Governos populistas atacam liberdades individuais e instituições, mas alguns deles recorrem ao liberalismo na agenda econômica
Liberalismo, o curinga de populistas
Por Amália Safatle | Eu &Fim de Semana / Valor Econômico
SÃO PAULO - O liberalismo virou uma espécie de curinga a que a política volta e meia recorre, seja para execrá-lo, seja para tentar colher frutos com sua parceria. A mais nova tentativa dos liberais de resgatar seus pilares está em "O Chamado da Tribo - Grandes Pensadores para o Nosso Tempo", do Nobel de Literatura peruano Mario Vargas Llosa, que acaba de ser lançado no Brasil pela Objetiva.
Autobiográfico, é um ensaio em que Vargas Llosa descreve seu percurso de vida na direção de ideais liberais, distanciando-se da "juventude impregnada de marxismo e existencialismo sartriano". Ao relatar a evolução dessas ideias por meio de expoentes do pensamento - desde Adam Smith, nascido em 1723, passando por José Ortega y Gasset, Friedrich August von Hayek, Karl Popper, Isaiah Berlin, Raymond Aron, até Jean-François Revel, morto em 2006 -, o escritor reforça o elo entre o liberalismo e a revalorização da democracia. Trata-se de contraponto à disputa de narrativas que hoje se vê no mundo da política.
Narrativa como a do presidente da Rússia, Vladimir Putin, que, em entrevista às vésperas do G-20, atacou o liberalismo, acusando-o dos males que assolam o mundo, das crises migratórias ao multiculturalismo que destrói valores familiares. Ou como do persistente movimento dos coletes amarelos na França, ao lembrar sempre que a globalização gerou nas democracias liberais um clube de elite do qual foram alijados. Ou da onda populista de "democracias iliberais" como Hungria, Polônia, Turquia e Itália, nas quais grassa o ataque às instituições e às liberdades individuais, colocando em xeque o que esses países chamam de democracia.
Enquanto isso, no Brasil, o governo do presidente Jair Bolsonaro (PSL) conta com uma equipe econômica de cunho liberal e ministros e assessores de outras áreas que marcam posição contra o "marxismo" que teria guiado gestões petistas, sobretudo a partir do segundo mandato do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. "Da mesma forma que hoje vemos uma aliança de oportunidades, de ocasião ou de conveniência entre o liberalismo e um presidente com uma pauta conservadora de costumes, no passado vimos a aliança entre uma pauta liberal reformista e um governo social-democrata", diz o economista Gustavo Franco, um dos pais do Plano Real e ex-diretor do Banco Central no governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB).
Diante da pergunta se o atual governo pode ser considerado liberal, Franco responde que não existe até o momento nenhum elemento que o permita afirmar isso. Para o economista, o modo como a pauta liberal entrou na candidatura Jair Bolsonaro foi, sem dúvida, um casamento de conveniência que ocorreu em muitas outras chapas de 2018, mesmo a do PSDB. "O PSDB largou qualquer pudor em abraçar essa pauta nesta campanha e apresentava uma versão bem mais radical do que foi a sua prática histórica. Quase todas as outras candidaturas, exceto a do PT e a do Ciro [Gomes], abraçaram entusiasticamente essa pauta", diz o autor do programa econômico de João Amoêdo, candidato à Presidência pelo Novo.
"Bolsonaro tem uma percepção muito forte e viu que estava vindo por baixo um 'bicho liberal', assim como tinha um 'bicho conservador' chegando também. Então ele pegou isso para contrapor ao marxismo e ao petismo", afirma Hélio Beltrão, fundador do Instituto Mises, "think tank" ultraliberal onde o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) chegou a ter aulas. "[Jair Bolsonaro] enxergou uma oportunidade política que vinha da sociedade e a capitalizou politicamente. Mesmo que, no fundo, ele não acredite no liberalismo, isso é irrelevante para a política."
O "bicho liberal" parece ser representado, sobretudo, pela população pentecostal. "O crescimento da igreja evangélica no Brasil é um dos elementos que nos permite pensar que esse liberalismo já estava aí há muitos anos, e ninguém estava notando", comenta Franco, para quem Bolsonaro usou de forma muito competente essa plataforma, que antes estava desorganizada. "Na eleição anterior, você via um discurso ultraliberal do Pastor Everaldo [PSC]. Ninguém levava a sério, era um candidato nanico, mas era o cara que falava da privatização da Petrobras. Parecia exótico, mas, ao mesmo tempo, não parecia."
Essa significativa fatia da população - estimada em 30% - que cultiva valores como esforço pessoal e prosperidade material, já tinha a sensação de que o Estado brasileiro não é capaz de entregar o que promete, frustração agudizada pelas denúncias de corrupção e desperdício de dinheiro público, segundo Franco. "O episódio do petrolão vem se juntar ao antipetismo e desemboca em um sentimento liberal pró-mercado. Ou seja, cresce uma demanda por horizontalidade, por regras do jogo iguais, por individualismo."
O dado novo, para Sergio Fausto, superintendente-executivo da Fundação FHC, é que agora existe esse bloco organizado e com raízes espraiadas na sociedade: "Os grupos evangélicos estão crescendo e vieram para ficar", afirma. Mas qual é a alma do liberalismo, afinal? Segundo Fausto, embora não seja um monólito, o liberalismo possui vertentes e matizes como toda filosofia política importante, seu fundamento básico é a ideia de que a boa política e a boa economia dependem da proteção das liberdades individuais.
"O liberalismo basicamente pressupõe que o motor do progresso humano é a ação dos indivíduos. De uma maneira simplória, esse é o fundamento que unifica as várias correntes", afirma Fausto. Ele observa que o liberalismo econômico, o político e o de costumes não são a mesma coisa, podendo estar ou não entrelaçados. A partir de diferentes combinações, distingue basicamente os três grupos atuantes no país.
O primeiro é liberal nas três vertentes: na economia, na política e nos costumes. Na política, porque é a favor da separação dos Poderes, da contenção do poder do presidente e da liberdade de imprensa. Nos costumes, porque entende que isso é uma questão de esfera privada, ou seja, o Estado não tem de inferir com quem o sujeito dorme, enquanto cabe à mulher as escolhas sobre o seu próprio corpo. "Essa é uma família de liberais puro-sangue que, no Brasil, tem uma expressão política ainda muito tímida."
O segundo grupo tem como exemplo o governo Bolsonaro, que, segundo Fausto, combina liberalismo econômico, liberalismo político pela metade e um conservadorismo nos costumes que beira o reacionarismo político moral, com o forte componente pentecostal. "Diria que chega a ser retrógrado, pois o conservador não é contra a mudança, ele a tolera desde que se preservem certas tradições que constituem os esteios da sociedade. Na política, esse grupo é liberal pela metade, quando enfatiza a ordem como valor, admitindo ferir algumas liberdades se isso for necessário para manter a ordem social."
Já o terceiro agrupamento é liberal na política, relativamente liberal do ponto de vista econômico e profundamente liberal nos costumes. Defende um Estado constitucionalmente limitado, um setor privado forte e não acredita que uma sociedade moderna e complexa possa ser viável com políticas de Estado mínimo.