sexta-feira, 16 de agosto de 2019

Opinião do dia: Rosângela Bittar*

O centro parece aparentemente congestionado, mas não está. Tem os nomes citados e outros, todos com capacidade de crescer, ao contrário do último pleito em que seus candidatos não saíam do lugar por desgaste da política.

*Rosângela Bittar, jornalista, chefe de Redação, Brasília. ‘Quase primavera’, Valor Econômico, 14/8/2019

País vive mais longo ciclo de aumento da desigualdade

Desde 2014, são 17 trimestres em que concentração de renda cresceu

O índice de Gini,que mede a concentração de renda, passou de 0,6003 no quarto trimestre de 2014 para 0,6291 no segundo trimestre de 2019. Esses 17 trimestres formam o mais longo ciclo de aumento da desigualdade na série histórica brasileira, segundo estudo de Marcelo Neri, diretor do FGV Social. O desemprego é a principal causa. O número de brasileiros em busca de vaga há dois anos ou mais foi de 3,3 milhões em junho, o mais alto já registrado. De 2014 a 2019, a metade mais pobre da população perdeu 17,1% da renda, e o 1% mais rico ganhou mais 10,1%.

Gabriel Martins / O Globo

RENDA CONCENTRADA
O Brasil vive o ciclo mais longo de aumento da desigualdade de sua história. Estudo do economista Marcelo Neri, diretor do FGV Social, mostra que a concentração de renda cresce no país há 17 trimestres, pouco mais de quatro anos.

A piora na desigualdade, segundo Neri, é resultado do aumento do desemprego no país, que ainda aflige 12 milhões de pessoas:

—O principal fator que influencia o aumento da desigualdade é o desemprego, que, embora apresente sinais de alguma recuperação, ainda é grande no país.
O economista pondera que, quando o desemprego aumenta, o mercado de trabalho tende a diferenciar ainda mais os trabalhadores de acordo com o grau de instrução. Os mais capacitados têm mais chance do que os de baixa escolaridade.

A desigualdade é medida pelo índice de Gini, que mostra a concentração de renda e varia de zero a 1. Quanto mais próximo de 1, mais desigual é a distribuição de renda. No Brasil, o indicador segue tendência de alta desde o quarto trimestre de 2014, quando estava em 0,6003, até o segundo trimestre deste ano, quando alcançou 0,6291. A concentração de renda avançou no período que abrange os governos de Dilma Rousseff, Michel Temer e o primeiro semestre da gestão de Jair Bolsonaro.

Para João Saboia, professor do Instituto de Economia da UFRJ, a precariedade do mercado de trabalho é uma das causas que explicam o aumento da desigualdade no país.

— O que esses números mostram é a disparidade no mercado de trabalho. O índice de Gini abarca todas as fontes de renda, sejam elas formais ou informais. Sendo assim, inclui trabalhadores que têm renda irregular e os registrados, com salário fixo. O mercado ainda não consegue absorver o contingente de trabalhadores disponíveis. E, quando absorve, é de uma maneira muito desigual —explicou Saboia.

Merval Pereira || No centro da disputa

- O Globo

Tasso acredita que a disputa polarizada que Bolsonaro e PT incentivam serve aos dois, que se alimentam um do outro

O senador Tasso Jereissati, que já presidiu o PSDB e hoje se mantém como uma figura política influente no partido, embora sem cargo formal, avalia como provável que surja até 2022 um nome do centro político, mais à esquerda, mais à direita, para enfrentar a polarização de posições que continua dominando a disputa partidária.

Numa entrevista na quarta-feira na Central GloboNews, o senador tucano avaliou que se o centro político oferecer uma opção competitiva ao eleitorado, o que não aconteceu em 2018, a dualidade de extremos será quebrada.
Tasso se recusa a citar nomes de possíveis candidatos, alegando que a dinâmica política já demonstrou que não é possível fazer um prognóstico desses tanto tempo antes da eleição.

Lembrou o caso do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que pouco antes da eleição não sabia se teria condições de se eleger deputado federal e acabou ministro da Fazenda, além de candidato vitorioso à Presidência da República.

Tasso acredita que a disputa polarizada que Bolsonaro e PT incentivam serve aos dois, que se alimentam um do outro, numa espécie canibalesca de luta política. Por isso, o senador cearense considera que o eleitorado se cansará dessa destruição mútua, e procurará um candidato alternativo que represente a maioria.

Míriam Leitão || Natureza do MP e abuso de autoridade

- O Globo

Políticos querem limitar o poder das investigações, e Bolsonaro quer um Ministério Público que seja o seu espelho e siga as suas ordens

O Congresso há muito tempo quer aprovar o projeto de abuso de autoridade e ficou esperando um momento da fraqueza da Lava-Jato. Conseguiu. Nenhuma autoridade pode estar acima da lei e todas devem ter limites, mas o projeto foi feito com o interesse direto de inibir as investigações que atingem os políticos. O ex procurador-geral da República Claudio Fonteles diz que não é necessária uma lei, porque o ordenamento jurídico atual é o suficiente. O procurador regional José Robalinho Cavalcanti acredita que a lei foi melhorada durante a tramitação, mesmo assim defende que sejam vetados alguns pontos.

Os excessos de procuradores e policiais têm que ser combatidos, evidentemente. O caso mais eloquente de que isso é necessário é o da investigação que envolveu o então reitor da Universidade de Santa Catarina Luiz Carlos Cancellier. Ele se matou depois de condução coercitiva e um interrogatório sobre supostas irregularidades. O grande problema é que os que redigiram e aprovaram o projeto, que agora vai para sanção presidencial, o fizeram em interesse próprio. O presidente Bolsonaro diz que foi elei topara combatera corrupção, mas considera excessiva qualquer investigação que envolva um dos integrantes da sua família. Ameaça reestruturara Receita Feder alporque ela teria feito uma “devassa” nas contas de seus familiares. Se tivesse feito, a ação dele seria vingança usando os poderes da Presidência. Se a Receita não fez, ele está ameaçando um dos órgãos do Estado. É abuso de poder.

Fiz um programa ontem na Globonews com Fonteles e Robalinho sobre abuso de autoridade e a função do Ministério Público.

— A grande pergunta é a seguinte: é necessário ter uma lei nesse sentido, de abuso de autoridade? Eu considero que esse projeto é inoportuno. Porque o nosso ordenamento jurídico já dispõe de mecanismos legais suficientes —diz o ex-PGR.

Robalinho avalia que a proposta original era muito pior:

Bernardo Mello Franco || A vida imita a arte

- O Globo

Ao fazer grosserias com a Alemanha e a Noruega, Bolsonaro lembra a personagem de uma série britânica. Com uma desvantagem: no caso dele, não adianta desligar a TV

A série britânica “Years and Years”, em exibição na HBO, projeta um futuro ainda mais turbulento do que o presente. A tensão entre os EUA e a China se agrava, o sistema bancário entra em crise e o mundo fica à beira de um conflito nuclear. No Reino Unido, uma populista de extrema direita desafia os partidos tradicionais e avança na direção do poder.

A personagem Vivienne Rook abre caminho à custa de grosserias e declarações chocantes. A cada insulto, conquista mais manchetes e mais seguidores fanáticos. No fim do primeiro episódio, ela festeja a notícia da morte da chanceler alemã Angela Merkel. “Já vai tarde. O mundo acaba de ficar bem mais bonito”, debocha, num programa de TV.

Rook é inspirada na francesa Marine Le Pen, mas suas falas também caberiam nas bocas de políticos brasileiros. Na semana passada, o vice-presidente Hamilton Mourão fez piada com a saúde de Merkel, que andou sofrendo tremores em aparições públicas. O vice atribuiu o sintoma a uma “encarada” que ela teria recebido do “nosso presidente Donald Trump”.

José de Souza Martins*|| A religião das entrelinhas


Eu &Fim de Semana / Valor Econômico

Em sua ação social, a Igreja Universal tem no centro de suas concepções o ser humano. Bolsonaro que foi apoiado pelos evangélicos, tem raiva antibíblica e anticristã

Como as religiões não são sujeitas a debate político, protegem suas contradições do risco da curiosidade analítica dos estranhos a elas. Com isso, muita coisa que não deveria ter o refúgio dessa imunidade acaba ficando fora do escrutínio da consciência social. E muita coisa interessante e criativa acaba sendo ignorada.

Extensa matéria sobre a Igreja Universal, uma igreja neoevangélica, publicada na "Folha de S. Paulo" na semana passada, oferece um quadro interessante sobre sua ação social que é reveladora dos aspectos minúsculos e sutis das contradições sociais próprias de um capitalismo de periferia.

Nela ganha evidência o trabalho social e político da religião. Em sua ação assistencial extramuros, de 257 mil voluntários, a matéria oferece indícios da compreensão religiosa da cada vez mais problemática realidade social brasileira.

A igreja não é inocente num cenário em que ela e outras igrejas têm sido coadjuvantes do mesmo poder que estigmatiza os desvalidos e os trata, em suas políticas, como peso morto da lucratividade sem metas sociais. Um dos aspectos importantes dessa prática caritativa é a de não empurrar para Deus a responsabilidade pela aflição dos que injustamente padecem as consequências da economia irresponsável.

Maria Cristina Fernandes|| A mãe que desafiou ancestrais do bolsonarismo

Eu & Fim de Semana / Valor Econômico

Passava de meia-noite quando Elzita Santos de Santa Cruz Oliveira, hóspede em um apartamento no Rio, recebeu uma chamada telefônica. Foi orientada a descer sozinha e esperar por uma viatura. Era a resposta a seu telefonema da manhã ao Dops, quando insistira em ver sua filha para acreditar que estivesse viva. No carro, um soldado, como se estranhasse a presença de uma senhora de quase 60 anos, de livre e espontânea vontade, ali, entre fuzis, lhe perguntou: "A senhora de onde é, da Paraíba?"

Sem olhar para o lado, Elzita, respondeu que era pernambucana como as mulheres de Tejucupapo. A quem lhe perguntava se eles sabiam a que se referia, ela respondia: "Se não sabiam, ficaram sabendo". Em 23 de abril de 1646, as mulheres de Tejucupapo, no litoral norte do Estado, lutaram contra invasores holandeses numa batalha com 300 mortos.

O diálogo se deu em 1972, dois anos antes da prisão de seu quinto filho, Fernando Santa Cruz. O relato da conversa entre dona Elzita e o ancestral do presidente Jair Bolsonaro foi resgatado pela jornalista Sílvia Bessa na coletânea de perfis "Heroínas Dessa História", a ser lançada pelo Instituto Vladimir Herzog, em setembro, sobre mulheres cujos familiares desapareceram nas mãos dos agentes do Estado durante a ditadura.

Das 15 perfiladas, dona Elzita foi aquela que mais tempo peregrinou por gabinetes e porões. Morreu aos 105 anos, um mês antes de seu neto, Felipe Santa Cruz, presidente da OAB, ser vítima da descarga bolsonarista. Não se dava por satisfeita com versões. Queria o timbre do Estado no papel passado.

Reunidos em sua casa em Olinda, em seus últimos anos de lucidez, seus filhos lhe relataram o depoimento do delegado Cláudio Guerra ("Memórias de uma Guerra Suja", Topbooks, 2012). No livro, o delegado afirma ter levado dez cadáveres de presos políticos, entre eles, Fernando, dos Destacamentos de Operações de Informação, os DOIs, e da Casa da Morte, em Petrópolis (RJ), para serem carbonizados no forno da Usina Cambahiba, no Rio. As cinzas desses corpos, conta, teriam sido misturadas ao vinhoto, o resíduo fétido da destilação do álcool de cana-de-açúcar.

"Quem disse que Fernando teve o corpo incinerado? Um delegado? Um torturador? Tem provas disso? Não?" Os filhos não tiveram tempo de reagir: Ela encerrou a história: "Vamos jantar". Nunca a veriam chorar nem usar luto, ainda que não lhe faltassem motivos.

Filha de um dono do engenho da Zona da Mata, casou-se aos 17 anos com o sobrinho do então governador Estácio Coimbra. O marido viria a morrer de tuberculose três meses depois. Viúva antes da maioridade, conheceria o médico sanitarista Lincoln Santa Cruz, dez anos depois. Com ele teria dez filhos, quase todos insurgentes.

Admiradores de Luís Carlos Prestes e de dom Hélder Câmara, os Santa Cruz nunca apoiaram o golpe de 1964, mas foi a militância dos filhos que os estigmatizou. Um dia receberam a visita de um verdureiro. "Estão dizendo que seus filhos são comunistas. O que é comunismo, doutor?". Lincoln mostrou-lhe a mesa posta e respondeu: "É todo mundo poder comer de tudo que tem nesta mesa".

César Felício|| Nem de esquerda, nem de direita?

- Valor Econômico

Doria faz contraponto implícito a Bolsonaro

Em um elegante apartamento no Itaim Bibi, o governador de São Paulo, João Doria, fez uma profissão de fé: "Não sou de esquerda e nem de direita. Minha posição é a de centro e de respeito ao diálogo." Entre os comensais reunidos pelo advogado Fernando José da Costa, deve-se supor, não havia ninguém com a necessidade de ser convencido. Mas aquele não era um discurso aos convertidos. Havia a presença de jornalistas, várias vezes ressaltada pelo tucano em sua fala. O governador portanto sabia que se dirigia para um público maior.

Quem procurar nas declarações de Doria uma contraposição clara ao presidente Jair Bolsonaro terá dificuldade de encontrar. O governador parece querer que seus ouvintes tirem as conclusões por si. Quando realça a importância do diálogo e de não "perder tempo com bobagem", arremata a frase com um sorriso, faz uma pausa, e em seguida a ressalva, direcionada aos jornalistas. "Isto não é indireta pra ninguém", afirmou. Precisa ser mais claro?

Do mesmo modo não há referências diretas a projeto presidencial em 2022. Nem precisaria, porque o cargo de governador de São Paulo fala por si. Ressalvado o período militar, todos os governadores de São Paulo foram presidenciáveis nos últimos 64 anos.

Ao dizer que quer ocupar o centro, Doria tenta aglutinar a oposição a um inimigo declarado, que é a esquerda; e um oculto, o bolsonarismo. O antagonismo à esquerda é óbvio: Doria e seus operadores partem da premissa de que o petismo está muito longe de ter se esgotado, mesmo em São Paulo. Ser o contraponto ao petismo continua a ser um ativo importante. Já a negação da direita é o mais intrigante.

Doria poderia assumir a vestimenta da direita democrática, que opera pela redução do tamanho do Estado e por bandeiras conservadoras preservando a institucionalidade. Não é essa a opção que ele faz no momento. Não podendo mais se apresentar com a roupagem de gestor, e não de político, como fez em 2016, o patrono do movimento "Cansei", iniciativa empresarial pioneira em entoar o "Fora Lula", na década passada, faz uma aposta contra a polarização.

É como se o governador dissesse que, em algum momento, parte do contingente antipetista vai se sentir exausto com a gritaria. Aparentemente, o governador recebe informações de que há alguma notícia ruim se desenhando contra o projeto de poder bolsonarista.

A movimentação do governador não passou despercebida nas redes sociais. Aumentou muito o bombardeio contra o tucano que parte das milícias digitais do bolsonarismo.

Doria se prepara para um cenário em que talvez lhe convenha migrar para a oposição ao governo federal, como modo de suplantá-lo nas urnas em 2022, demonstrando algum aprendizado de seus erros nos anos recentes.

É visível a mudança de estilo entre o governador e o Doria prefeito de São Paulo entre 2017 e 2018. Não há mais o afã de correr o Brasil, em uma evidente campanha antecipada. Nem demissões de secretários pelas redes sociais, nem farinata. Há mais trabalho em silêncio, de longa maturação. No jantar de quarta-feira, Doria citou dois dos quais se orgulha: a reversão do fechamento das fábricas da General Motors, processo que demorou três meses; e o da remoção de lideranças do PCC para presídios fora do Estado.

A fraqueza estrutural de Doria está na baixa capacidade de agregar fora de seu habitat. Seu nome parece despertar pouco entusiasmo no DEM. Não conta com demonstrações de simpatia de nenhum cardeal do PSDB, a começar dos que já foram candidatos a presidente pela sigla, incluindo Fernando Henrique Cardoso.

O governador tenta superar esta debilidade com os desiludidos do bolsonarismo. Primeiro o empresário Paulo Marinho, no Rio de Janeiro, o que atraiu o ex-ministro Gustavo Bebianno. Agora aproxima-se do deputado Alexandre Frota. Por outro lado, está de olho grande nos parlamentares do PSB e do PDT que correm risco de expulsão por terem votado contra a reforma da Previdência. Ainda é pouco.

FHC vê vácuo ao centro e acha errado o jogo em bloco

Malu Delgado || Valor Econômico

SÃO PAULO - "Jogar em bloco" para formatar um projeto político-eleitoral que se contraponha ao da extrema direita, que chegou ao poder no Brasil com Jair Bolsonaro na Presidência, pode ser uma estratégia equivocada, afirmou ontem o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB). "Não pode jogar em bloco, porque é pior, dá força a quem você não quer dar. Tem que ter alternativa, tem que ter candidato", disse, sinalizando não acreditar no êxito de uma frente de oposição ampla para a disputa. "Na última eleição eu já dizia: tem que unir o centro. Não unimos. É uma questão em aberto. Continua, de novo, o mesmo problema", afirmou ao Valor, ao final de evento promovido pela Fundação FHC para o lançamento do livro "Transições Democráticas: Ensinamentos de Líderes Políticos".

"Não tem democracia consolidada. Não é uma coisa dada, para sempre. Você tem que garantir que ela funcione", disse o ex-presidente. E arrematou: "Acho que temos condições de garantir e fazer com que funcione".

As forças do centro devem se unir, na opinião do tucano, em defesa do "liberalismo progressista", o termo que tem sido empregado pelo economista Edmar Bacha, um dos idealizadores do Plano Real. Seria a mescla de um Estado liberal com inclusão social e redistribuição de renda.

Nesta semana, o ministro da Economia, Paulo Guedes, crítico da social-democracia de FHC, pediu paciência com os indicadores econômicos e defendeu o 'liberalismo democrático': "Dê uma chance de um governo de quatro anos para a liberal-democracia. Não trabalhem contra o Brasil, tenham um pouco de paciência".

Fernando Henrique também prega paciência, mas de outra ordem: "Eu não votei nele [Bolsonaro]. O povo votou nele. Tem que ter um pouco de paciência histórica. Vamos ver se a gente consegue unir forças e ganhar a eleição". O ex-presidente da República disse não ver, ainda, sinais de fraqueza institucional no Brasil. "Não vejo sinal de fraqueza da Justiça, da mídia, do Congresso." No entanto, reforçou que "atitudes antidemocráticas e de personalismo tem que ser coibidas pela própria sociedade". As instituições, enfatizou o tucano, precisam se manter abertas, preservadas e em pleno funcionamento.

Hélio Schwartsman: Zero de Visão

- Folha de S. Paulo

Retirada de radares nas estradas vai na contramão do que fez a Suécia para reduzir mortes

França, 2002. Chocado com um acidente automobilístico que matara cinco bombeiros, o então presidente Jacques Chirac aproveitou o tradicional discurso do Dia da Bastilha para declarar guerra às mortes no trânsito. A França detinha à época o título de país com as estradas mais perigosas da Europa. Seguiu-se um programa de instalação de radares de velocidade que contribuiu para poupar mais de 16 mil vidas entre 2003 e 2010.

O grito de guerra presidencial foi a forma como a França aderiu à mudança de paradigma sobre segurança no trânsito que vem ocorrendo em boa parte dos países desenvolvidos. A pioneira foi a Suécia, e lá a iniciativa ganhou o nome de Visão Zero, uma referência ao objetivo de zerar as mortes em acidentes automobilísticos.

A ideia dos suecos, lançada no final dos anos 90, é a de que é preciso abandonar a noção utilitarista de que existe um trade-off entre mobilidade e custos, orientado por um valor monetário que os técnicos atribuem à vida humana, e adotar o princípio de que qualquer morte no trânsito é eticamente inaceitável.

Bruno Boghossian: Guedes vê sua marolinha

- Folha de S. Paulo

No jet ski desgovernado de Bolsonaro, ministro age de maneira pouco pragmática

Um ministro da Economia que não exagera nas doses de confiança certamente está no emprego errado. Paulo Guedes disse numa palestra para investidores que o Brasil não tem motivos para se preocupar com as turbulências na Argentina e com a desaceleração em alguns dos principais países do mundo.

“Não tenho receio nem do balancê da Argentina, nem dessa briga comercial. Não tenho receio de ser engolido pela dinâmica internacional”, afirmou. “O mundo estava acelerado, e a gente estava descendo. Se o mundo desacelerar, tudo bem.”

Guedes tentou convencer a plateia de que os planos do governo Jair Bolsonaro serão suficientes para blindar o país de qualquer alvoroço no mercado internacional. Já enxergou uma marolinha numa crise que mal começou a se desenhar.

Reinaldo Azevedo || Senado pode votar de pé ou de joelhos

- Folha de S. Paulo

O país só precisa de 41 senadores com vergonha na cara

O Senado terá um papel central na definição da qualidade da democracia brasileira e, por consequência, na sobrevivência de um regime que mereça essa designação. O presidente da Casa, Davi Alcolumbre (DEM-AP), em particular, escolherá como quer entrar para a história.

E essa história vai passar pelas respectivas indicações do procurador-geral da República, do embaixador do Brasil nos EUA e dos dois nomes que integrarão o Supremo Tribunal Federal.

Já escrevi e afirmei algumas vezes que o presidente Jair Bolsonaro tem ao menos uma virtude, que, ao se exercer, elimina a esperança de que outras possam existir: ele é sincero ao expor as suas utopias.

Na quarta-feira (14), por exemplo, discursou em Parnaíba, no Piauí: “Nós vamos acabar com o cocô no Brasil: o cocô é essa raça de corrupto e comunista.”

E ele tem um sonho: “Nas próximas eleições, nós vamos varrer essa turma vermelha do Brasil. Já que, na Venezuela, tá bom, vamos mandar essa cambada pra lá. Quem quiser um pouquinho mais para o norte, vai até Cuba. Lá deve ser muito bom também.”

O Senado terá de avaliar se a futura indicação para a PGR terá como parâmetro a Constituição e demais regras do jogo ou se o presidente busca um perseguidor-geral da República.

Luiz Carlos Azedo || O efeito Hong Kong

- Nas entrelinhas / Correio Braziliense

“A redução do crescimento chinês, agravada pela guerra comercial com os Estados Unidos, é a principal ameaça à economia brasileira”

A guerra comercial entre os Estados Unidos e a China começa a ganhar uma nova dimensão política por causa de Hong Kong, a ex-colônia britânica incorporada ao território chinês, que mantém um status diferenciado em relação ao regime comunista vigente desde 1949 no continente. A situação é muito diferente da de 1997, quando a ilha passou do domínio do Reino Unido ao chinês, mas a região administrativa especial continua sendo um importante centro financeiro da economia asiática, do qual a China não pode abrir mão como segunda potência comercial do planeta. Por isso, as sucessivas manifestações de protesto contra o governo local, nomeado por Pequim, que pleiteiam mais autonomia e eleições livres, são uma ameaça ao regime.

Pequim procura mostrar ao mundo que a repressão aos jovens manifestantes, que há dois meses não saem das ruas, é “contida”, limitada às necessidades de funcionamento de vias e equipamentos públicos, como o Aeroporto de Hong Kong. Entretanto, ontem o governo concentrou tropas em Shenzhen, cidade próxima da fronteira com Hong Kong. Talvez o objetivo não seja empregá-las na ilha, mas evitar que outra onda de protestos surja na cidade que simboliza o Vale do Silício chinês, um legado de Deng Xiaoping, que a transformou na primeira zona econômica especial do país em 1980, ou seja, antes mesmo que Hong Kong voltasse ao controle chinês.

Destinada ao desenvolvimento industrial para atrair investimentos estrangeiros, Shenzhen saltou de 30 mil habitantes para 12 milhões de pessoas. Além de atrair empresas de todo o mundo, transformou-se num grande centro de inovação em hardware. Gigantes da economia chinesa nasceram e têm sede na cidade. Apenas Baidu, Tencent, Alibaba e Xiaomi (BATX) já valem mais de US$ 1 trilhão e lançaram mais de mil negócios em 20 setores nos últimos anos.

Essas empresas chinesas estão no centro da guerra comercial com os Estados Unidos, batem de frente com gigantes norte-americanas: Tencent versus Facebook, Alibaba versus Amazon, Baidu versus Google, Wiaomi versus Apple. Mas o nome da encrenca é a gigante Huawei, fundada em 1988 por Ren Zhengfei, cujas atividades principais são pesquisa e desenvolvimento, produção e o marketing de equipamentos de telecomunicações, e o fornecimento de serviços personalizados de rede a operadoras de telecomunicações. Essa gigante chinesa começou a se expandir a partir de Hong Kong, e hoje está em todo o mundo, inclusive no Brasil.

Eliane Cantanhêde || Pró-corrupção

- O Estado de S. Paulo

A Lava Jato foi um sucesso internacional, mas o Brasil recua e volta tudo atrás

O ministro Paulo Guedes recebeu um ofício do Grupo de Ação Financeira Internacional (Gafi), vinculado à OCDE, estranhando a decisão do Supremo de vetar investigações com base em dados do Coaf, do BC e da Receita. Desrespeitar as 40 normas do Gafi projeta dificuldade de crédito, de comércio e de relações com organizações e demais países, além de ameaçar a aproximação com a OCDE. É isso mesmo que o Brasil quer?

Não adianta fingir que não sabe, não viu, não ouviu o ataque de forças poderosas e variadas às frentes de combate à corrupção no Brasil, que não se resumem à Lava Jato. Ela é a maior e mais reluzente, não a única.

Na linha de tiro estão o Ministério Público, a Receita, o Coaf (que identifica movimentações atípicas) e o Cade (que, por exemplo, avalia fusões). A Justiça não passa incólume. Veja as tentativas de desgastar Sérgio Moro e as ameaças ao Supremo – que tanto participa dos ataques como é alvo deles.

As investidas não partem só do Congresso e de ministros do Supremo, têm a participação direta do governo. O próprio presidente Jair Bolsonaro, que já deu um jeito de intervir no Coaf e dar um chega pra lá na Receita Federal, ontem causou grande alvoroço na Polícia Federal, ao anunciar: “Vou mudar o diretor da PF no Rio. Motivos? Gestão e produtividade”.

Tudo no Rio é mais complicado mesmo, com todos os ex-governadores vivos entrando e saindo da cadeia, por exemplo, mas quem muda superintendente é o diretor-geral da PF, um órgão de excelência que tem mantido invejável independência até no turbilhão do mensalão e do petrolão na era PT. Para que o presidente se meter na PF e criar mais uma confusão desnecessária?

Na versão oficial, a troca do delegado Ricardo Saadi por Carlos Henrique Sousa já estava definida havia tempos, sem dor, sem trauma, como deve ser. Com a interferência de Bolsonaro, que já ataca o Coaf e a Receita, a suavidade foi para o espaço e a corporação chiou.

O curioso é que Bolsonaro fez toda a sua campanha em cima do combate à corrupção e não titubeou ao aceitar a sugestão do economista Paulo Guedes para nomear justamente Moro para a Justiça. Um golaço. Mas, com a posse, a caneta Bic na mão e as notícias nada edificantes sobre os gabinetes políticos da família, tudo mudou.

Bolívar Lamounier* || A presença do fígado na vida pública

- O Estado de S.Paulo

Como combater a atmosfera raivosa que hoje se manifesta na sociedade brasileira?

Por mais que nos desagrade reconhecê-lo, a raiva é um fator comum na vida pública de muitos países. Suas causas variam – crises econômicas, racismo, imigração, corrupção, autoridades irresponsáveis –, mas o fato é inegável. O fígado é o órgão que processa e transforma tais fatores em pura estupidez.

Reconheçamos, porém, que não se trata de uma constante. A política biliosa diminui em certos períodos e aumenta em outros, e varia muito de um país a outro. Veja-se o caso do antissemitismo. Na Europa central e oriental, ele tem uma longa história. Mas hoje o vemos em preocupante ascensão na França – o farol da humanidade –, a ponto de forçar numerosas famílias judias de longa tradição a deixarem o país. A reação à imigração é a causa mais visível, mas não a única. E não nos esqueçamos de que algum antissemitismo sempre existiu na França, basta lembrar o affair Dreifuss, no final do século 19.

Na presente década, a política raivosa espraiou-se por numerosos países, turbinada por dois componentes novos. Primeiro, a internet, cujo caráter “impessoal” parece estimular milhões de pessoas a vocalizar uma agressividade que não teriam coragem de exprimir cara a cara com seus interlocutores, ou mesmo numa assembleia. Segundo, numerosos líderes políticos, vários deles ocupando posições públicas de relevo, têm patrocinado atitudes biliosas, seja por acreditarem sinceramente nelas, seja para capitalizá-las eleitoralmente, numa tentativa nada sutil de transformar a democracia em fascismo. Um exemplo egrégio é o sr. Viktor Orbán, primeiro-ministro da Hungria, cujo mote é o estapafúrdio conceito de “democracia iliberal”, como se o substantivo e o adjetivo não se repelissem mutuamente.

Nos Estados Unidos, somente neste ano já se registraram dezenas de ataques a imigrantes de origem hispano-americana. A loucura subjacente a tais atentados é o que denominam “nacionalismo branco”, ou “supremacia branca”, vale dizer, a crença irracional de que imigrantes “não brancos” tomarão conta do país e subjugarão a parcela “legitimamente ariana” da sociedade. Essa forma de racismo, mais frequente entre as camadas de renda média e baixa, vem de longe, mas é atualmente fomentada por atitudes e interesses que vêm de cima. Do próprio presidente da República, para ser exato. Em sua edição de junho, a respeitada revista The Atlantic estampou uma matéria de 12 páginas intitulada O racismo de Donald Trump – uma história oral. É uma compilação de declarações e ações perpetradas pelo presidente americano ao longo de 40 anos, com meticulosa atenção a fontes e datas.

Elena Landau* || No caminho, uma pedra

- O Estado de S.Paulo

É fundamental ter regras claras para criar um ambiente favorável aos investimentos

Com os dados recém-divulgados pelo Banco Central, o País corre o risco de entrar em recessão técnica. O baixo crescimento para este ano está dado. Enquanto não tivermos um projeto consistente para a economia, que traga confiança e direção ao empresariado, as esperanças de crescimento recaem sobre os projetos de infraestrutura.

Mas no caminho há uma pedra: o risco jurisdicional do País. Dados do Banco Mundial mostram a relação positiva entre qualidade regulatória e PIB per capita. O Brasil não está bem na foto. Nosso indicador de qualidade atingiu o índice mais alto em 1998. A partir de 2003, a deterioração é clara. Fomos ultrapassados por Colômbia e México. Resultado que não chega a ser surpreendente. E nada indica que a situação vai melhorar.

O discurso oficial sobre regulação é confuso. Deixando de lado o radicalismo de uma minoria libertária, há consenso de que “a competição requer uma organização adequada de instituições, que nem sempre podem ser oferecidas pelo setor privado e dependem de um sistema legal para preservar a competição e fazê-la funcionar da forma mais eficiente possível”. Tais instituições vão desde agências reguladoras à autoridade monetária, e buscam atuar em falhas de mercado, como assimetria de informação, externalidades e concentração. A previsibilidade das regras é fundamental para criar um ambiente favorável aos investimentos privados. Mas a cada dia uma nova notícia vem para confundir.

A iniciativa de levar o Coaf para o Banco Central é uma delas. O argumento seria despolitizar sua atuação. Ora, quem começou a politizar um órgão de fiscalização, que sempre foi independente, foi o governo. Foi para o Ministério da Justiça, voltou para o de Economia e acabou questionado no STF. Não importa a quem se vincule, sua independência depende do próprio governo. Também está em estudo a transformação da Receita Federal em autarquia para blindá-la do Legislativo e do Judiciário, leia-se STF. Mas foi Bolsonaro quem deu um pito no secretário Marcos Cintra por investigar sua família. As agências reguladoras são autarquias e nem por isso estão isentas do controle da sociedade. Sua autonomia garante independência do Executivo, ou deveria.

Dora Kramer || Carisma em compotas

- Revista Veja

Líderes carismáticos em geral têm parte com o autoritarismo

No Brasil é praxe considerar o carisma um ativo no capital político de candidatos a cargos majoritários. É visto pelo eleitorado como um bom atributo, embora não imprescindível, conforme atestaram as duas vitórias de Fernando Henrique em primeiro turno. Contariam como regra as derrotas de José Serra e Geraldo Alckmin para a Presidência caso não tivessem sido eleitos governadores em São Paulo e perdido a disputa nacional para Dilma Rousseff, nota zero no quesito magnetismo pessoal.

É relativo, portanto, o valor do fascínio, algo inexplicável exercido sobre o eleitorado, embora tal fator tenha peso nas disputas eleitorais. Disso dão notícia as licenças obtidas por Fernando Collor, Luiz Inácio da Silva e Jair Bolsonaro para dar expediente no Palácio do Planalto.

A proposta aqui é divagar um pouco em torno do tema a partir de características marcantes na conduta dos ditos carismáticos quando na busca ou no exercício do poder.

Caracterizam-se pela vulgaridade na linguagem, nos excessos cometidos em nome da informalidade de modo a transparecer autenticidade, o que, ao mesmo tempo, lhes confere uma autoconfiança inesgotável. Do ego hipertrofiado emerge a intolerância ao contraditório e se estabelece a dinâmica da atuação via confronto permanente. No universo deles a luta é uma constante, a razão de ser.

Costumam cultivar mitologia em torno de si, sustentados numa biografia que nem sempre conta a verdade completa. Alimentam fantasias persecutórias de modo a ativar desejos de desmontes de alegadas conspirações. Para isso recorrem a instrumentos de identificação, ressentimento e distração.

Ricardo Noblat || Retrato de um presidente

- Blog do Noblat / Veja

O que Bolsonaro é
O assombroso é que Jair Bolsonaro, o capitão expulso do Exército por indisciplina, nem se esforça para disfarçar sua má índole. Ele é mau e gosta de ser. Podendo apenas criticar um adversário, ataca para destruí-lo. Vale-se de todos os meios, lícitos ou não, para alcançar o que quer. E depois celebra sem pudor o que conseguiu.

Não tem a menor empatia. Não consegue se pôr no lugar do outro. Não liga para sentimentos, a não ser os seus. Não reconhece limites. Não admite erros. Só pede desculpas, quando o faz, se isso lhe render vantagens imediatas. Põe a família – a dele – acima de tudo. E o enriquecimento dela é o que importa. Que mau sujeito!

Até chegar por acidente onde chegou, somente ele e seus parentes amargavam as consequências perversas dos seus defeitos. Desde então quem as suporta é o país. Está se tornando rapidamente um perigo para as instituições que jamais prezou, que enxerga como obstáculos à sua vontade. Se elas vacilarem ele as esmagará.

Tratar um presidente desvairado e nada confiável com reverência ou brandura servirá para que ele possa ir muito além dos seus poderes. Pobre de um país onde escasseiam as vozes de referência, abundantes no passado. Ou onde elas se calam por conveniência ou por medo. Se um dia resolverem falar poderá ser muito tarde.

Enquanto aumenta a miséria, Guedes faz brincadeira

Desigualdade em alta
Então de brincadeira, como anotou um jornal, o ministro Paulo Guedes, da Economia, o ex-Posto Ipiranga do governo Bolsonaro, anunciou que a Petrobras poderia ser privatizada.

Uma vez que os sites de notícias, ao longo da tarde de ontem, levaram a sério suas palavras, ele foi obrigado a corrigir-se. Afirmou que tudo não passara de brincadeira ou especulação.

Bem que ele poderia especular sobre o que fazer para desemperrar a economia e produzir empregos para os 12 milhões de desempregados que vagam por aí à procura de ocupação.

O Brasil, segundo estudo do economista Marcelo Neri, da Fundação Getúlio Vargas, atravessa o ciclo mais longo de aumento da desigualdade de sua história – pouco mais de 4 anos.

De 2014 para cá, a renda da metade mais pobre da população desabou quase 20% – exatos 17%. No mesmo período, a renda da parte do 1% dos mais ricos cresceu pouco mais de 10%

Entre 2015 e 2017, a fatia mais pobre da população passou de 8,3% para 11% do total. Temos 23,3 milhões de pessoas sobrevivendo com menos de R$ 233 por mês.

Ganha um fim de semana em Washington para a posse do garoto Eduardo como embaixador quem se lembrar de falas de Guedes ou de Bolsonaro que traiam sua preocupação com os mais pobres.

Como observou um experiente político com livre trânsito no Palácio do Planalto, este é um governo de ricos para ricos, e que pouco liga para a vida dos que estão na base da pirâmide social.

O que pensa a mídia || Editoriais

Todos sob a lei || Editorial / O Estado de S. Paulo

Finalmente o Congresso aprovou um projeto de lei que criminaliza o abuso de autoridade. Era uma necessidade institucional de longa data, reconhecida, por exemplo, em abril de 2009, por ocasião do II Pacto Republicano de Estado por um Sistema de Justiça mais acessível, ágil e efetivo, assinado pelos chefes dos Três Poderes. Entre as matérias prioritárias de estudo, o pacto incluiu a “revisão da legislação relativa ao abuso de autoridade, a fim de incorporar os atuais preceitos constitucionais de proteção e responsabilização administrativa e penal dos agentes e servidores públicos em eventuais violações aos direitos fundamentais”.

O projeto de lei aprovado pelo Congresso tem dois grandes méritos. O primeiro é a inclusão de todos os cidadãos, também as autoridades dos Três Poderes e os membros do Ministério Público, sob o império da lei. Com a entrada em vigor da nova lei, haverá consequências jurídicas claras – estão previstas sanções penais – para quem dolosamente utilizar o cargo público para finalidades estranhas à lei.

Por exemplo, o primeiro crime previsto no projeto de lei é “decretar medida de privação da liberdade em manifesta desconformidade com as hipóteses legais”, ao qual se atribui pena de detenção de um a quatro anos, além de multa. Tal previsão é uma necessária manifestação de respeito à liberdade de todos os cidadãos. É muito grave, exigindo a intervenção penal do Estado, que uma autoridade, mesmo sabendo que não poderia atuar assim, utilize seu cargo para prender ilegalmente uma pessoa.

A inclusão das práticas abusivas por parte das autoridades no rol dos tipos penais é muito pedagógica para toda a sociedade. Ao prever consequências jurídicas para os casos de abuso, reafirma-se um ponto fundamental da República. Os órgãos e cargos públicos estão destinados a servir o interesse público, de acordo com as competências, limites e controles previstos em lei. O poder estatal tem uma finalidade determinada, e é crime o seu doloso desvirtuamento.

O segundo grande mérito do projeto de lei sobre abuso de autoridade aprovado pelo Congresso é ter excluído explicitamente qualquer hipótese de crime de hermenêutica. Nenhuma autoridade será punida por dar uma determinada interpretação à lei na hora de aplicá-la. Tal ponto era essencial para o equilíbrio do projeto, já que um texto dúbio sobre essa matéria poderia dar brecha para pressões e achaques contra as autoridades. Da mesma forma que a lei deve punir autoridades que abusem dolosamente do poder próprio do cargo, a lei deve assegurar que as autoridades possam exercer todo o poder próprio do cargo.

Esse equilíbrio – de punir o abuso e, ao mesmo tempo, evitar que a possibilidade de punição se converta em ameaça contra o exercício da função pública – foi encontrado pela expressa menção no primeiro artigo do projeto das seguintes ressalvas. “As condutas descritas nesta Lei constituem crime de abuso de autoridade quando praticadas pelo agente com a finalidade específica de prejudicar outrem, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal”, diz o texto. E para que não pairasse nenhuma dúvida o legislador ainda estabeleceu que “a divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas não configura, por si só, abuso de autoridade”.

De acordo com o projeto de lei aprovado, pode responder pelos crimes de abuso de autoridade todo agente público, servidor ou não, da administração direta e indireta dos Três Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios. Estão incluídos, assim, os servidores públicos e militares, as pessoas a eles equiparadas, bem como os membros do Legislativo, do Executivo, do Judiciário, do Ministério Público e dos Tribunais de Contas. É equivocado, portanto, afirmar que o projeto seria uma reação do Legislativo – dos políticos – contra o Judiciário e o Ministério Público. A lei atinge a todas as autoridades dos Três Poderes.

Já havia no Direito brasileiro o crime de desacato à autoridade. Faltava o outro lado – o crime de abuso de autoridade.

Poesia || Fernando Pessoa - O cego e a guitarra

O ruído vário da rua
Passa alto por mim que sigo.
Vejo: cada coisa é sua
Oiço: cada som é consigo.

Sou como a praia a que invade
Um mar que torna a descer.
Ah, nisto tudo a verdade
É só eu ter que morrer.

Depois de eu cessar, o ruído.
Não, não ajusto nada
Ao meu conceito perdido
Como uma flor na estrada.

Cheguei à janela
Porque ouvi cantar.
É um cego e a guitarra
Que estão a chorar.

Ambos fazem pena,
São uma coisa só
Que anda pelo mundo
A fazer ter dó.

Eu também sou um cego
Cantando na estrada,
A estrada é maior
E não peço nada.