domingo, 4 de agosto de 2019

Fernando Henrique Cardoso*: Falta fazer

- O Estado de S.Paulo | O Globo

Não basta a boa economia, é preciso o bom governo e a boa sociedade

No artigo anterior escrevi sobre o Plano Real. E no pós-Real? Muita coisa mudou na economia, na política e na sociedade. O pesadelo da inflação e da dívida externa ficou no passado. Políticas universais de educação e saúde se estruturaram e programas de transferência de renda para os mais pobres se estabeleceram. Houve alguma melhoria – nunca suficiente – na renda do trabalho. Falta ainda algo essencial: taxas de crescimento contínuas que – mesmo sem serem espetaculares – permitam oferecer mais emprego e renda. Para isso o ordenamento das contas públicas, conquista perdida nos governos do PT, é condição necessária. Os passos iniciais para sua recuperação foram dados com a reforma da Previdência.

Nem tudo, porém, depende só de nós. Exemplifico: foi o entendimento dos Estados Unidos com a China, levado a efeito pela dupla Nixon-Kissinger, que assentou as bases da estabilidade e do crescimento mundial nas décadas seguintes. Os benefícios plenos daquele entendimento se concretizaram depois que Gorbachev desencadeou um processo de mudança que resultou na Queda do Muro de Berlim e no colapso da União Soviética, facilitando a ampliação da União Europeia e pondo fim à guerra fria. Nesse contexto, aos poucos, a ideologia terceiro-mundista foi se debilitando, abrindo espaço para uma nova era de convivência entre os países: a da globalização. Com ela a pobreza mundial diminuiu, houve intensificação do comércio internacional e algumas nações da periferia mundial aproveitaram para se integrar às cadeias globais de valor.

Entre nós, os efeitos da estabilização e da maior integração econômica tornaram possível difundir políticas sociais inclusivas e introduzir tecnologias de ponta na agricultura, na mineração, nos setores financeiros, bem como em alguns processos industriais. Nossas exportações, que ainda são modestas, tiveram chance de expansão, em particular durante o boom das commodities. Em conjunto, isso deu a sensação de que “chegara a vez do Brasil”.

Vera Magalhães: Onde está o centro?

- O Estado de S.Paulo

Reações ainda tímidas aos arroubos autoritários de Bolsonaro mostram falta de alternativas

As últimas semanas foram inquietantes pela investida de Jair Bolsonaro, em ações e palavras, contra instituições, a ciência, o conhecimento, os fatos históricos e princípios como os da humanidade e impessoalidade. As reações começam a surgir por parte dos demais Poderes, como em boa hora mostrou o Supremo Tribunal Federal. Mas a maneira ainda tímida com que os partidos e lideranças políticas do chamado centro democrático se comportam diante dos arreganhos do presidente mostra que o Brasil está muito longe de construir uma alternativa viável a uma radicalização cada vez mais perigosa.

Na centro-direita, o governador João Doria Jr. e o ex-presidenciável João Amoêdo tratam de procurar se distanciar de Bolsonaro, delimitando as diferenças entre o discurso e a prática dos partidos que lideram e o bolsonarismo. Mas tanto o PSDB quanto o Novo estão entre as legendas que mais apoio empenharam aos projetos do governo no Congresso.

Imbuídos do dever de apoiar a pauta econômica de viés liberal de Paulo Guedes, os partidos de centro e de centro-direita muitas vezes dão maior sustentação às votações do Executivo que o canhestro PSL, balaio de gatos formado por pessoas que se filiaram na última hora para surfar a onda do “mito”.

O apoio no Congresso não impede que integrantes desse centro sejam diariamente hostilizados pelas hordas bolsonaristas a serviço da destruição de biografias, e que os partidos sejam estigmatizados como venais, fisiológicos, corruptos e outras tantas pechas – muitas das quais fizeram historicamente por merecer.

Eliane Cantanhêde: Brasília em chamas

- O Estado de S.Paulo

Supremo dá recados fortes a Bolsonaro, mas os dois lados miram o mesmo alvo: o Coaf

Agosto começou quente e Brasília está em chamas. Não bastasse a seca inclemente que assola a capital da República nesta época do ano, o Supremo reabriu impondo derrotas ao governo Bolsonaro, já no primeiro dia do mês e do semestre do Judiciário, mas com um movimento estranho, intrigante: a confluência de interesses entre Supremo e o próprio Bolsonaro quando se trata de Coaf. Aí, é o ministro Sérgio Moro quem arde.

No 1.º de agosto, o Supremo fez um “strike”. Derrubou uma medida provisória de Bolsonaro, falou grosso sobre o desrespeito aos Poderes, proibiu a Receita de investigar seus ministros e familiares e confrontou Moro ao proibir a destruição das mensagens captadas pelos hackers e exigir cópia de toda a papelada. O Executivo não terá mais acesso exclusivo às conversas que vêm sendo divulgadas pelo site The Intercept Brasil. Como na Guerra Fria, os dois lados agora têm bomba atômica.

O arsenal do Supremo, porém, não para aí. Na pauta deste semestre, há o pedido de suspeição do então juiz Moro no processo que levou o ex-presidente Lula à cadeia, há a decisão monocrática do presidente Dias Toffoli de suspender todos os processos com dados do Coaf sem autorização judicial e, “last but not least”, paira no ar a delicadíssima questão da prisão após condenação em segunda instância. Todas com potencial de querosene na fogueira.

Nos holofotes, duras críticas a Bolsonaro e à “transgressão” contra a independência dos Poderes, como bem bradou o decano Celso de Mello. Nos bastidores, intensas articulações para dar um basta na desenvoltura do procurador Deltan Dallagnol, que acumula a dupla condição de porta-voz da Lava Jato e pivô da crise dos hackers e que ousou brincar de investigar as mulheres de ministros da mais alta Corte do País – com direito a posteriores vazamentos para a imprensa.

Elio Gaspari: Ele é assim mesmo, mas é estratégia

- O Globo | Folha de S. Paulo

Bolsonaro nunca mudou nem vai mudar, o problema de seu estilo está na relação com a verdade 

‘Sou assim mesmo. Não tem estratégia’, disse o presidente Jair Bolsonaro à repórter Jussara Soares. Meia verdade, ele é assim mesmo, mas há uma estratégia para lá de bem-sucedida no seu estilo inflamado e provocador.

Em 2005 ele era um deputado periférico, havia defendido o fuzilamento do presidente Fernando Henrique Cardoso e foi entrevistado por Jô Soares (o vídeo está na rede). A conversa durou 21 minutos. Lá pelo final (minuto 19:00), Jô tocou na ideia de se passar FH pelas armas e Bolsonaro respondeu, rindo: “Se eu não peço o fuzilamento de Fernando Henrique Cardoso, você jamais estaria me entrevistando aqui agora”.

Bingo. Se Bolsonaro não tivesse falado do desaparecimento de Fernando Santa Cruz, talvez houvesse mais gente falando dos 12 milhões de desempregados. Essa é a parte do comportamento do atual presidente que pode ser chamada de estratégica. A outra é a sua maneira de ser, e nela há dois componentes. Numa estão suas opiniões, que, como as de todo mundo, podem mudar. Noutra estão os seus próprios fatos, que são só dele.

Quando Jô classificou a ideia da execução de FH como “barbaridade” , Bolsonaro explicou: “Barbaridade é privatizar a Vale do Rio Doce, como ele fez, é privatizar as telecomunicações, é entregar as nossas reservas petrolíferas para o capital externo.”

Mudou de opinião, tudo bem.

Janio de Freitas: Bolsonaro contra o regime

- Folha de S. Paulo

Desaforos à Constituição e falta de decoro prenunciam entrada no pântano

Jair Bolsonaro cruzou um limite que o regime vigente exige ser respeitado, para defender sua própria sobrevivência. Por inconsciência ou porque ainda não fosse hora de levar a tanto as provocações e agressões do seu projeto antidemocrático, Bolsonaro não investira contra a convivência e a independência dos Três Poderes. Foi o que fez agora.

O antecedente desse avanço já o prenunciava, consistindo, em palavras do ministro Celso de Mello no Supremo, na “inaceitável transgressão à autoridade da Constituição”. Apesar do veto constitucional à reedição de medida provisória no mesmo ano legislativo de sua recusa, Bolsonaro a fez para insistir na entrega, mais que suspeita, da demarcação de terras indígenas ao Ministério da Agricultura. Chamado a decidir, o Supremo devolveu a demarcação à entidade natural, a Funai. Por unanimidade.

A questão, em si, nada teve de incomum no tribunal. Exaltou-o o ato abusivo da Presidência da República. Celso de Mello parece cansado, já, dos desaforos ao texto constitucional, de seu especial afeto. Mas Bolsonaro não parou no desafio. Pouco depois da decisão judicial, aproveitou uma fala sobre radares de estrada para investir contra o sistema. Não falou ao grupo habitual de repórteres. Falou pelas redes. E ao vivo, áspero:

“Está uma briga, porque a Justiça em cima da gente [...], é a Justiça lamentavelmente se metendo em tudo”. Nem é divergência, é briga.

Nas redes, ao vivo, é claro o propósito de jogar seus milhões de seguidores, ou a opinião pública em geral, contra o Supremo. Por extensão, contra o Judiciário. É, no mínimo e por certo, tática de dupla pressão: para acionar seguidores e para retrair alguns ministros em assuntos do interesse de Bolsonaro.

Para além do mínimo, pode ser o início de nova escalada, como houve nos últimos meses. Não faria sentido que seu objetivo estivesse só no Supremo —cuja desfiguração, aliás, o então candidato prometeu aos furiosos na campanha.

A indicação formal de Eduardo Bolsonaro ao Senado, para embaixador nos Estados Unidos, é um desafio seguindo outro. Nepotismo ostensivo na falta de formação, de experiência e pelo aplauso de Eduardo a Trump e suas políticas. Também entre o pileque paternal e a incitação contra o Supremo os objetivos se confundem.

Bolsonaro empurrou para a frente outros limites, no caso, pessoais. É de um despudor vergonhoso para o país esta regurgitação sua: “Estou cada vez mais apaixonado pelo Trump”. Nem o Brasil atual merece ver-se sem resposta alguma de suas instituições, quando a função presidencial é sujeitada a tamanha falta de decoro. Se ao apaixonado falta compostura, espera-se que alguém a tenha para impô-la, como quer o que reste de dignidade ao país. Ou não resta?

Além de Bolsonaro, as revelações do The Intercept Brasil/Folhaavançaram. Na temática, com Deltan Dallagnol e outros, inclusive da Receita Federal, agindo sem base legal contra ministros do Supremo.

O repúdio às mentiras de Bolsonaro sobre Fernando Santa Cruz, assassinado pela ditadura, avançaram muito a adjetivação definidora de Bolsonaro, como “repugnante”, “nojento” e outros achados. Mas Bolsonaro avançou contra o regime de Constituição democrática. Uma entrada no pântano.

Bruno Boghossian: Euforia e apatia no tribunal

- Folha de S. Paulo

Tribunal precisará decidir como enfrentar o caso ou ficará na apatia dos últimos anos

A força-tarefa de Curitiba soprava as velinhas do primeiro aniversário da Lava Jato, em 2015, quando Gilmar Mendes estreou suas críticas à operação. Ele negou a soltura de um grupo de empresários, mas disse que a duração das prisões preventivas decretadas por Sergio Moro estava “se aproximando do limite”.

O tom das reprimendas subiu desde então, e o tribunal se mexeu para impor freios a alguns métodos da equipe responsável pelo caso. Na prática, porém, a força-tarefa fez o que queria nos anos seguintes.

Como se sabe agora, o juiz da operação abandonou a neutralidade ao atuar em parceria com os acusadores. Indicou uma testemunha e deu conselhos antes de escrever suas sentenças. Descobriu-se ainda que o chefe dos procuradores tentou investigar ilegalmente ministros do STF considerados seus adversários.

O vazamento das conversas da força-tarefa deu materialidade à discussão sobre os limites ultrapassados em Curitiba. O Supremo, no entanto, deu sinais de que não sabe muito bem o que fazer a partir daqui.

Bernardo Carvalho*: Pulsão de morte

- Folha de S. Paulo

Bolsonaro é capitão oportunista, capaz de dirigir o barco para a tormenta de propósito

Dessa vez, tenho que concordar com a Damares. Eduardo Bolsonaro é a cara do país que elegeu o pai dele. Ou pelo menos daquela pequena mas determinante parcela de eleitores supostamente educados que agora se envergonha e não se reconhece ao olhar no espelho, embora não haja nenhuma surpresa nem contradição entre Bolsonaro candidato a presidente e o filho indicado pelo pai a embaixador em Washington.

É com essa parcela que devemos conversar? Beleza. Não vamos chamá-los de fascistas, claro, mas será que podemos ao menos tratá-los como adultos responsáveis por seus atos?

Fora a grande parte de desentendidos, manipulados e desiludidos entre os eleitores de Bolsonaro, espanta que os que votaram com a consciência do oportunismo esperassem do presidente algo em desacordo com o sentido de oportunidade.

O oportunismo os levou a subestimar os planos do ex-militar de baixa patente, de aparência tosca e manipulável, que ao longo de décadas de vida pública nunca fez nada pelo país, mas soube articular, com a colaboração dos filhos na linha de frente, uma bem-sucedida estratégia de ocupação do poder. Ao que parece, o oportunismo aqui é contagiante.

Pedro de Santi*: O presidente mesa de bar

- O Estado de S.Paulo

Amplas parcelas da população sentem-se representadas pelo jeito ‘tiozão’ de Bolsonaro

Informal, irreverente e rude. Pelas controvérsias criadas, o presidente demonstra ter a mesma compostura de alguém no happy hour.

Há poucas semanas, o presidente Jair Bolsonaro comunicou que passaria por uma intervenção dentária e não poderia falar por três dias. Estava dada a piada pronta. Mesmo entre apoiadores, foi comemorado o intervalo sem declarações polêmicas. Seu disparo quase diário já é uma marca deste governo.

Mais que polêmicas, muitas das declarações têm um tom de grande informalidade e, por vezes, grosseria. Tudo parece fora do que se espera de alguém investido da posição de presidente da República.

Houve recentemente a referência aos governadores do Nordeste como “paraíbas”; assim como a fala sobre oferecer filé aos filhos sempre que puder, ao indicar um deles ao cargo de embaixador do Brasil nos Estados Unidos. Ou dizer saber do fim que levou o pai desaparecido do presidente da OAB, Fernando Santa Cruz, preso durante a ditadura militar. Os exemplos se acumulam.
Como entender essa forma de narrativa?

Que efeito produz?

A intencionalidade dessa forma de comunicação só poderia ser conhecida com uma conversa com seu autor, o que não nos é acessível. Mas sabemos que o efeito polêmico é bem recebido. Ante a reação contra a indicação do filho para a embaixada, o presidente disse que, “se estão reclamando, deve ser uma coisa boa”.

As hipóteses extremas seriam: em primeiro lugar, a expressão de um homem simplório e inconsequente; e em segundo, um plano de comunicação muito bem orientado. Talvez tais hipóteses não sejam excludentes ou inteiramente certas, mas chamo a atenção para três dimensões psicológicas envolvidas.

Luiz Carlos Azedo: Romantismo, ciência e fé

- Nas entrelinhas / Correio Braziliense

“Diante da revolução tecnológica global, a subordinação da ciência à religião e da razão à fé não tem a menor chance de dar certo”

O romantismo não foi apenas um movimento artístico e cultural, cujos grandes expoentes foram o espanhol Francisco Goya e o francês Eugène Delacroix, na pintura, o inglês Lord Byron e o alemão Johann Wolfgang von Goethe, na literatura. Foi também um movimento político e filosófico, que surgiu na Europa em meados do século 18 e durou quase todo o século 19. Caracterizou-se como uma visão de mundo contrária ao racionalismo e ao Iluminismo, marcadamente nacionalista, que viria a ter um papel importante na consolidação dos estados nacionais, inclusive no Brasil. O romantismo valoriza o individualismo, a criatividade e a imaginação popular, a inspiração fugaz e a fé para remover os obstáculos da vida.

O teólogo alemão Friedrich Schleiermacher, professor da Universidade de Berlim, bebeu das águas do romantismo na virada do século 18 para 19. Ao morrer, em 1934, deixou duas obras radicais sobre teologia — Sobre a religião e A fé cristã – e uma nova doutrina, o liberalismo teológico, que teve grande influência na Europa e nos Estados Unidos. Seu esforço intelectual foi voltado para dar uma resposta à Teoria da Evolução de Charles Darwin, que, ao publicar sua obra-prima, A origem das espécies, gerou a grande tensão entre a visão conservadora da Bíblia e a ciência que permanece até hoje. Essa tensão era preexistente, remonta à teoria do astrônomo polonês Copérnico, publicada em 1543, na qual já afirmava que a Terra gira em torno do Sol e não o contrário, embora haja quem ainda acredite que a Terra é plana.

Durante certo período da Idade Média, a convivência pacífica entre a ciência e a religião foi estimulada pela Igreja Católica, sob inspiração de Tomás de Aquino, para quem uma compreensão maior da Criação levaria ao entendimento melhor do Criador. Entretanto, quando cientistas e teólogos começaram a chegar a conclusões diferentes, o confronto se instalou, como aconteceu, por exemplo, em relação ao cálculo infinitesimal estudado pelos monges católicos, que abalava os fundamentos da geometria aristotélica. No fim do século 18, com o avanço da ciência e do Iluminismo, os teólogos foram em busca de novas explicações para os fenômenos que preservassem a coexistência entre a religião e a ciência, a razão e a fé, para evitar que o cristianismo fosse ultrapassado pelo materialismo.

O pulo do gato de Schleiermacher foi equiparar a crença aos sentimentos, seguindo a trilha do romantismo, que colocava a emoção acima da razão, em vez de utilizar os mesmos critérios do conhecimento científico, equiparando experimentação e “revelação”, para provar a verdade do cristianismo. A ciência usa a razão humana para descobrir as coisas do mundo e explicar como ele existe; a Bíblia registra a experiência religiosa de seus autores, explica por que o mundo existe como ele é. Como e porque são perguntas complementares, logo, na visão do teólogo alemão, o avanço da ciência não invalidava a Bíblia.

Bernardo Mello Franco: Punidos pela honradez

- O Globo

A procuradora Eugenia Gonzaga e o físico Ricardo Galvão perderam cargos públicos nos últimos dias. Os dois foram demitidos por não se dobrar ao Planalto

Ela é procuradora regional da República e mestre em direito constitucional. Tornou-se referência nas áreas de direitos humanos e Justiça de transição. Ele é físico e engenheiro de telecomunicações. Fez doutorado no MIT, construiu um reator de fusão nuclear e ganhou prêmios internacionais de ciência.

Eugenia Gonzaga e Ricardo Galvão poderiam enriquecer no setor privado, mas escolheram se dedicar ao serviço público. Nos últimos dias, os dois foram punidos por exercer suas funções com honradez.

A procuradora foi afastada da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, da qual era presidente. Soube da exoneração pela imprensa, na manhã de quinta-feira. O governo não se dignou a avisá-la antes de publicar seu nome no Diário Oficial.

O físico foi demitido da direção do Inpe, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. Na sexta-feira, ele se apresentou em Brasília e ouviu que sua situação tinha ficado “complexa”. Foi forçado a deixar o cargo, apesar de ainda ter um ano e meio de mandato a cumprir.

A comissão dos desaparecidos foi criada em 1995, no governo FH. Deve-se a ela o reconhecimento de 479 vítimas da ditadura militar. O trabalho é complexo e permanente. No ano passado, foram identificadas mais duas ossadas da vala de Perus, que era usada pelos órgãos de repressão para ocultar cadáveres.

Há seis dias, Jair Bolsonaro espalhou uma falsa versão sobre a morte do estudante Fernando Santa Cruz, pai do atual presidente da OAB. A procuradora Eugenia contestou a declaração com documentos oficiais. O presidente não gostou de ser desmentido e mandou afastá-la do cargo.

Merval Pereira: Conflito de interesses

- O Globo

Como aconteceu na Itália das Mãos Limpas, interesses diversos se uniram para limitar a ação dos procuradores de Curitiba

O combate à corrupção e ao crime organizado, que se intensificou no país com a Operação Lava-Jato, entra agora, cinco anos depois, talvez na sua mais sensível etapa. Como aconteceu na Itália das Mãos Limpas, interesses diversos se uniram para tentar colocar limites à ação dos procuradores de Curitiba.

Uns com o intuito precípuo de não serem alcançados, ou conseguirem a anulação das condenações, outros preocupados com supostas transgressões legais praticadas no que um dos seus mais contundentes adversários, o ministro do Supremo Gilmar Mendes, chama de “o Direito de Curitiba”. Muitos, usando a segunda razão como escusa para atingir o primeiro objetivo.

Essa disputa de poder tem também o hoje ministro Sergio Moro na alça de mira, e como em todas as etapas há conflitos de interesses, surgem paradoxos inevitáveis. Apoiador declarado da Operação Lava-Jato, o que explicitou ao convidar Moro para seu Ministério, o presidente Bolsonaro acaba de dar novas cores à crise institucional em processo com a decisão de mudar o presidente do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), Roberto Leonel, indicado por Moro quando o órgão era subordinado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública.

Moro pediu para ficar com o Coaf na montagem do novo Ministério, órgão considerado imprescindível para o combate a crimes de colarinho branco e formação de quadrilha. Derrotado no Congresso, que transferiu o Coaf para a Fazenda, Moro terá nova derrota com a mudança de seu indicado, e pelas razões que se sabe.

A garantia de Bolsonaro de que nada mudaria no Coaf começa a desmoronar, e a pressão sobre o ministro Paulo Guedes coloca em xeque os outrora chamados superministros. Bolsonaro não gostou das críticas que Leonel fez à decisão do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli, de suspender as investigações baseadas em informações do Coaf sem autorização da Justiça.

A medida foi tomada a pedido da defesa de Flávio Bolsonaro, que está sendo investigado dentro de um processo que abrange diversos deputados e funcionários da Assembleia Legislativa do Rio.

São conflitos de interesse que interferem nas investigações sobre corrupção, obstáculos paralelos aos que estão sendo colocados no caminho da Operação Lava-Jato pelo Congresso, que reluta em aprovar o projeto anticrime de Moro, e também pelo Supremo.

Ascânio Seleme: Será que um dia ele aprende?

- O Globo

Parece que vai ser meio empurrado, mas um dia o presidente Jair Bolsonaro pode acabar aprendendo a governar. Ou comete um crime e cai. Melhor a primeira hipótese, o Brasil não merece mais um impeachment. Não falo por Bolsonaro, mas pelo país. Como já vimos duas vezes, tudo para enquanto o processo estiver em curso. E o país, que ameaça agora voltar a caminhar, não precisa de mais uma temporada de estagnação. Por ora, Bolsonaro vai sendo forçado a governar de acordo com as leis e a Constituição, às quais tem repulsa.

Já são muitos os episódios em que erros de governo produzidos por iniciativa presidencial foram corrigidos pelo Congresso Nacional ou pelo Supremo Tribunal Federal. A última correção foi humilhante e se deu por unanimidade de votos de um STF normalmente dividido, em que raríssimas foram as ocasiões onde todos os ministros votaram da mesma forma. Pois os dez ministros presentes na sessão de quinta-feira derrubaram a Medida Provisória reeditada por Bolsonaro transferindo para o Ministério da Agricultura a demarcação de terras indígenas.

Os ministros não apenas impediram a iniciativa esdrúxula, mas disseram coisas como; “inaceitável transgressão constitucional”; “agressiva inconstitucionalidade”; “ofensa ao princípio da divisão de poderes”. O que Bolsonaro queria fazer era mais uma tentativa de atropelar o Congresso, que já havia derrubado MP com o mesmo conteúdo. A Constituição proíbe reedição de MPs porque elas entram em vigor no dia da sua publicação e só perdem o efeito se derrubadas ou ignoradas pelo Congresso depois de 60 dias. Reeditar MP significa, portanto, colocar em vigor legislação que o Congresso rejeitou.

O gesto representa um desafio ao Congresso, uma tentativa de usurpar os seus poderes constitucionais. Foi isso o que o governo quis fazer, e bateu com a cara na porta do STF. Bolsonaro tentou se explicar dizendo que foi um erro da sua assessoria, um erro dele próprio. Verdade, foi um erro. Mas não foi um engano, a medida visava isso mesmo, afrontar e ultrapassar o Congresso. Não há bobo no Palácio do Planalto, embora pareça haver. Ninguém da Casa Civil levaria ao presidente uma afronta tão clara à Constituição se não fosse incentivado pelo próprio chefe.

Dorrit Harazim: O enterro de Woodstock

- O Globo

A tentativa de reviver Woodstock fracassou. Melhor assim, pois tinha tudo para dar errado. Melhor não tentar ressuscitar o que é único

Foi melhor assim, pois tinha tudo para dar errado. O enterro oficial da fantasia de reviver a era de Aquarius ocorreu quatro dias atrás, com o cancelamento formal do que estava programado para ser uma estelar edição em comemoração dos 50 anos de Woodstock. Deve ter sido um alívio até mesmo para Michael Lang, que tinha 24 anos quando coproduziu aquele épico musical da geração paz-amor-sexo e rock’n’roll, e que hoje, septuagenário, tenta sobreviver no mundo de 2019.

O projeto de agora acabou inviabilizado por brigas com investidores, pela dificuldade de obter um local —a versão de última hora do evento marcado para 16 de agosto ficaria espremida num anfiteatro com capacidade para míseras 30 mil pessoas —, pela desistência de nomes de peso como Miley Cyrus e Jay-Z, e pelo cipoal de exigências contratuais da indústria do entretenimento.

Sinal dos novos tempos: como os artistas contratados já haviam recebido seus cachês (vários bem acima de US$ 1 milhão), os organizadores sugerem que doem pelo menos 10% do embolsado a alguma causa social. De preferência para a ONG HeadCount, que ajuda residentes nos Estados Unidos a obter um registro eleitoral e votar em 2020. Ou seja, nada a ver com a alegria sem selfies de outra era. Melhor não tentar ressuscitar o que é único.

Corte para agosto de 1969, último mês do último verão dos anos 60 na calota Norte. O Woodstock original, cujo nome oficial nunca emplacou — “Uma Exposição Aquariana: 3 Dias de Paz & Música” —também teve tudo para dar errado. O local contratado precisou ser remanejado para uma fazenda de gado de 245 hectares a duas horas de Nova York. Perto de cem mil ingressos haviam sido vendidos a US$ 18 cada (cerca de R$ 450 em dinheiro de hoje) e outros 50 mil jovens já entupiam as estradas de acesso ao imenso descampado, quando ainda faltavam dois longos dias para os primeiros acordes.

Ricardo Noblat: Bolsonaro promete e faz

- Blog do Noblat / Veja

Governo da morte
Se o presidente da República defende o acesso irrestrito à posse de armas, se para ele bandido bom é bandido morto, e a tortura um método legítimo de se obter informações, por que policiais militares não podem gritar versos pedindo a decapitação de criminosos?

Podem, sim, como fizeram na semana passada diante do governador do Pará Helder Barbalho (PMDB), que a tudo ouviu calado. No caso do Rio, estimulados pelo governador, podem até atirar do alto de helicópteros na cabecinha de bandidos armados com fuzis.

Se o presidente da República defende pelo bem do Brasil que empresas de mineração possam explorar riquezas em áreas indígenas, por que garimpeiros não podem ser os primeiros a chegarem por lá mesmo que à custa da morte dos que oferecerem resistência às invasões?

Há 10 dias, tombou um cacique no interior do Amapá. A Polícia Federal foi investigar e não encontrou marcas de que ele tenha sido morto por invasores de terras. Seu corpo foi exumado com base na informação de que ele levou um tiro e teve os olhos furados. Uma barbaridade.

Se o presidente da República acha que o meio ambiente não está a perigo e que essa história de aquecimento global não passa de uma balela, por que ele haveria de se preocupar com o desmatamento galopante da Amazônia medido em tempo real por satélites?

É tudo mentira! A Amazônia vai bem, obrigado, e tanto que o capitão convidou o presidente da França e a primeira-ministra da Alemanha para sobrevoá-la e conferir. Só não se reuniu para discutir o assunto com o chanceler francês em visita ao país porque tinha que cortar o cabelo.

Por fim, e como o presidente disse antes de se eleger e repete desde que tomou posse: se é necessário destruir tudo que foi feito de errado para só depois se começar a construir, não é exatamente o que faz o seu governo há mais de sete meses? Seja franco!

Temos um governo da morte, como se vê, mas coerente, e que cumpre ao pé da letra o que prometeu. Se não for capaz de em apenas quatro anos derrubar e levantar um novo país, é natural que queira mais quatro. E – quem sabe? – depois mais quatro.

Gaudêncio Torquato*: A cultura individualista

- Blog do Noblat / Veja

O Estado-Espetáculo abre o palco da visibilidade

São múltiplas as razões para a extensão das redes criminosas nas sombras do Estado. Uma das fontes desse poder oculto é a própria Constituição de 88. Parece uma sandice, pela antinomia: a lei maior ser responsável por mazelas.Há lógica?

Ao abrir o leque de direitos sociais e individuais, a Carta construiu as vigas institucionais, conferindo-lhes autonomia, liberdade e competência funcional. Sistemas e aparelhos se robusteceram. O Estado liberal e o social convergiram em direção ao Estado Democrático de Direito, sob o qual o Poder Judiciário assume posição de relevo, fato que explica seu papel preponderante de hoje.

A judicialização da política, fenômeno dos últimos tempos, tem por base a ausência de legislação infraconstitucional, o que permite ao Judiciário entrar no vácuo e interpretar as normas.

Instituições do Estado de defesa do regime, da ordem jurídica e dos interesses sociais e individuais ganharam impulso. O Ministério Público, por exemplo, como instituição essencial à função jurisdicional, incorporou a missão de guardião maior da sociedade. Ganhou respeito, mas passou a ser questionada por seus exageros.

Juan Arias: O desprezo do presidente pelo melhor da alma do Brasil

- Jornal El País (Espanha)

O desprezo do presidente pelo melhor da alma do Brasil

Entre as muitas barbaridades pronunciadas irresponsavelmente pelo presidente Jair Bolsonaro nos primeiros sete meses de seu Governo, que Eliane Brum qualifica neste mesmo jornal de perversas em seu magnifico artigo Doente de Brasil, há uma que, talvez por ser estrangeiro, ofendeu-me de modo especial. É quando ele afirma: “Temos uma profunda repulsa por quem não é brasileiro”.

A afirmação, no plural, daria a entender que não só ele, mas também todos os outros brasileiros, alimentam essa repulsa contra aqueles que não são, o que é uma injúria com milhões que sempre acolheram os estrangeiros com admirável gentileza, respeito e até carinho. Porque, além do mais, nas veias dos brasileiros pulsa o sangue de tantos povos vindos de todo o mundo. Basta pensar que só em São Paulo convivem em paz, sentindo-se brasileiros e sendo aceitos como tal, pessoas de 90 países diferentes.

Embora estejamos acostumados às palavras de desprezo do presidente de ultradireita por tudo que não sejam suas ordens autoritárias e seus horizontes mesquinhos de civilização, afirmar que sente repulsa por quem não é brasileiro é algo grave em quem deveria ser o defensor de todos e de cada um daqueles que habitam este grande continente, o quinto maior país do mundo. Todos, de algum modo, somos brasileiros. Aqui não há estrangeiros.

Segundo o dicionário Michaelis, repulsa é sinônimo de “repugnância, asco, aversão, revolta”. Se é isso que ele pensa daqueles que, como eu, escolheram livremente este país para viver e o sentem como seu, está fazendo uma tremenda injustiça que o define melhor do que todas as suas bravatas. Mais uma vez, com rejeição e repulsa em relação àqueles que não são brasileiros, o presidente revela que nele predominam os sentimentos negativos, suas pulsões de morte, sua atração por tudo que significa destruição e desqualificação do próximo.

Falta de civilidade: Editorial / O Estado de S. Paulo

Não é de hoje que se nota uma deterioração das virtudes cívicas na sociedade brasileira. São vários os sintomas desse empobrecimento das relações humanas: a diminuição do respeito pelo outro, a grosseria com vestes de espontaneidade, a incapacidade de ouvir quem pensa de forma diferente, a desconsideração pelas gerações mais velhas, a indiferença com quem presta serviços mais humildes, o ataque pessoal diante da falta de argumentos no debate público e tantas outras manifestações que não apenas geram desgosto quando são presenciadas, mas produzem profunda desesperança com o futuro do País.

Vale notar que não se trata apenas de etiquetas de boa educação ou do correto uso dos pronomes de tratamento, por exemplo. Aqui se faz referência a uma realidade social mais básica, que dá estrutura ao tecido social - o respeito pelo outro, seja quem ele for. Essa consideração independe se a outra pessoa é famosa, se tem ideias políticas semelhantes, se tem muitos recursos econômicos, se é da cidade ou do campo, se tem determinados parentescos ou amizades, se recebeu instrução formal ou não, se orientou a sua vida por critérios morais, culturais, sociais ou familiares semelhantes. O respeito pelo outro - que necessariamente deve se manifestar pelas boas maneiras - é elemento fundamental de uma sociedade.

Pois bem, essa deterioração do respeito pelo outro que, em maior ou menor grau, corrói as relações sociais e que tanta preocupação causa nas famílias, nas escolas, nas comunidades, nas igrejas e em tantas entidades preocupadas com o bem público, parece que se instalou no Palácio do Planalto. Sem maiores pudores, o presidente Jair Bolsonaro ostenta um estilo de pouco respeito por quem pensa ou atua de forma diferente da sua. Por exemplo, se a atuação da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) lhe desagrada, ele acha natural responder com ataques à memória do pai do presidente da instituição.

O amigo americano: Editorial / Folha de S. Paulo

No alinhamento entre Trump e Bolsonaro, convém examinar as intenções americanas

Embaixador em Washington e depois chanceler no início da ditadura militar de 1964, Juracy Magalhães cunhou uma frase que se tornaria perene na discussão em torno das relações com a superpotência: “O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”.

Nem mesmo os presidentes das etapas posteriores do regime concordavam muito com o postulado, fosse devido a suas inclinações ao intervencionismo econômico, fosse por simples desconfiança.

Afinal, desde a chamada Doutrina Monroe, no século 19, os EUA veem as Américas como sua área de influência natural.

O relacionamento seguiu dinâmica oscilante desde então. Entretanto Jair Bolsonaro (PSL) é explícito ao pregar a reversão do antiamericanismo que teria dominado a política externa brasileira nos 13 anos de governos petistas.

Tal guinada já começara no governo de Michel Temer (MDB), e Bolsonaro vendeu joio com trigo: se de fato havia ranço esquerdista no Itamaraty lulista, o mundo unipolar pós-Guerra Fria se transmutava e exigia novas alianças. A questão era mais de dosagem.

De todo modo, soam como música para o bolsonarismo, a lidar com declarações ruinosas do presidente, os recentes movimentos do congênere Donald Trump.

Má administração e corrupção têm de ser superadas: Editorial / O Globo

Início de um novo ciclo do petróleo, com reforço do gás, dá outra chance para estado, cidade e eleitores

A velha imagem da “tempestade perfeita” se ajusta à perfeição ao Rio de Janeiro, cidade e estado. Cariocas e fluminenses foram atingidos por efeitos negativos de problemas multidisciplinares — na economia, na política, no campo social, na segurança, nesta como reflexo das demais dificuldades. Na política, deve-se reconhecer as más escolhas dos eleitores.

A conjunção de tantos fatores negativos, poucas vezes vista em grandes entes da Federação, gerou perdas severas de renda e emprego. Dados de maio deste ano em comparação a 2014 revelam que a redução do emprego com carteira assinada no período, no estado, foi de 15,4%, o mais elevado do país, praticamente igual aos 15% do estado do Amapá. Nem Minas e Rio Grande do Sul, também em severa crise, apresentaram resultados tão negativos. A média do país foi de uma retração de 5,9%.

Em um prazo mais longo, de 1985 a 2017, 32 anos, o crescimento do emprego formal na economia fluminense foi pífio, o menor: 51,3%, contra 94,3% de São Paulo; 156,6% de Minas. No Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, 465,2% e 265,4%.

A informalidade é percebida nas ruas do Rio, uma questão nunca enfrentada como se deveria, impedida pelo forte teor de populismo com que se costuma fazer política no estado e na cidade. O perfil da Assembleia Legislativa e da Câmara de Vereadores do Rio é típico.

Ocorre um círculo vicioso perverso: uma região em que há forte clientelismo — exercido por meio de “centros sociais”, cabides de emprego etc — degrada o eleitorado, que assim perpetua o populismo, mesmo com personagens diferentes.

Murro em ponta de faca: Editorial / O Estado de S. Paulo

No dia 1.º de agosto o Supremo Tribunal Federal (STF) referendou uma liminar concedida em junho pelo ministro Luís Roberto Barroso suspendendo um trecho da Medida Provisória (MP) 886 que transferia a demarcação de terras indígenas da Funai para o Ministério da Agricultura. É a segunda derrota do governo na Corte. Na primeira, o plenário determinou que ele não poderia extinguir conselhos de políticas públicas que tenham sido criados por lei. Ambos os casos têm em comum a tentativa do Poder Executivo de atropelar prerrogativas do Legislativo. Não surpreende que em ambos a decisão do plenário tenha sido por unanimidade. O recado, dado logo na retomada das atividades após o recesso, é claro: ou o governo Bolsonaro põe freios ao seu voluntarismo ou eles terão de ser impostos, ostensivamente se necessário, pela Corte constitucional, com todo o desgaste ficando na conta do Executivo.

O confronto com o Congresso data do primeiro mês de governo. Em janeiro, o presidente Jair Bolsonaro editou uma medida provisória que reestruturava as pastas ministeriais. O texto foi aprovado pelo Congresso, com alterações. Entre elas, vetou-se a transferência da competência para a demarcação de terras indígenas da Funai para o Ministério da Agricultura. Na mesma sessão legislativa, o governo editou nova medida provisória, retomando a transferência.

Diante disso, quatro partidos ajuizaram ações diretas de inconstitucionalidade. Em junho, o relator das ações, ministro Luís Roberto Barroso, suspendeu liminarmente os efeitos da MP. “Houve uma manifestação expressa e formal do Congresso Nacional no sentido de rejeitar esta proposta legislativa do presidente da República”, disse o relator na ocasião. “Houve, no mesmo dia, a edição de nova MP, de número 886, para reincluir matérias que haviam sido rejeitadas.” Trata-se de uma flagrante infração ao artigo 62 da Constituição, que em seu parágrafo 10 aponta que “é vedada a reedição, na mesma sessão legislativa, de medida provisória que tenha sido rejeitada”.

Roteiros de radioteatro revelam lado humorístico de Antonio Callado

Textos redescobertos foram transmitidos durante e depois da 2.ª Guerra Mundial e trazem sátira de líderes nazistas

Elias Thomé Saliba*, especial para o Estado de S. Paulo / Aliás 

“Eu exijo reconhecimento público e não apenas cópias dos meus métodos”, adverte um ressuscitado Barão de Munchausen, em ríspido diálogo com Hitler e Goebbels – ao perceber que os chefões nazistas eram incompetentes ao malbaratar a arte maior de Munchausen que era a de tornar a verdade algo completamente desprezível. Este é um dos diálogos, dos mais engraçados, contidos nos 19 roteiros inéditos de radioteatro, escritos pelo jovem Antonio Callado, e, irradiados pela Seção Brasileira da BBC, nas noites de sexta-feira, entre os anos de 1943 e 1947. A preciosa edição, datação e organização dos manuscritos resultou do trabalho do professor Daniel Mandur Thomaz, da Universidade de Oxford.

Como era de se esperar, em pleno curso da 2ª Guerra Mundial – e em meio a uma outra guerra, a da propaganda radiofônica entre os britânicos de um lado e os alemães e italianos de outro – os textos guardam, além da óbvia anglofilia, um tom vagamente ufanista em algumas peças, já que o intuito agregador e patriótico, deveria cumprir a função de mobilizar os ânimos da população e dos próprios militares no esforço de guerra. Contudo, na grande maioria das peças - sobretudo as que se passam no cenário brasileiro - revela-se o esforço do escritor, não despido de uma certa nostalgia, em representar a realidade do Brasil através do que havia de melhor na sua história e na sua literatura. Lá estão Colombo, Pedro Alvares Cabral, Fernão Dias Paes, Castro Alves, Santos Dumond, Rui Barbosa – todos transmutados em personagens que expressam suas visões da realidade latino-americana e brasileira nos criativos diálogos contidos nas peças.

É o caso também do roteiro de Correio Brasiliense, de setembro de 1943, no qual há um diálogo bastante informal entre Hipólito José da Costa, responsável pelo famoso Correio Braziliense, de 1808 - uma das primeiras realizações do jornalismo brasileiro - e o historiador Robert Southey, autor da primeira History of Brazil – com este último tecendo elogios ao tom do jornal, segundo ele, longe do tom sedicioso e panfletário que levaram o jornalista ao exílio. Ou no tresloucado roteiro de “O recado de D. Pedro”, provavelmente transmitido em 1945, quase no final da guerra – com “O Sole Mio na abertura, com fading de um som de veículo barulhento” - no qual pracinhas brasileiros, encontram uma biblioteca para passar a noite e, um deles, ouvindo um barulho suspeito, acaba dando um tiro, que acerta, justamente volume da Ciência Nova, de Giambattista Vico. Após alguns momentos, é o próprio Vico quem ressuscita, descrevendo para os pracinhas a sua concepção de história cíclica e reivindicando o titulo de “pai da moderna concepção de História”; D. Pedro só aparece numa pontinha final, confundindo Vico com Dante e soltando pérolas, do tipo ...”O Brasil só progride à noite, quando os brasileiros estão dormindo...”

Poesia / Murilo Mendes: Solidariedade

Sou ligado pela herança do espírito e do sangue
Ao mártir, ao assassino, ao anarquista,
Sou ligado
Aos casais na terra e no ar,
Ao vendeiro da esquina,
Ao padre, ao mendigo,
à mulher da vida,
Ao mecânico, ao poeta, ao soldado,
Ao santo e ao demônio,
Construídos à minha imagem e semelhança.

– In Poesia Completa e Prosa