- O Estado de S.Paulo
Defesa das instituições, e da Constituição que as afirma, é obrigatória para todo democrata
Neste ano em que voltamos a viver perigosamente, muito além do que recomendam elementares normas de prudência, descobrimo-nos, nós, brasileiros, não só leitores da densa e significativa literatura sobre crise e morte das democracias, mas também participantes em primeira pessoa do drama que tais livros expõem. A bem da verdade, examinando nossa trajetória recente, o perigo rondava já há algum tempo, pelo menos desde que as multidões tomaram as ruas em 2013, sem que seu mal-estar fosse entendido ou metabolizado pelo sistema político e abrisse um horizonte de mudanças; ou quando cada um dos episódios eleitorais passou a assumir o aspecto irrazoável de luta de vida e morte, um combate feroz entre “nós e eles”, como se a alternância no poder não fosse um fato rotineiro em sociedades maduras.
Seja como for, e quaisquer que tenham sido as causas, o fato é que passamos a escrever – ou, mais apropriadamente, deixamos que outros passassem a escrever e, assim, “controlassem a narrativa” – a história da nossa própria crise. Não é preciso mais olhar para longe e mencionar nomes surpreendentes, como Donald Trump, e até desconhecidos, como Viktor Orbán. Abandonamos a leitura mais ou menos angustiada sobre os destinos do mundo, ou a ela não nos dedicamos mais com exclusividade, uma vez que experimentamos na própria pele a possibilidade de involução autoritária ou, o que vem a ser a mesma coisa, de compressão dos elementos especificamente liberais da democracia.
Uma “democracia iliberal”, na verdade, só se tornaria viável com o cancelamento do regime constitucional de 1988, daí o aspecto “revolucionário” de que inevitavelmente se reveste. De fato, implicaria levar até o fim, com radicalidade “jacobina”, dois processos em andamento, ainda que entre si contraditórios e, por isso, potencialmente desestabilizadores do próprio bloco político que os promove. Desde logo, a hipotética “nova ordem” seria o veículo para a refundação econômica do País nos termos do ministro Paulo Guedes, com escassa ou nenhuma preocupação social – de resto, não constitui ofensa ao ministro afirmar que a desigualdade, mesmo quando disruptiva, está muito longe de figurar entre suas maiores preocupações. “Perdedores” não lhe tiram o sono, sem importar que o número deles atinja as proporções catastróficas que nos rodeiam.