sábado, 17 de agosto de 2019

Opinião do dia || Fernando Henrique Cardoso*

"Não tem democracia consolidada. Não é uma coisa dada, para sempre. Você tem que garantir que ela funcione. Acho que temos condições de garantir e fazer com que funcione.

Eu não votei nele [Bolsonaro]. O povo votou nele. Tem que ter um pouco de paciência histórica. Vamos ver se a gente consegue unir forças e ganhar a eleição.

Não vejo sinal de fraqueza da Justiça, da mídia, do Congresso, atitudes antidemocráticas e de personalismo tem que ser coibidas pela própria sociedade.

*Fernando Henrique Cardoso, sociólogo, ex-presidente da República, Valor Econômico, 16/8/2019

João Domingos || O dilema de Bolsonaro

- O Estado de S.Paulo

Indicação do filho para embaixada nos EUA faz o presidente pisar em ovos

Ao aprovar o projeto de lei que regulamenta o crime de abuso de autoridade, o Congresso pôs o presidente Jair Bolsonaro diante de um dilema. Para não dizer sinuca de bico, uma expressão popular que poderia ser usada aqui. O próprio presidente já percebeu que está numa situação complicada. “Vetando ou sancionando eu vou levar pancada”, disse Bolsonaro ao ser indagado sobre qual destino dará à lei que o Congresso jogou em seu colo e que ali vai queimar até que ele tome uma decisão.

Ao presidente não interessa arrumar confusão com o Congresso. Ou, melhor dizendo, com os partidos de centro, reunidos em torno do chamado Centrão, responsáveis pela urgência na votação e aprovação do projeto, tudo num só dia, e que são contrários a qualquer tipo de veto. É o Centrão, dono da maioria dos votos na Câmara, que determina o que será aprovado e o que será rejeitado. É o Centrão que põe a agenda positiva para andar. É o Centrão que, quando quer, aprova decreto legislativo rejeitando decisões do governo, como a que aumentava o número de pessoas autorizadas a dizer o que é documento secreto e ultrassecreto. Brigar com os partidos que o integram é apanhar.

A Bolsonaro não interessa também criar um caso com o Senado, onde a proposta nasceu. O autor do projeto é o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP). Ele foi fundamental na arregimentação de votos que levaram à desistência de Renan Calheiros (MDB-AL) de disputar a presidência do Senado em fevereiro, abrindo espaço para que Davi Alcolumbre (DEM-AP) vencesse a eleição. Alcolumbre foi apoiado por Bolsonaro, que jogou tudo para impedir Renan de voltar à presidência do Senado. A improvável aliança entre Randolfe e Bolsonaro deu certo. O presidente se tornou devedor do senador da Rede.

Adriana Fernandes || O pé na jaca do Senado

- O Estado de S. Paulo

O Senado resolveu empacar reforma da Previdência para garantir mais recursos aos Estados.

É perigoso demais para as finanças públicas o jogo que o Senado resolveu fazer para garantir a todo o custo mais recursos aos Estados empacando a reforma da Previdência. O cronograma de votação já foi atrasado diante da manobra dos senadores para vincular o andamento da votação da reforma à discussão de propostas de interesse dos governadores.

Os senadores dizem que não há operação tartaruga. Mas não é bem assim. Ela está em curso e a todo vapor. Uma articulação silenciosa foi acionada para mostrar os danos que a ampliação de transferências de receitas para os governos estaduais pode causar sem que sejam feitas com base em contrapartidas de medidas de ajuste fiscal.

Não dá para repetir o passado, quando mais receita nos cofres dos Estados serviu para incrementar gastos, principalmente de salários dos servidores, sem aumento de investimentos. Os dados mais recentes das finanças dos Estados, divulgados na quarta-feira, constatam a situação dramática das contas dos governos regionais. Para muitos economistas, um quadro pior do que a do próprio governo federal.

Os senadores se apoiam no discurso do ministro da Economia, Paulo Guedes, de lançamento da ideia de Proposta de Emenda Constitucional (PEC) do Pacto Federativo para discutir projetos que aumentam os repasses. Guedes propôs “menos Brasília e mais Brasil” e agora pena por causa do próprio discurso, apesar dos alertas de economistas próximos de que esse movimento teria de ser feito com cautela.

Demétrio Magnoli* || Consequências econômicas do sr. Trump

- Folha de S. Paulo

Sob o fetiche do déficit, o governo dos EUA empurra o mundo para o abismo

Não foi Donald Trump, mas Barack Obama, que encerrou quase meio século da parceria informal entre EUA e China articulada por Richard Nixon em 1972.

A cisão era inevitável: um fruto do fim da Guerra Fria e da ascensão chinesa à condição de potência global.

Contudo, Trump conduziu a rivalidade estratégica ao campo da guerra comercial e, diante da resistência chinesa, ameaça deflagrar uma guerra cambial.

Há 90 anos, uma corrida ao fundo do poço da mesma natureza desaguou na Grande Depressão.

Se Trump não fosse o Tariff Man, como se intitulou, formaria uma extensa aliança de potências para obrigar a China a desviar-se da prática de violações da propriedade intelectual das empresas estrangeiras que operam em seu território.

Mas, inspirado por assessores como Peter Navarro e Robert Lighthizer, o presidente americano segue a estrela do nacionalismo econômico primitivo.

Nessa moldura, o déficit no intercâmbio de bens, um espelho da pujança econômica dos EUA, converte-se no mal a ser erradicado. Sob o fetiche do déficit, seu governo empurra o mundo para o abismo de uma recessão geral.

Hélio Schwartsman: Ações e reações

- Folha de S. Paulo

Irregularidades na Lava Jato não se comparam aos crimes que a operação enfrentou, mas não poderiam ter acontecido

A terceira lei de Newton estabelece que a toda ação corresponde sempre uma reação oposta e de igual intensidade. Em alguma medida, isso vale também para a política.

Durante muito tempo, corruptos no Brasil foram deixados em paz. Mas eles extrapolaram e, por uma série de razões que não cabe aqui comentar, surgiu a reação oposta e de igual intensidade que ficou conhecida como Lava Jato.

Ao longo do último quinquênio, policiais, procuradores e juízes envolvidos com a operação reinaram soberanos. A Lava Jato foi importante para o país: quebrou o paradigma da impunidade, mandando para a cadeia políticos e empresários que estavam no centro do poder.

Julianna Sofia: O fantasma do 'shutdown'

- Folha de S. Paulo

No atoleiro fiscal, a receita patina enquanto a máquina administrativa afunda

Embora soasse disparatado, tão logo assumiu-se Posto Ipiranga, o ministro Paulo Guedes (Economia) prometeu zerar o déficit primário (que exclui os juros da dívida) das contas públicas ainda no primeiro ano de mandato de Jair Bolsonaro.

Passados oito meses, não foi que deu ruim —porque todos sabiam se tratar de promessa vã. Apesar dos bilhões esperados com o leilão de excedente do pré-sal, apesar de privatizações no setor elétrico, apesar de estupendos dividendos de estatais, apesar de tudo, para cumprir o feito seriam necessários R$ 140 bilhões em receitas extras, além de uma recuperação econômica vigorosa para melhorar a arrecadação de tributos.

Mas a economia flerta com uma recessão técnica. Passada a fase mais difícil de aprovação no Legislativo, a reforma da Previdência —solução para todos os males!— já foi precificada, mas os investimentos que poderiam estimular a economia não se concretizam. Haverá desconfiança dos donos do dinheiro enquanto durar o “freak show” diário de Bolsonaro nos portões do Alvorada.

Roberto Simon* || A derrota do pragmatismo

- Folha de S. Paulo

Brasil e Argentina avançam rumo à pior crise bilateral em décadas

Com o colapso da candidatura de Mauricio Macri na eleição primária argentina do domingo, o governo Jair Bolsonaro topou com uma encruzilhada. De um lado, abriu-se o caminho do pragmatismo. Nele, o presidente se distanciaria de Macri e daria o benefício da dúvida à chapa Alberto Fernández-Cristina Kirchner. Mais ainda, o Brasil tentaria ampliar os incentivos para que Fernández se afaste do receituário kirchnerista.

Por exemplo, Brasília poderia defender publicamente a viabilidade do acordo Mercosul-UE, mesmo com a mudança no poder em Buenos Aires. Ou, privadamente, oferecer-se como facilitador do diálogo com o governo Donald Trump, caso Fernández dê uma guinada ao centro.

Na segunda-feira, já ficara claro que enveredávamos por outra rota. De um palanque em Pelotas, o presidente profetizou que o Rio Grande do Sul seria uma “nova Roraima”, tomado por refugiados argentinos, com a vitória da “esquerdalha”.

Oscar Vilhena Vieira* ||Risco de legalismo autocrático

- Folha de S. Paulo

É da natureza do direito estabelecer que nem tudo o que a política ambiciona é válido

Uma das estratégias básicas dos novos autocratas, que se espalham ao redor do mundo, é capturar as instituições jurídicas e submetê-las aos seus objetivos. Diferentemente das ditaduras dos anos 1970 ou das anteriores, constituições não são mais rasgadas, parlamentos e tribunais fechados.

Porém, pela substituição de autoridades jurídicas, estrangulamento de mecanismos de controle e pela edição de decretos e atos administrativos de questionável validade, a ordem constitucional vai sendo subvertida.

O objetivo é desqualificar a democracia liberal, a proteção dos direitos de minorias vulneráveis e, sobretudo, daqueles que são apontados como inimigos da nação. É o que se convencionou chamar de legalismo autocrático.

No Brasil temos testemunhado, até o presente momento, um comportamento independente do Parlamento e dos tribunais, impondo limites a diversas iniciativas hostis à democracia e os direitos, como ocorreu na derrubada da medida provisória que permitia o controle governamental sobre as organizações da sociedade civil, a transferência da Funai para o Ministério da Agricultura ou o Mecanismo de Prevenção e Combate à Tortura.

Fernando de la Cuadra* || Bolsonaro y la irrupción del fascismo escatológico

Solo me cabe certificarlo, Brasil es gobernado por un individuo ignorante y vulgar. Nada de la complejidad de la vida y de las problemáticas que enfrenta el mundo y su país es del interés del actual presidente del país. Cada vez queda más claro que Bolsonaro todavía no supera su etapa anal, pues son ya varios los episodios en que utiliza recursos escatológicos para referirse a los problemas de la nación. Hace una semana, cuando fue indagado sobre la posible relación contradictoria entre crecimiento y medioambiente, el gobernante no encontró nada mejor que decir que para cuidar del medioambiente “hay que hacer caca un día sí y otro día no” (sic). Días después señaló que la “caca petrificada de indígena consigue parar el licenciamiento de obras”. En su última manifestación en Piauí inaugurando una escuela insistió en su escatología “Vamos a acabar con la caca en Brasil”, refiriéndose a los comunistas.

El psicoanalista y académico de la Universidad de Sao Paulo, Christian Dunker, entrega una explicación instigante para este fenómeno: “El discurso moral, cuando se exprime psicoanalíticamente, frecuentemente termina en la mierda, en la bosta, exactamente lo que el presidente está practicando”.

Si Bolsonaro solo se dedicara a proferir sus necedades y abrir su cloaca verbal hasta podría ser un personaje inconveniente e irrelevante. El problema es que su gobierno se encuentra desmontando todas las políticas públicas que aseguraban un nivel mínimo de convivencia y aspiraciones de desarrollo entre la población. Y en todos los ámbitos.

Solo por mencionar el impacto de sus políticas sobre la acelerada desforestación del territorio amazónico, los datos recopilados en este primer semestre por organismos especializados como el Instituto de Pesquisa Espaciales (INPE) han demostrado que dicho proceso ha aumentado casi en un 90% en el presente año. Además de desconocer los datos entregados por el INPE, el ejecutivo no encontró nada mejor para impugnar las conclusiones de esta institución que remover a su director.

Marcus Pestana || Desafios e obstáculos no caminho da Reforma Tributária

- O Tempo (MG)

O Congresso Nacional, reafirmando seu atual protagonismo, deu a largada para acelerar as discussões acerca da mudança do sistema tributário nacional. A Câmara dos Deputados instalou a Comissão Especial que apreciará a PEC que desencadeará a reforma desejada. No último dia 13, o deputado relator Agnaldo Ribeiro (PP/PB) apresentou seu plano de trabalho. Ele prevê a realização de diversos seminários e audiências públicas e a apresentação e a votação do relatório em outubro de 2019.

É sabido que nossa carga tributária é alta para os padrões de um país emergente, tendo atingido o pico histórico em 2018, chegando aos 35,07% do PIB. Ainda assim vivemos a mais profunda crise fiscal, o que demonstra que o tamanho do Estado e a estrutura de gastos estão muito acima da capacidade contributiva da sociedade e da economia brasileiras. Além disso, o atual sistema é complexo, confuso, disfuncional, burocrático, excessivamente caro e regressivo. É preciso ainda estancar a chamada guerra fiscal.

Quais as dificuldades que antevejo na travessia para a aprovação da reforma? Em primeiro lugar, há um efeito paralisante que sempre obstruiu outras tentativas de reforma a partir do conflito distributivo embutido em qualquer mudança dessa natureza. Há perdas e ganhos, “vencedores” e “perdedores”, e os interesses feridos naturalmente se mobilizam para evitar as mudanças. A discussão sobre quem pagará a conta não é trivial e pacífica.

Merval Pereira || Abusos de interpretação

- O Globo

Praticamente todos os itens da lei de abuso de autoridade aprovada agora na Câmara já estão no Código Penal

O projeto de abuso de autoridade aprovado na Câmara, depois de passar pelo Senado, tem como base uma proposta de 2009 feita por membros do STF e do Congresso, apresentado pelo então deputado federal Raul Jungmann, como decorrência do Pacto de Estado por um Judiciário mais Rápido e Republicano, firmado pelos chefes de então dos três Poderes: presidente Lula, presidente do Senado José Sarney, presidente da Câmara Michel Temer e presidente do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes.

A Lava-Jato ainda não existia, e a motivação era apenas conter abusos de autoridades. Mas a operação de resgate da proposta, dez anos depois, parece motivada pela vontade de tentar impor limites às investigações, e defender corporativamente os congressistas de maneira geral. O ex-ministro Raul Jungmann, no entanto, não vê na legislação aprovada nenhuma alteração profunda que fuja das normas já existentes.

O projeto da Câmara aperfeiçoou o do Senado, e manteve o Ministério Público como receptor das denúncias contra autoridades. Mas ele retira o caráter de proteção geral de cidadãos, transformando-se em instrumento de bloqueio da ação dos órgãos de investigação e acusação, além de constranger juízes.

Levantamento do Ministério Público mostra que, dos 33 crimes tipificados na nova lei, que foi relatada pelo senador Roberto Requião, apenas três têm destinação a parlamentares e seis a autoridades e a outros agentes públicos. Juízes são alcançados por 20 deles, promotores e procuradores por 21, agentes policiais e profissionais de segurança pública em 28.

Míriam Leitão || Brasil e Argentina, amigos por destino

- O Globo

Brasil se entender com a Argentina é destino, um determinismo geográfico que não poderá ser desfeito por ideologias opostas

O ministro Paulo Guedes pergunta: desde quando precisamos da Argentina? Desde sempre, caro Paulo. O Brasil e a Argentina são parceiros antigos, tiveram momentos de tensão, juntos enfrentaram um inimigo comum no Império e têm vivido uma história intensa. Eu acompanhei uma parte dessa relação como jornalista de política externa no governo militar. Os dois países estavam de acordo sobre torturar e matar opositores, na operação Condor, mas tinham desconfianças e conflitos no comércio e na energia. Havia quem temesse uma corrida nuclear entre ambos.

O próprio governo militar, que alimentou a desconfiança, tratou de desfazê-la. Foram três intermináveis anos de negociação tocada pelo ministro Ramiro Saraiva Guerreiro até o fechamento do acordo que permitia a conclusão da hidrelétrica de Itaipu e deixava espaço para Corpus. Houve um tempo em que o medo um do outro era tanto que a Argentina achava que Itaipu fora concebida como arma. Abertas as comportas, Buenos Aires seria inundada. Era esse clima que Guerreiro desfez, com paciência, diplomatas profissionais, e a certeza de que se entender com a Argentina é destino, um determinismo geográfico. As guerras começam às vezes por mal entendidos não desfeitos a tempo.

Guerreiro —aprendi muito com ele —nunca criticava a Argentina nas conversas com os jornalistas. Ele preferia elogiar os avanços das negociações. Certa vez ele fez o impossível. Elio Gaspari costuma lembrar desse episódio com uma de suas expressões: “ele tirou a meia sem descalçar o sapato.” Foi quando a ditadura argentina nos seus estertores decretou guerra à Inglaterra. Aqui, a nossa ditadura estava no fim também, mas tentava sair de fininho. Eles, mais sanguíneos, decretaram a guerra contra a velha potência colonial, que havia perdido os dentes, mas ainda controlava as Malvinas, chamada de Falkands pelos britânicos.

Ricardo Noblat || Bolsonaro peita a Polícia Federal e perde

- Blog do Noblat / Veja

Recuou e falou baixo
É tamanha a necessidade do presidente Jair Bolsonaro de mostrar que manda no seu governo que ele pagou para ver e perdeu quando se meteu com a Polícia Federal.

Na última quinta-feira, Bolsonaro anunciou que mandara pôr na superintendência da Polícia Federal no Rio um delegado da sua confiança, Alexandre Saraiva, que hoje está em Manaus.

Por quê? Não disse. Mas sabe-se que o atual superintendente no Rio recusou-se a satisfazer determinadas vontades da família Bolsonaro – entre elas, a de proteger o senador Flávio, cheio de rolos fiscais.

O mundo quase caiu na cabeça do capitão. Haveria um pedido de demissão coletiva dos superintendentes da Polícia Federal se ele não recuasse do seu plano. E ele recuou menos de 24 horas depois.

O capitão é um bravateiro. Fala grosso pelas redes sociais ou quando lhe oferecem um microfone. Mas quando encontra forte resistência pela frente, pia baixíssimo e muda de assunto.

A Polícia Federal é órgão do Estado brasileiro, não do governo. Subordina-se administrativamente ao Ministério da Justiça, mas obedece a ordens da Justiça. E preza sua autonomia.

O que pensa a mídia || Editoriais

Escalada da desigualdade|| Editorial / O Estado de S. Paulo

Pelo 17.º trimestre consecutivo a desigualdade de renda cresce no Brasil. Trata-se do ciclo mais longo da história do País. Segundo o Índice de Gini, o indicador mais reputado na matéria, o crescimento da desigualdade entre 2014 e 2019 seguiu um ritmo similar ao da queda entre 2001 e 2014, um período histórico de redução da desigualdade. É o que demonstra o estudo Escalada da Desigualdade, coordenado pelo professor Marcelo Neri, do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas.

Desde o início da crise, a perda de renda média acumulada foi de 3,71%. Mas, como mostra a pesquisa, os efeitos da recessão econômica foram muito piores que o mero empobrecimento geral da nação. Isso porque os pobres empobreceram bem mais que a classe média, ao mesmo tempo que os menos ricos enriqueceram um pouco mais e os muito ricos enriqueceram muito mais.

Entre 2015 e 2017 a população de pobres – isto é, das pessoas que vivem com menos de R$ 233 por mês – aumentou de 8,3% para 11,1% da população total, cerca de 23 milhões de pessoas. São 6,2 milhões de brasileiros que caíram na linha da pobreza.

Além disso, a metade mais pobre da população experimentou perdas da ordem de 17,1% em sua renda. A classe média, que segundo os padrões estatísticos corresponde à faixa dos 40% intermediários da população, teve perdas de 4,16%. Já os 10% mais ricos, isto é, a classe média alta, apresentou ganhos de 2,55%. Por fim, o 1% de mais ricos teve ganhos acima dos dois dígitos: 10,11%.

Para piorar, não só os pobres perderam mais renda, mas, dentre eles, os que mais sofreram foram os menos instruídos e, sobretudo, os jovens – de todos os segmentos sociodemográficos, o mais depauperado. Entre os jovens de 20 e 24 anos a perda de renda foi de 17,76%. Entre os analfabetos foi de 15,09%. Além disso, também tiveram redução de renda pelo menos duas vezes maior que a da média geral os moradores das Regiões Norte (13,08%) e Nordeste (7,55%) e as pessoas de cor preta (8,35%). Entre os grupos menos favorecidos, o único que teve aumento de renda foi o das mulheres (2,22%), enquanto os homens perderam em média 7,16% de sua renda. O diferencial feminino, segundo a pesquisa, é ter mais escolaridade, um fator decisivo para a manutenção ou incremento da renda neste período recessivo.

Sem dúvida nenhuma, a principal alavanca para o crescimento da desigualdade e para a queda do poder de compra das famílias brasileiras foi a escalada do desemprego, que, como se viu, afetou especialmente os jovens e menos escolarizados. Como revelam os dados mais recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o desemprego de longa duração, ou seja, o daqueles trabalhadores que buscam uma vaga há mais de dois anos, nunca foi tão alto, atingindo 3,347 milhões de brasileiros. Neste cenário, aumenta também a taxa de desalento, isto é, a daqueles desempregados que já desistiram de buscar uma vaga. Hoje já são quase 5 milhões.

Todos estes dados são particularmente trágicos, pois mostram que, mesmo numa eventual retomada do crescimento econômico, com consequente aumento nas ofertas de emprego, aqueles que terão mais dificuldade de se reinserir no mercado e restabelecer sua renda são justamente os jovens e os menos instruídos: os primeiros por terem menos experiência e os segundos por terem menos qualificação.

Ante este cenário, fica claro que meros programas de retomada econômica, mesmo se bem-sucedidos, não serão suficientes para sanar as desventuras de uma população cada vez mais pobre e desigual. Será necessário suplementar as medidas gerais com mecanismos específicos de reintegração dos mais afetados. Além de revigorar programas de apoio à subsistência, será preciso investir tempo, recursos e esforços na capacitação daqueles cada vez mais marginalizados no mercado de trabalho. A não ser assim, mesmo havendo crescimento econômico, ele não será suficiente para vencer a pérfida progressão da desigualdade.

Entrevista || Stepan Nercessian / Ator

'A gente tem boleto para pagar e criança pra alimentar’, diz Stepan Nercessian

Após emocionante desabafo no Grande Prêmio do Cinema, protagonista de ‘Chacrinha’ conta como viveu sete meses sem emprego, período em que escreveu ‘A arte de pedir — Guia prático para inadimplentes e negativados’

Maria Fortuna || O Globo / Segundo Caderno

Ao ganhar o troféu de melhor ator por seu papel no filme “Chacrinha: O velho guerreiro”, no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro , na última quarta-feira, Stepan Nercessian fez um desabafo que expôs um paradoxo. Revelando que havia ficado sete meses desempregado, mostrou que prêmio não significa que o ator está, necessariamente, por cima da carne seca e que a profissão vai muito além do glamour. Aos 65 anos e 49 de carreira (que somam mais de 100 trabalhos na TV, no cinema e no teatro), ele reflete, nesta entrevista, sobre os altos e baixos da carreira. Conta também que fez do período de desemprego uma limonada, escrevendo dois livros: “A arte de pedir — Guia prático para inadimplentes e negativados”, de “alta ajuda”, como define; e “Garimpo de almas”, seu romance de estreia.

• Por que fez questão de chamar atenção para os trabalhadores da cultura em em seu discurso?
As pessoas têm feito bullying com a gente. Como se vivêssemos no mundo da lua. Trabalhar fabricando sonhos não significa que não temos os pés no chão. Ignoram que a gente tem família, boleto para pagar, criança pra alimentar. Tudo na vida do ator é provisório,dependemos da efervescência da indústria para ter trabalho. Ator até se vira, mas é muita gente no cinema, mães de família... Quis passar um olhar humano sobre essa indústria. Nós somos trabalhadores como todos, não podemos continuar sendo massacrados. Parem de se referir à gente com um bando mamando na teta do governo. Exigimos respeito!

• Foi eleito melhor ator e estava sem trabalho há meses. Prêmio não significa estar por cima...
O primeiro filme que fiz, tinha 14 anos. De lá pra cá, lutei contra todas as adversidades do cinema brasileiro. O massacre do cinema americano, o som ruim... Nunca deixamos de ouvir as críticas e fomos nos aperfeiçoando. Sei que nunca teve muita gente a nosso favor, a não ser o público. Passei de 2016 a 2018 sem um dia de folga. Em 2019, parou. Sei que a nossa profissão envolve um glamour grande, há a impressão de que nadamos no dinheiro. Precisava dizer que a gente também passa perrengue. Fiz questão de romper com isso, não quero manter a pose. Mexe com a autoestima da gente não estar sendo requisitado, amado. Sou o melhor ator do cinema brasileiro de 2018, mas junto com 18 milhões de brasileiros, acabei de experimentar o amargor do desemprego.

Um artista e um baluarte da luta contra a ditadura militar

Nercessian pelo prêmio de melhor ator de cinema

O presidente do Cidadania, Roberto Freire, divulgou nota pública (veja abaixo) enaltecendo e parabenizando o ator Stepan Nercessian pelo prêmio de melhor ator do Grande Prêmio do Cinema Brasileiro, conquistado nesta quarta-feira (14), em São Paulo.

Aos 65 anos e 49 de carreira, Stepan recebeu o prêmio por seu papel no filme “Chacrinha: O Velho Guerreiro”. Ele foi militante do PCB (Partido Comunista Brasileiro) e deputado federal pelo PPS (Partido Popular Socialista), antecessor do Cidadania.

“Um artista e um baluarte da luta contra a ditadura militar
Junto-me a todos os que amam o cinema nacional e sabem de sua importância para a Cultura, ao felicitar nosso velho camarada Stepan Nercessian pelo Prêmio de Melhor Ator, no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro, quarta-feira (14), no Teatro Municipal de São Paulo.

No momento em que a indústria do cinema brasileiro é atacada pela ameaça de censura de um ultrapassado fundamentalismo religioso, e a Ancine é vítima de perseguição ideológica perpetrada por um governo que menospreza a Cultura, é sintomático que seja premiado um artista que além de dominar com excelência seu ofício, sempre foi um dos baluartes na luta da resistência à ditadura militar, desde sua militância no velho “Partidão”.

Stepan encarnando o “velho guerreiro” da TV brasileira, é de certa forma uma metáfora perfeita de sua vida de artista e militante político que desde sempre aliou a luta particular do cinema e teatro brasileiros à luta geral da sociedade, por uma vida mais digna e generosa.

Parabéns Stepan por sua interpretação de Chacrinha, que saiu do cinema e adentrou os palcos do País inteiro, levando sua arte e sua alegria militante aos que não desistirão jamais de lutar por “uma pátria mãe gentil”.

Roberto Freire
Presidente do Cidadania23“

Poesia || Pablo Neruda - Amigo

Amigo, toma para ti o que quiseres,
passeia o teu olhar pelos meus recantos,
e se assim o desejas, dou-te a alma inteira,
com suas brancas avenidas e canções.

Amigo - faz com que na tarde se desvaneça
este inútil e velho desejo de vencer.

Bebe do meu cântaro se tens sede.

Amigo - faz com que na tarde se desvaneça
este desejo de que todas as roseiras
me pertençam.

Amigo, se tens fome come do meu pão.

Tudo, amigo, o fiz para ti. Tudo isto
que sem olhares verás na minha casa vazia:
tudo isto que sobe pelo muros direitos
- como o meu coração - sempre buscando altura.

Sorris-te - amigo. Que importa! Ninguém sabe
entregar nas mãos o que se esconde dentro,
mas eu dou-te a alma, ânfora de suaves néctares,
e toda eu ta dou... Menos aquela lembrança...

... Que na minha herdade vazia aquele amor perdido
é uma rosa branca que se abre em silêncio...

Pablo Neruda, in "Crepusculário"