- O Estado de S.Paulo
Nada parece indicar ares mais amenos nos dias que virão
Há já algum tempo não temos sido poupados de incômodos vieses, viseiras e amarras ideológicas, a pesarem como bolas de chumbo, e nada parece indicar ares mais amenos nos dias que virão. Deixando de lado o intermezzo representado por Michel Temer, generaliza-se a ideia de que na troca de guarda, em si natural, entre os governos da era Lula e o novo governo da ultradireita, afinidades eletivas se substituem umas às outras sem um padrão racional discernível, trocam-se preconceitos tanto na política interna quanto na externa, num jogo de espelhos que pretende repetir-se indefinidamente e, com isso, deformar a percepção das prosaicas questões reais.
De nada fomos poupados – ideologicamente – nos anos de ascensão e auge do petismo. Seria natural, para ficar em política externa e nas afinidades que ela propicia, que um partido de esquerda – e de resto qualquer partido – buscasse contatos e relações com seus pares, especialmente na própria região. Provincianos como muitas vezes somos, esquecemo-nos de que a política tem constitutivamente um nexo nacional-internacional, e a troca de ideias, a busca de convergências e mesmo o apoio mútuo, respeitadas as normas constitucionais, constituem recursos preciosos para agremiações comprometidas com a estabilidade das respectivas democracias e, ao mesmo tempo, com a realização de propósitos mudancistas.
O que não era natural, e mais uma vez nos perderia, foi a associação entre partidos cuja natureza deveria ser essencialmente diversa: uma coisa é o “Ocidente” político, no qual felizmente nos encontramos desde 1988, outra é o “Oriente”, com suas revoluções nacional-populares, seus caudilhos que jamais se despedem, sua retórica “anti-imperialista” e a invariável denúncia dos “inimigos da pátria” e dos “agentes da CIA”. Uma vez afundado em tal terreno movediço, erguer-se daí requer as artes do Barão de Münchhausen, o que parece estar além das capacidades do atual grupo dirigente petista, como o comprova o apoio alucinado à violação maciça dos direitos humanos perpetrada na Venezuela de Chávez e de Maduro.
Uma esquerda tão desprovida, se não existisse, teria de ser inventada pela extrema direita que ora ensaia seus primeiros passos no governo do País. Deve-se constatar, de início, que a linguagem do poder, especialmente de vocação autoritária, nunca é muito original: também no universo da ultradireita temos de nos haver eternamente com inimigos internos e agentes de ideologias exóticas, como se homens e mulheres de esquerda não pudessem ser atores legítimos numa democracia digna do nome ou, ainda, como se fosse possível imaginar um Brasil sem Graciliano, Niemeyer, Portinari ou Gullar.