Para José Murilo de Carvalho, riscos de fragmentação política são reais e Bolsonaro pode ir “pelo mesmo caminho” dos governos breves de Jânio e Collor.
Sonia Racy / O Estado de S. Paulo
O desafio central da democracia brasileira, hoje, é “incorporar à sociedade e ao mercado as massas incluídas na política via governos republicanos”. E essa é uma tarefa urgente porque, até aqui , o sistema “não tem sido capaz de absorver a invasão de povo que se deu após a década de 1930”.
É com esse olhar panorâmico de historiador que José Murilo de Carvalho faz suas contas sobre os 100 dias de governo Bolsonaro. O País, diz ele, tem um presidente “com precário suporte partidário, visão estreita do mundo e um governo errático”. As incertezas de hoje lhe trazem à memória os curtos períodos dos presidentes Jânio Quadros (janeiro a agosto de 1961) e Fernando Collor (1990 a 92). O cientista político da UFRJ vê Jair Bolsonaro indo “pelo caminho desses antecessores”. E aonde isso vai dar? “Os problemas tendem a se acumular e vamos nos distanciar da meta de um país viável”.
Nesta entrevista a Gabriel Manzano, o autor – com mais de 20 livros publicados –, que integra a Academia Brasileira de Letras e também a de Ciências, afirma que “o tsunami das redes sociais aumentará a fragmentação política”. Mas pondera, também, que “há sempre espaço para as recomposições políticas, dependendo da criatividade e da qualidade das lideranças”. A seguir, os principais trechos da conversa.
• De que modo definiria a experiência política que o País viveu nestes 100 dias sob o governo Bolsonaro?
Já passamos por Jânio Quadros e Fernando Collor, os breves. Ambos foram impulsionados por eleitorado, em boa parte de classe média, insatisfeito com os padrões éticos vigentes na política, o primeiro brandindo uma vassoura, o segundo atacando marajás. Descuidados, ambos, do apoio parlamentar e partidário. Jânio governou por bilhetinhos, proibiu brigas de galo e biquínis, tentou um autogolpe, falhou e renunciou. Collor congelou a poupança dos outros, rivalizou com os marajás no trato com a coisa pública e renunciou sob a ameaça de impeachment.
• Qual a comparação entre os dois e atual presidente?
Bolsonaro também surfou na onda anticorrupção – no caso, levantada pela Operação Lava Jato. Como seus dois antecessores, ele tem precário suporte partidário, postura autocrática na política, uma visão em preto e branco do Brasil e governo errático. Vai pelo caminho dos dois antecessores.
• A nova equipe no Planalto revela falta de projeto nacional e uma escassa familiaridade com os processos do poder. Acredita que a força da ideologia – alardeada pela direita agora no poder – basta para garantir sua solidez no governo? Ou ele se desgasta aí pela frente?
Desgasta-se e se enfraquece. É um capitão cercado de generais (ainda bem) e por uma prole turbulenta, com visão estreita do mundo, sem plano geral de governo, com algumas propostas que podem ser desastrosas para o País, como as que se referem à política externa, à educação, ao meio ambiente, aos direitos humanos. Ele parece esquecer-se de que boa parte dos votos que o elegeram não foi a seu favor, mas contra o partido de seu adversário. Com pouco tempo na Presidência, já viu o apoio a seu governo cair a níveis mais baixos que os de seus antecessores. Seus dois ministros mais respeitados, o da Fazenda e o da Justiça, veem-se com frequência desautorizados e podem desembarcar do governo.
• Como a esquerda sumiu do mapa, pode-se dizer que o País vive um novo momento? Como compara a atual “virada política”, que foi pelo voto, a rupturas como as de 1930, 1946, 1964?
Como sugeri acima, comparo a eleição do atual presidente com as de Jânio e de Collor. Todas as três democráticas e legítimas – ponto que nunca se deve esquecer, sob pena de se cometerem sérios erros de diagnóstico provocados pela ênfase excessiva em personalidades. Nenhuma dessas eleições configurou propriamente virada política. Foram antes sintomas de problemas com nosso sistema representativo, que não tem sido capaz de absorver a invasão de povo que se deu após a década de 1930.