rápido e com a forma clara e direta com que reafirmou a guinada à direita no Brasil

Conclamar um “pacto nacional” virou lugar comum em posses presidenciais, mas Jair Bolsonaro inovou com um discurso rápido e com a forma clara e direta com que reafirmou a guinada à direita no Brasil. “Vamos restabelecer a ordem nesse País!”, pregou, sacudindo a Praça dos Três Poderes.

Direito à legítima defesa e respeito às regras, contratos e propriedades, além de combate ao gigantismo do Estado, ao politicamente correto e ao “viés ideológico”, às “amarras ideológicas” e à “ideologia nefasta” que, segundo ele, destroem nossos valores e a família.

Foram firmes compromissos com princípios liberais na economia, posições conservadoras em costumes e guinadas na política externa, na educação e na segurança – que “vai deixar de defender bandidos e criminalizar a polícia”. Assim, o presidente convocou a sociedade a “libertar o País do socialismo” e “reerguer a Pátria”, bradando: “Nossa bandeira jamais será vermelha!”.

Vera Magalhães: Papo ‘reto’

- O Estado de S.Paulo

Diferentemente da expectativa de que usaria ao menos uma das falas para pregar a união do País e prometer governar para todos, o presidente Jair Bolsonaro preferiu se dirigir aos próprios eleitores e aliados

Os dois discursos de Jair Bolsonaro na posse seguiram a mesma linha “papo reto”, como definiu o novo ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni. Diferentemente da expectativa de que usaria ao menos uma das falas para pregar a união do País e prometer governar para todos, o presidente preferiu se dirigir aos próprios eleitores e aliados.

Na Câmara, fez um discurso de forte tom ideológico, intercalado com um aceno para os congressistas ao anunciar que estava “casando” com eles, mas com as cláusulas do contrato nupcial previamente estipuladas: nada de negociação nas velhas bases partidárias, a agenda será aquela com a qual foi eleito e os deputados e senadores serão instados a endossá-la por meio da pressão popular.

Mais tarde, no parlatório, o tom “palanqueiro” foi ainda mais acentuado, com as menções historicamente equivocadas à superação do “socialismo”, como se o Brasil, sob Michel Temer, tivesse um governo sequer de esquerda. Soou apenas caricato. Da mesma forma que o grito de guerra de que a bandeira do Brasil nunca será vermelha, a não ser que seja a cor do sangue que poderá ser derramado para defendê-la.

Que ele governe segundo sua plataforma de campanha é desejável e sinal de maturidade política do Brasil. Que insista em uma retórica incendiária em nome de uma mobilização permanente é o contrário da necessidade de uma articulação política muito precisa para aprovar medidas duras, como a reforma da Previdência – que, não por acaso, só apareceu de forma tímida nos discursos para os convertidos.

Luiz Carlos Azedo: O governo da ordem

- Correio Braziliense

“Bolsonaro promete um governo comprometido com a meritocracia, a honestidade e a eficiência. É música para a maioria da sociedade”

Para não chover no molhado, direi que o momento mais simbólico da posse de Jair Bolsonaro foi aquele em que passou em revista a Guarda Presidencial, como comandante supremo das Forças Armadas, depois de jurar a Constituição. Foi o único instante em que não sorriu; com o cenho franzido, ao contrário, chorou. Como velho repórter, se tivesse oportunidade, perguntaria o que passou pela sua cabeça naquele primeiro e breve momento de “solidão do poder”. Bolsonaro sabe que jamais chegaria à Presidência a não ser pelo voto.

Como os generais de quatro estrelas Hamilton Mourão, seu vice-presidente, e Augusto Heleno, o novo chefe do Gabinete de Segurança Institucional, faz parte de uma geração que optou pela carreira militar quando o Exército ainda era a via de acesso ao Palácio do Planalto, mas teve essa ambição política frustrada pela redemocratização do país, em 1985. Sua indisciplina acabou abortando a carreira militar. A opção pela política, porém, demonstrou-se a alternativa acertada. Ninguém exerce seis mandatos na Câmara impunemente. Por caminhos tortuosos, o capitão reformado enxergou na escuridão e agora é o presidente da República, depois de 30 anos de vida política.

Não foi à toa, portanto, que fez um discurso mais conciliador e apelou aos antigos colegas durante a sessão de posse no Congresso. Deixou muito claro que conta com o apoio do parlamento para aprovar as reformas e viabilizar o seu governo. No decorrer deste mês, esse discurso terá que ganhar forma nas articulações para as Mesas da Câmara e do Senado. O grande divisor de águas de seu governo será a aprovação da reforma da Previdência, sem ela estará condenado a uma espécie de feijão com arroz neoliberal, restringindo a eficácia das medidas econômicas que estão sendo elaboradas pelo seu ministro da Fazenda, Paulo Guedes. Que ninguém se surpreenda se fizer uma composição de última hora em favor da reeleição de Rodrigo Maia, atual presidente da Câmara, que tem afinidades programáticas e regionais com Guedes.

Além do apoio maciço de militares e cristãos, como gosta de ressaltar o professor da UnB Elimar Pinheiro, sociólogo e cientista político, a vitória de Bolsonaro tem um ingrediente antropológico, que as análises políticas de seus adversários e muitos analistas demoraram a captar: o apoio das famílias como instituição. Numa sociedade em que a desagregação da família unicelular patriarcal se transformou numa tragédia social por causa do desemprego, do crime organizado e dos péssimos serviços de saúde e educação, esse fenômeno emergiu na campanha eleitoral como uma espécie de força popular subterrânea, mobilizada por católicos e evangélicos. O discurso contra a corrupção e a violência trouxe o apoio da classe média.

Rosângela Bittar: Irrelevância

- Valor Econômico

Bolsonaro não sabe o que ganhou, mantém-se histrião

O discurso de posse de Jair Bolsonaro, aguardado ansiosamente como o meio adequado ao governo para anunciar seu rumo, frustrou expectativas ao optar pela irrelevância. Quem esperava ouvir definições, teve que esperar os discursos de posse, hoje, do ministro da Economia, Paulo Guedes, e da Justiça, Sergio Moro, os dois executivos do governo com substância a apresentar de imediato.

A decepção causada tem a ver com a decadência da comunicação verbal na política ou é sinal de que os "meme faces" da web não só ganharam as eleições, mas serão a linguagem corrente dos governos? Não importa, discurso de posse é discurso de posse.

Não tem uma estrela de general o material apresentado ontem pelo presidente, requentando o que foi dito na campanha e ao longo de sua vida parlamentar. Demonstrou que não sabe o que significou a vitória. Manteve-se histrião, tanto na oratória quanto ao desfraldar uma bandeira do Brasil que lhe foi colocada nas mãos.

Nos últimos dias, os assessores do governo vinham chamando a atenção para alguns sinais que ele emitiria na posse, durante a manifestação pública mais importante do dia, o pronunciamento ao Congresso Nacional, diante dos chefes de Estado estrangeiros. É esse discurso que aponta o propósito, mostra a que veio aquele grupo novo de dirigentes. Mais do que as palavras que o presidente profere do Parlatório do Palácio do Planalto, ao receber a faixa, geralmente dirigidas ao público na Praça dos Três Poderes, sempre em tom mais emotivo, o discurso no Congresso é um compromisso.

Gustavo Noblat: Governo de colisão

- Blog do Noblat

O nós contra eles sob novo disfarce

O fato de ter assumido a presidência da República não torna o capitão Jair Messias Bolsonaro mais preparado para o cargo que o destino lhe reservou. Falta-lhe preparo, e disso se encarregou de provar tudo o que afirmou antes, durante a campanha, e finalmente ontem no Congresso e, depois, no parlatório da Praça dos Três Poderes.

Num lugar como no outro, Bolsonaro deixou escapar a oportunidade de falar para o país e o mundo, se é que um dia de fato a desejou. Ele falou exclusivamente para seus devotos como se ainda estivesse em campanha para presidente. O discurso no parlatório foi a maior coleção de clichês e de lugares comuns ditos naquele espaço até hoje.

Reclama-se que a oposição, ou parte dela, não compareceu à posse de Bolsonaro. Mas que aceno convincente ele fez aos que não concordam com suas ideias ou divergem em parte delas? Por mais que muitos se empenhem em tentar normalizá-lo, Bolsonaro prega o “nós contra eles” do PT agora sob um novo o disfarce: eles contra nós.

Monica de Bolle: Fim de década

- O Estado de S. Paulo

No Brasil alguns dizem que estamos a inaugurar uma “nova era”. Trata-se, entretanto, de nossa inexplicável inclinação a acreditar na arte de viver da fé – só não se sabe fé em quê

Não gosto de escrever retrospectivas, ainda que elas nos ajudem a entender o ponto em que estamos. Contudo, gosto bastante de refletir sobre o que vem pela frente, sobretudo em momentos como o atual, onde a esperança de renovação se confunde com a incontável quantidade de problemas que o mundo haverá de enfrentar neste fim de década.

Cada fim de década tem a sua marca. O fim dos anos 90 foi marcado pela ascensão dos governantes de esquerda e centro-esquerda na América Latina após a difícil travessia das ditaduras à redemocratização. Apesar das dificuldades de então, havia a tal da esperança de renovação que vingou por um tempo para então falir primeiro gradualmente, e, depois, repentinamente, com a epidemia de corrupção que engoliu a região. No fim dos anos 2000, sobreveio a pior crise econômica e financeira desde o século XX, deixando profundas sequelas tanto na economia quanto na política. Se os países emergentes, como o Brasil, foram inicialmente poupados do pior, tampouco tardaria para que as repercussões diretas e indiretas de tamanho evento se manifestassem em meio ao acúmulo de problemas desvelado subitamente – dos desarranjos da economia à operação Lava Jato.

Como o viés otimista do ser humano é algo programado para a própria sobrevivência da espécie, da crise vieram novas esperanças de renovação mundo afora, dessa vez marcadas por traços nacionalistas e por um revisionismo que muitas vezes se confunde com profissões de fé. Ou falta de fé. Falta de fé na globalização, falta de fé na imigração, falta de fé na ciência que embasa as mudanças climáticas que tantos querem negar. Falta de fé no conhecimento, pois, convenhamos, ninguém tem tempo para isso. Mais fácil é ver aquele meme do grupo da família, ou ler aquela notícia de proveniência duvidosa.

Bolsonaro volta ao palanque eleitoral em discursos de posse: Editorial | Valor Econômico

O presidente Jair Bolsonaro fugiu de um discurso pacificador e de conciliação com as forças políticas que derrotou nas urnas e optou mais uma vez por ressaltar as bandeiras de campanha que o elegeram. Nas duas ocasiões em que discursou no dia de sua posse, a agenda econômica ocupou um papel subalterno, com formulações genéricas, diante da assertividade agressiva com que destacou suas prioridades ideológicas.

Seus primeiros discursos oficiais apresentaram um "pacote" integrado de diretrizes para resgatar o Brasil da crise "ética, moral e econômica". Deixou claro que para ele a tarefa de mudar e reconstruir a economia é inseparável de transformações de políticas públicas amplas, nas quais a matriz conservadora de seu governo será perseguida com a intensidade que lhe for possível.

Bolsonaro afirmou que fará reformas estruturantes - não citou nenhuma - e comprometeu-se com a austeridade nas contas públicas, ao apontar que "o governo não gastará mais do que arrecada", garantirá a propriedade, os contratos e o livre mercado. "Na economia traremos a marca da confiança, do interesse nacional, do livre mercado e da eficiência", disse em pronunciamento no Congresso Nacional.

O presidente reafirmou "compromisso de construir uma sociedade sem discriminação ou divisão" e mais tarde, em discurso no Parlatório do Palácio do Planalto, disse que as mudanças que pretende realizar serão feitas "respeitando os princípios democráticos e guiadas por nossa Constituição". No entanto, os pontos mais enfáticos dos dois discursos sugeriram que a convivência entre seus objetivos e os princípios democráticos poderá ser conflituosa, o que não é um bom sinal e aponta para desgastes de sua força política em torno de questões de segunda importância ou mesmo inexistentes.

"Hoje é o dia em que o povo brasileiro começou a se libertar do socialismo", disse o presidente a uma multidão de 115 mil pessoas - segundo o Gabinete de Segurança Institucional -, que se aglomerava na Esplanada. Antes, no Congresso, registrou que seu objetivo será "unir o povo, valorizar a família, respeitar as religiões e nossa tradição judaico-cristã, combater a ideologia de gênero, conservando nossos valores". "O Brasil voltará a ser um país livre de amarras ideológicas", concluiu.

A posse de Bolsonaro: Editorial | O Estado de S. Paulo

Os discursos feitos ontem pelo presidente Jair Bolsonaro, no Congresso Nacional e no parlatório do Palácio do Planalto, foram atos de campanha, e não atos de governo – como era de esperar de um veterano político que assumia a Presidência da República com promessas de “reconstruir” o Brasil. Bolsonaro repetiu os chavões da campanha, em vez de apontar soluções efetivas para os problemas do País. Insistiu em alguns diagnósticos genéricos, mas nos dois discursos não se vislumbrou ao menos um pálido esboço de plano de governo para enfrentar tais problemas. E, se a preleção no Congresso não deu razões para o otimismo, o segundo discurso de ontem, no parlatório, resvalou num populismo rasteiro – um claro sintoma de que não se deu conta dos desafios que terá de enfrentar nem do real papel que terá de exercer como presidente da República.

No plenário do Congresso, o presidente Jair Bolsonaro prometeu “governar com vocês”, referindo-se aos parlamentares. Que a promessa seja de fato cumprida, pois cabe ao Congresso aprovar as reformas estruturantes de que o País tanto precisa. Mas o máximo que pôde dizer é que aproveitava o “momento solene e convoco cada um dos congressistas para me ajudar na missão de restaurar e reerguer a nossa pátria, libertando-a definitivamente do julgo da corrupção, da criminalidade, da irresponsabilidade econômica e da submissão ideológica”. Não pôde ou não soube propor medidas concretas para sanar os males do País. Ou seja, não disse o que os brasileiros que depositaram suas esperanças no “mito” queriam ouvir.

Mas não lhe faltaram palavras para explorar – para quê? – o atentado que sofreu e que, como disse, foi executado pelos “inimigos da pátria, da ordem e da liberdade”. Na verdade, o crime foi obra de uma única pessoa, como mostram as investigações criminais. Depois, no parlatório, Bolsonaro teve a desfaçatez de dizer que o País estava, naquele momento, se libertando do socialismo e, tirando a bandeira nacional do bolso, num gesto teatral, garantir que aquele símbolo nunca seria manchado de vermelho – exceto o sangue derramado para garantir a pureza da pátria. A que caminhos o presidente pretende levar a Nação, com afirmações tão fora da realidade?

Retórica da posse: Editorial | Folha de S. Paulo

Jair Bolsonaro enfatiza o embate ideológico contra inimigos já apeados do poder

Como o petista Luiz Inácio Lula da Silva, sua nêmesis, o presidente Jair Bolsonaro (PSL) se pretende uma ruptura. Verdade que Lula, mais megalômano, se apresentava como uma guinada na história nacional de cinco séculos. Bolsonaro, empossado nesta terça (1º), anuncia uma reviravolta na democracia das últimas três décadas.

Populista, a exemplo do rival, o novo mandatário precisa de vilões a combater, reais ou imaginários. Ao discursar, transformou um ataque tresloucado durante a campanha em uma conspiração derrotada de forma épica. “Quando os inimigos da pátria e da ordem tentaram pôr fim à minha vida, milhões de pessoas foram às ruas.”

Os pronunciamentos —primeiro ao Congresso, depois ao público aglomerado em frente ao Planalto— apelaram ao embate ideológico e, infelizmente, pouco ou nada adiantaram da agenda de governo.

Bolsonaro, de fato, é uma novidade na história recente: um líder popular de retórica abertamente conservadora, que fala em Deus a todo momento, promete valorizar a família e combater a agenda de gênero. “O povo começou a se libertar do socialismo, da inversão de valores, do gigantismo estatal e do politicamente correto.”

Além da pauta assim chamada progressista, ataca de modo genérico a desordem econômica produzida nos anos de gestões social-democratas, o avanço da criminalidade e a corrupção associada ao loteamento político do Executivo.

Não deixa de ser uma maneira eficaz de capitalizar insatisfações gerais com vícios da administração pública nacional —a propensão ao gasto além das possibilidades, a baixa qualidade dos serviços de Estado e a dificuldade de formar coalizões em meio à proliferação de partidos fisiológicos.

Acenos positivos ao entendimento e ao fim das divisões: Editorial | O Globo

Apesar de discurso ideológico feito do parlatório, pacificação é vital para a pesada agenda de reformas

Todo presidente sobe a rampa do Planalto com alguma simbologia, independentemente das paixões políticas. Se Lula, em 1º de janeiro de 2003, foi o primeiro operário a colocar a faixa presidencial, Jair Bolsonaro, nos 30 anos de redemocratização, institucionalizada pela Constituição de 1988, carrega a marca do ineditismo de ser um representante assumido da direita. Cumpre-se o saudável princípio democrático da alternância no poder, depois de longo ciclo de governos à esquerda, de tucanos e petistas, sustentados em alianças com forças conservadoras. A chegada ao poder, pelo voto, de um representante da esquerda e de um deputado ex-capitão do Exército, da direita — até há pouco, assumido simpatizante da ditadura —, é prova da solidez da democracia. Que precisa ser preservada seja quem for o ocupante do Planalto.

Na solenidade de assinatura do termo de posse, no Congresso, Bolsonaro fez um correto contraponto a uma campanha acirrada, radicalizada, em que sofreu um atentado à faca. Falou em pacto, prometeu trabalhar para “construir uma sociedade sem discriminação ou divisão”, referência que remete à atmosfera de ódio que acompanhou momentos da campanha e da qual ele foi um dos protagonistas. Ao discursar do parlatório, o presidente, de forma compreensível, usou um diapasão ideológico. Mas, para governar, precisará descer do palanque.

O novo presidente herda desafiadoras distorções criadas a partir do segundo mandato de Lula (2007-10) e ampliadas no período Dilma Rousseff (2011-16), quando o país serviu de laboratório para terapias estatistas de um nacional-populismo de esquerda que desmontou o equilíbrio fiscal.

O emedebista Michel Temer, vice de Dilma, afastada por impeachment ao cometer crime de responsabilidade na manipulação das contas públicas, pôde conter o processo de agravamento da crise fiscal, mas, devido a fragilidades éticas, não teve força para executar a reforma da Previdência, estratégica na volta do país ao crescimento sustentado.

A tarefa cabe agora a Jair Bolsonaro. Na verdade, cai sobre seu governo um Estado que exerce enorme peso sobre a sociedade — expropria por impostos cerca de 35% do PIB e mesmo assim gasta mais do que isso —, presta serviços de baixa qualidade e, na redistribuição do que arrecada, ainda comete injustiças sociais. Concentra renda, como na Previdência.

O valor da ordem liberal: Editorial | O Estado de S. Paulo

Os fundamentos da ordem liberal têm sido atacados como há muito não se via. Uma crescente oposição ao livre mercado, à ortodoxia econômica, às liberdades políticas e a pilares do Estado Democrático de Direito, como a liberdade de imprensa e a alternância de poder, viceja em variados pontos do planeta. Para desaire dos ideólogos do liberalismo, o epicentro das críticas àquela combinação virtuosa, responsável por um dos mais duradouros períodos de desenvolvimento humano a partir do século 19, é a Europa, embora não esteja restrito ao velho continente.

Hoje, os liberais se veem confrontados pela ideia de uma “nova ordem” política e econômica defendida por políticos e partidos, à esquerda e à direita, ditos “antissistema”. E tudo cabe neste “sistema” a ser destruído, a raiz de todos os males das sociedades modernas aos olhares de populistas e liberticidas. Do multilateralismo à democracia representativa, nada mais parece servir para dar respostas para os complexos desafios do tempo presente.

O movimento contra a ordem liberal floresceu na esteira do desencanto provocado pela crise financeira de 2008. A globalização produziu significativos resultados econômicos e sociais, na medida em que integrou mercados e redefiniu as fronteiras da comunicação. Não obstante, trouxe a reboque uma onda de insatisfação no seio das camadas populares que não foram contempladas na divisão de seus frutos. Os efeitos dessa insatisfação também foram sentidos no Brasil.

A onda de desconfiança na chamada “velha política” e nos valores do liberalismo não se restringe ao sistema propriamente dito. O próprio modelo de liderança política tem sido contestado e o clamor popular pela ruptura com estruturas até então conhecidas ganha mais força, inclusive colhendo eloquentes resultados eleitorais. Percebe-se uma clara fissura entre representantes e representados. A confiança nas instituições moldadas em dois séculos de democracia liberal se esvai, como se aos olhos das sociedades não fossem mais os instrumentos certos para a conciliação de interesses múltiplos, muitas vezes díspares.

Dora Kramer: No Planalto como no palanque

- Blog da Dora Kramer | Veja

Na posse ‘salva’ por Michelle, Bolsonaro continuou falando para seus eleitores com o viés ideológico que tanto critica

O destaque absoluto na posse de Jair Bolsonaro não foi o presidente, mas a mulher do presidente pelo ineditismo do discurso de Michelle, não apenas pelo muito bem sacado lance de se dirigir ao público na linguagem brasileira de sinais (Libras), mas principalmente pelo fato em si: nunca se tinha visto tal protagonismo de uma primeira-dama (título retrógrado para a personagem em questão) em pronunciamento no parlatório. Adequado aos tempos e muito útil para a imagem de um presidente tido, entre outros anacronismos, como machista.

Quanto ao chefe da nação que inicia agora seu mandato, os dois discursos, no Congresso e no Palácio do Planalto, podem ter sido empolgantes para seus eleitores, mas foram francamente decepcionantes para a sociedade em geral. O conteúdo das falas de Bolsonaro desmentiu a manifesta intenção de arrefecer os ânimos polarizados e governar para todos.

O novo presidente e seus conselheiros optaram por enfatizar questão ideológica, o que por si denota uma atitude eivada de ideologia. Disse que “ideologias nefastas” não podem dividir os brasileiros, o que é um evidente sinal de que considera “más” as ideias dos que discordam dele e não o apoiaram na eleição e que devem, portanto, ser eliminadas da pauta nacional. Jair Bolsonaro não se mostrou um governante disposto à inclusão. Ao contrário, mostrou-se intolerante e impositivo. Quem se propõe a “reforçar a democracia” se contradiz quando estabelece como ponto de partida o fim de toda e qualquer militância política.

O embate, o contraditório, o conflito no campo ideológico é essencial ao exercício democrático. Os pronunciamentos estavam deslocados no tempo e o espaço. Prometeu um país antagônico ao PT como se não tivesse havido outro governo nos últimos dois anos e foi além falando em libertar o Brasil do socialismo. Qual socialismo? E o que dizer da prometida extinção do politicamente correto, tendência mundial decorrente de comportamentos sociais, não de atos de governo?

Cecília Meireles: Canção

No desequilíbrio dos mares,
as proas giram sozinhas…
Numa das naves que afundaram
é que certamente tu vinhas.

Eu te esperei todos os séculos
sem desespero e sem desgosto,
e morri de infinitas mortes
guardando sempre o mesmo rosto

Quando as ondas te carregaram
meu olhos, entre águas e areias,
cegaram como os das estátuas,
a tudo quanto existe alheias.

Minhas mãos pararam sobre o ar
e endureceram junto ao vento,
e perderam a cor que tinham
e a lembrança do movimento.

E o sorriso que eu te levava
desprendeu-se e caiu de mim:
e só talvez ele ainda viva
dentro destas águas sem fim.