segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

Opinião do dia: Fernando Henrique Cardoso* - ‘A vontade de mudar”

É neste ponto que o carro pega. O futuro de um país se joga com sonho e ação. Se olharmos para trás, veremos que o sonho se esvaeceu. Persiste, mas é menos nítido na imaginação das pessoas. A rotina pesa mais que a vontade de mudar, de construir um futuro melhor para todos. É o que desejo para 2020 e para daí em adiante: que voltemos a sonhar. Tenhamos mais grandeza, não no sentido da arrogância, mas da fé em nosso destino nacional. Precisamos de maior coesão e menos diferenças entre “nós” e “eles”, sejam quais forem os “nós” e os “eles”. Para tanto precisamos diminuir as desigualdades: elas começam no berço, mas se consolidam na pré-escola e no ensino fundamental. Daí por diante, nem falar...

E não devemos perder de vista que vivemos numa civilização científica-tecnológica. A batalha do futuro se dará no campo da educação e da cidadania. É preciso que estejamos “conectados”, sem perder os valores básicos: precisamos utilizar a razão e saber que ela, sem sentimento, se torna mecânica, autocrata. Desejo que 2020 aumente a consciência de que podemos melhorar. Para isso deveremos estar juntos. A melhoria de um, quando prejudica o outro, desfaz a base que precisamos prezar: nossa coesão como pessoas que vivem na mesma comunidade nacional.

Bom ano novo, com emprego, prosperidade, mais igualdade e cidadania.


* Sociólogo, foi presidente da República. “Cidadania e prosperidade”, O Globo, 5/1/2020

Fernando Gabeira - A segunda década do século

- O Globo

Vivemos um sono tão longo. Só agora foi aprovado um marco para o saneamento. E a esquerda ainda resistiu

No passado houve um humorista chamado Don Rossé Cavaca, que escreveu algo mais ou menos assim: acorda que já é 1962 e você precisa trabalhar.

Num país em que os integralistas que atacavam o Barão de Itararé, seus filhotes queimam o Porta dos Fundos, o passado congelou. Talvez fosse necessário reescrever a frase de Cavaca: acorda que já é o século XXI e você precisa trabalhar. E é a segunda década, que já começa perigosa com os incidentes em Bagdá.

Vivemos um sono tão longo. Só agora foi aprovado um marco para o saneamento básico. E a esquerda ainda resistiu. Os manuais dizem que o saneamento é tarefa do governo, mas ao longo de todo esse tempo, ele se mostrou incapaz. Que se danem os manuais. A esquerda poderia, pelo menos, chegar ao pragmatismo dos chineses no século passado: não importa se o gato é preto ou branco…

Na educação, o ministro é monarquista, insulta as pessoas na rede e ainda aparece de guarda-chuva imitando Gene Kelly em “Cantando na chuva”.

Isso é um detalhe. Muita gente o acha incompetente. Bolsonaro e seus meninos, não. Por que não chegar a um acordo numa área tão decisiva?

É possível dizer: é assim mesmo, uns gostam, outros não, e bola pra frente. Acontece que em outra área decisiva, a infraestrutura, foi encontrado um denominador comum: o ministro é amplamente aceito. Por que não tentar o mesmo na educação, que todos concordam ser o tema essencial para o futuro do país?

A cultura brasileira, então, é um campo desolador porque se transformou numa trincheira de guerra ideológica. Tanto esquerda como direita parecem entender a cultura como uma extensão do discurso político. Esse modo de ver reduz a cultura a uma propaganda.

Rosiska Darcy de Oliveira - O labirinto do tempo

- O Globo

Obscurantistas se iludem, suas trevas não vieram para ficar

Cada flor jogada na água, cada pé molhado no mar é um gesto de esperança. Senão a multidão não cobriria as areias de Copacabana sussurrando desejos a Iemanjá. Fim de ano, fim de década.

Envolto em incertezas, nosso tempo é pobre em consolos e estruturas sólidas. A ciência e a tecnologia mudam a sociedade com mais rapidez do que as ideologias. Moldando estilos de vida, inauguram uma nova era. Na contramão do que é novo, por aqui pontifica uma ideologia caricata e delirante. O atraso cobriu o país de mofo em 2019. Um ano em que o ódio abriu suas asas mórbidas sobre nós.

O obscurantismo, como é de praxe, ameaçou artistas, intelectuais e jornalistas. Assustado com o mundo complexo que não cabe em seus limites estreitos rumina um sentimento de rancor. Sua palavra de ordem é, então, terra arrasada. Destruir tudo o que pensa e aponta para o futuro. Apagar o horizonte.

Longe desse cotidiano que nos asfixia, o mundo faz seu caminho de liberdades e riscos. As biotecnologias ampliam as fronteiras humanas ao mesmo tempo em que nos aproximam do impensável pós-humano. A internet dá acesso a toda a aventura do conhecimento. Paradoxal, permite também sua desconstrução e banaliza a mentira chamando-a de pós-verdade, enquanto manipula eleições. A genética propicia inesperadas configurações familiares. A inteligência artificial cria e rouba empregos. O robô segura a mão do idoso simulando o afeto que não tem.

Marcus André Melo* - Previsões

- Folha de S. Paulo

O concurso pode resultar na escolha do mais feio

O métier do cientista social equivale em larga medida ao de comentadores que tentam prever o resultado de concursos de beleza. A analogia não é minha —roubo-a de John Maynard Keynes (1886-1946), que a utilizou na sua Teoria Geral (1936).

A estória de Keynes refere-se a um concurso organizado por um jornal hipotético cujos participantes deveriam escolher —com base nas fotografias de centenas de candidato(a)s— os seis mais atraentes. Quem acertasse ganhava prêmios.

Há aqui duas lições. A primeira é reconhecer a distinção entre a preferência do analista e a dos demais, cuja agregação determinará o que irá acontecer para além daquela. Apostar no que desejamos que aconteça é fonte permanente de autoengano. Mas seu inverso —apresentar conjeturas falsas deliberadamente como previsões—, por seus efeitos políticos, é ainda mais danoso, porque compromete a integridade do métier do analista.

A segunda lição é que não se trata apenas da opinião pura e simples dos demais participantes, mas da percepção de que têm sobre a avaliação que a média das pessoas faz (as quais estão sujeitas a vieses). (Há aqui o risco de regressão infinita, mas há soluções técnicas para o problema).

Celso Rocha de Barros* - A Fiesp é fascista?

- Folha de S. Paulo

Bolsonarismo de Skaf amarra elite de SP ao que há de mais imundo na política

Paulo Skaf, presidente da Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo) está trabalhando pela organização do partido de Bolsonaro no estado. É uma vergonha para a indústria brasileira e para São Paulo.

Associando-se ao bolsonarismo, Skaf está amarrando a elite do estado mais dinâmico do Brasil ao que há de mais imundo e atrasado na tradição política brasileira.

A vanguarda de nosso empresariado defende o torturador Brilhante Ustra, que introduzia ratos nas vaginas das presas? A locomotiva da nação dá graças a Deus porque Pinochet matou o pai de Michelle Bachelet?

Há planos para projetar uma placa rasgada com o nome de Marielle Franco na fachada da sede na Paulista? As milícias de Rio das Pedras poderão se filiar à Fiesp?

A elite paulista, que já financiou a Semana de Arte Moderna de 1922, a USP e o Masp, agora patrocinará a doença mental de Olavo de Carvalho? Os empreendedores bandeirantes defendem o negacionismo climático? Aliás, que modelo de empreendedorismo os federados de Skaf pretendem oferecer aos jovens paulistas, a startup “Escritório do Crime”?

Leandro Colon – Ameaça mora ao lado

- Folha de S. Paulo

Datafolha mostrou que Moro é a personalidade pública em que os brasileiros mais confiam

O presidente Jair Bolsonaro começou 2020 sem surpreender. Soltou nos primeiros dias do ano frases desconexas, como a do “montão de amontado de muita coisa escrita” nos livros didáticos, e apoiou desnecessariamente o ataque dos EUA que matou um líder militar iraniano.

No sábado (4), passou 55 minutos em uma live em rede social. Falou de assuntos diversos e transpareceu o que tende a ser sua obsessão a partir deste segundo ano de governo: pavimentar o caminho para disputar a reeleição ao Planalto em 2022.

“Tem alguma liderança hoje em dia para 22? Me respondam. Não tem, não tem. Nenhuma liderança sólida para 22”, disse. “Às vezes o cara é muito bom. Aí você vai ver, é bom para ganhar o voto, mas vai chegar na hora e não vai funcionar”, afirmou.

Vinicius Mota - Sexo, drogas e roubalheira

- Folha de S. Paulo

Pesquisadora sugere que ilegalidade eleva em US$ 200 bi a renda oficial dos EUA

Francisca vai ao supermercado e compra uma dúzia de latinhas de cerveja, Bento passa no ponto de tráfico e arremata cinco pedras de crack. Pedro é cliente de uma sex shop, Maria paga michês.

Renata tem uma atuação exemplar no controle de estoques da loja de bijuterias, Paulo desvia algumas peças todo mês sem ser percebido.

Embora os quatro primeiros movimentem a economia, demandando bens e serviços, as atividades acessadas por Bento e Maria escapam em larga medida dos cálculos tradicionais do Produto Interno Bruto.

Os furtos de Paulo não deveriam modificar o PIB, pois as mercadorias só trocaram de mãos. Na prática, empresas costumam registrar essas subtrações silenciosas como alta de custos, o que reduz a conta final.

Ruy Castro* - A Bolha entre nós

- Folha de S. Paulo

Um organismo sem olhos, estômago ou cérebro. Onde você já viu um parecido?

Um amigo me mandou um artigo sobre um organismo até há pouco desconhecido e que vem intrigando a ciência. É o “Physarum polycephalum”, um primo em segundo grau das amebas e cujo nome, para quem matou aquela aula de latim, significa “mofo de muitas cabeças”. A classificação é instigante, mas enganadora. Não se trata de um fungo, nem animal ou planta, embora às vezes lembre um ou outro. E, mesmo já definido como inofensivo, está sendo chamado de A Bolha, numa referência a um filme Z de 1958, “A Bolha Assassina”, com o ainda anônimo Steve McQueen.

A Bolha —o organismo, não o filme— tem como habitat lugares úmidos e meio pantanosos, onde haja decomposição de cascas e folhas de árvores. É do que se compõe sua dieta, mas ela não se queixa. Algo dentro dela lhe ensina a descobrir esse alimento e se mover na direção dele, à razão de um centímetro por hora —velocidade quase olímpica, considerando-se que A Bolha não tem olhos, estômago e muito menos cérebro.

Bruno Carazza* - Agenda complexa em ano eleitoral

- Valor Econômico

Desafios nacionais não podem ser relevados por 2020

O que esperar de 2020? As festas de fim de ano passaram e, com elas, renovamos nossas reflexões sobre a vida que levamos e os sonhos que acalentamos. Na mitologia romana, o deus Jano, com as suas duas caras (uma olhando para trás e a outra para a frente), controla a transição entre o passado e o futuro. Seu mês, janeiro, descortina um novíssimo período de 365 dias para tentarmos fazer diferente e melhor - e olha que em 2020 teremos uma oportunidade a mais, já que o ano é bissexto.

Do ponto de vista das relações entre economia e política, 2019 deixou na memória a surpreendente aprovação da reforma da Previdência, medida acalentada desde o governo Temer, mas que retomou a tração a partir do alinhamento de visões da equipe econômica de Paulo Guedes, do centro parlamentar comandado por Rodrigo Maia e, sempre é importante destacar, de uma sociedade que parece cada vez mais madura para encarar difíceis escolhas econômicas. Infelizmente Bolsonaro deu-se por satisfeito com essa vitória e, em vez de tentar colher o máximo possível de lucros no primeiro ano de governo, quando seu capital político estava no topo, determinou ao Ministério da Economia que contivesse seu ímpeto por mudanças.

Mas, ao adentrarmos janeiro, é hora de passarmos das retrospectivas para as projeções quanto ao que virá. Tudo o mais constante, e caso o mundo não descarrilhe num conflito global de larga escala, uma de nossas poucas certezas é que teremos eleições municipais no Brasil.

Sergio Lamucci - A produtividade continua a decepcionar

- Valor Econômico

Agropecuária é o único setor a mostrar ganhos de eficiência

A retomada cíclica da economia brasileira ganha força, e um crescimento na casa de 2,5% em 2020 parece plausível. Com o impulso dos juros baixos, da melhora do mercado de trabalho e do aumento do crédito, a atividade deve avançar a um ritmo mais firme, com perspectivas favoráveis para o consumo das famílias e, em menor medida, para o investimento.

Do lado da produtividade, porém, as notícias continuam desanimadoras, um sinal preocupante para a capacidade de o país crescer a taxas mais elevadas no longo prazo. Números do Instituto de Economia Brasileira da Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV) mostram queda da produtividade do trabalho nos três primeiros trimestres de 2019, com desempenho muito ruim da indústria e dos serviços - a exceção é a agropecuária, o segmento que tem grandes ganhos de eficiência, mas uma participação pequena no PIB.

Na Carta do Ibre deste mês, o diretor do instituto, Luiz Guilherme Schymura, nota que o comportamento setorial mostra um padrão “parecido no curto e no longo prazo”. Em 2019, a produtividade do trabalho na indústria e nos serviços caiu nos três primeiros trimestres na comparação com os mesmos períodos do ano anterior, enquanto a da agropecuária subiu no primeiro e no terceiro, quando teve um salto de 4,6%. No intervalo de julho a setembro, a da indústria caiu 0,7% e a dos serviços, 1,3%. Entre 1995 e 2018, o resultado da indústria é muito decepcionante: uma queda de 5%. Nesses 23 anos, a de serviços avançou raquíticos 6%. A da agropecuária aumentou 358%.

Denis Lerrer Rosenfield* - Balanço

- O Estado de S.Paulo

A pauta reformista do governo Bolsonaro é um prolongamento da de seu antecessor

O primeiro ano do governo Bolsonaro caracterizou-se pelo enfrentamento com adversários, tidos por inimigos, testando o limite das instituições democráticas. A partir do momento em que o confronto político se tornou o eixo das ações, a prática destas, própria da democracia, passou necessariamente a segundo plano. Nesse sentido, há no atual governo um pendor autoritário que contrasta fortemente com seu não autoritarismo na esfera das relações econômicas, onde propugna uma redução do papel do Estado. Autoritarismo de um lado, liberalismo de outro, o que faz seu próprio projeto reformista do ponto de vista econômico terminar por se contaminar por essa sua contradição interna.

A concepção do político orientadora de suas ações pode ser retraçada ao teórico alemão Carl Schmitt, apoiador do nazismo e admirador de Lenin e Mao no pós-guerra, ao definir o campo do político como o da distinção entre amigos e inimigos, não podendo haver entre eles negociação e composição, o que seria próprio da via democrática, mais especificamente, parlamentar. Note-se, a esse respeito, que o governo Bolsonaro não preza e não tem articulação política, baseada na negociação, laboriosa e dura, com a Câmara dos Deputados e o Senado. Muitas vezes esse problema se traduz pelo fato de os políticos serem desconsiderados, supostamente, por serem “corruptos”, quando, na verdade, o problema consiste na composição partidária, tendo como objetivo a aprovação de medidas provisórias, projetos de lei e emendas constitucionais.

Apesar das aparências, não se pode dizer que tal caracterização do político seja algo próprio da extrema direita, quanto mais não seja pelo fato de Schmitt conferir-lhe validade universal. A questão reside em que ela é utilizada tanto por setores de direita quanto de esquerda. Lula e o PT empregaram a mesma distinção ao opor “conservadores e progressistas”, “nós contra eles”, num decalque da luta até a morte, segundo a formulação marxista, entre “burgueses e proletários”, entre “revolução e instituições democráticas”. Na cena internacional, hoje há schmittianos de direita e esquerda!

Luís Eduardo Assis* - Voa, galinha, voa!

- O Estado de S. Paulo

Se o governo não engendrar logo uma forma de alavancar investimentos, estaremos condenados a voar baixo

Em entrevista logo após a aprovação da reforma da Previdência, o ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, deitou falação e assegurou que o Brasil poderia, a partir de então, “oferecer aos investidores a tal previsibilidade que permite o cálculo econômico e que dá segurança a quem investe”. O ministro, que é veterinário, tocou num ponto que ocupa a teoria econômica há séculos. É fato que perspectivas favoráveis são cruciais para engendrar um novo ciclo de crescimento, mas desde então não só o ministro despontou para o anonimato, como também o investimento deu demonstrações apenas tépidas de que atendeu ao chamamento oficial.

Medir o comportamento do investimento não é coisa simples no século 21. Na enciclopédia editada pelo economista David Glasner (Business Cycles and Depressions), o verbete “investimento” é definido como “o fluxo da produção corrente alocado para a acumulação de capital”. Isso é coisa do tempo em que a indústria dava as cartas. Hoje é diferente, mas a metodologia do cálculo do investimento no Produto Interno Bruto (PIB) não se alterou de forma significativa. Se uma empresa gasta bilhões em novos sistemas, novos processos, novas marcas ou novos produtos, isso impacta pouco o cálculo do investimento, apesar de acumular enorme capital intangível.

Por essa métrica convencional, o Brasil ainda está devendo. A Formação Bruta de Capital Fixo (o nome completo que consta no passaporte do investimento) crescia, em termos anualizados, 4,1% no terceiro trimestre de 2018, ritmo que caiu para 3% no terceiro trimestre de 2019, quando ficou 23% abaixo do patamar do terceiro trimestre de 2013. Na indústria de bens de capital, núcleo duro do conceito tradicional de investimento, o quadro ainda é desolador. O crescimento porcentual anualizado em outubro de 2019 estava em 0,2%, ante 8,7% 12 meses antes. Ou seja, esse segmento da indústria está desacelerando. A produção de bens de capital de outubro de 2019 era 33% menor que a do final de 2013.

Eleição gera onda migratória e de celebridades

Eleições de 2020 vão realinhar sistema partidário com o fim das coligações proporcionais com cláusula de barreira

Por Malu Delgado | Valor Econômico

SÃO PAULO - O sistema partidário nacional volta a ser testado nas eleições municipais deste ano e o fim das coligações proporcionais vai gerar efeitos colaterais a quase todas as legendas. Além de terem que lidar com a cláusula de desempenho - regra que condiciona a representatividade no Legislativo e o direito a verbas públicas ao número de votos válidos obtidos no pleito -, as siglas menores também não poderão se beneficiar, em 2020, do chamado “efeito Tiririca”, que permitia a união de candidatos de legendas sem afinidade ideológica num mesmo balaio (mesma coligação), apenas para que os mais votados “puxassem” ao sistema os pouco agraciados pelo eleitorado.

Uma onda de migração de políticos entre legendas, no período da chamada janela eleitoral (4 de março a 4 de abril) e a proliferação de candidaturas de celebridades e “semi-celebridades” são duas tendências levantadas por cientistas políticos e especialistas em direito eleitoral. Já as grandes legendas terão um problema adicional a administrar: a difícil escolha entre lançar o maior número possível de candidaturas majoritárias nas grandes cidades ou compor chapas com aliados estratégicos, pensando em 2022. É pouco provável que se observe, neste ano, o impacto das regras na redução de siglas.

De acordo com o cientista político Antonio Lavareda, enquanto nas capitais e grandes cidades os partidos serão obrigados a lançar candidaturas próprias, pulverizando-as, no restante dos quase 5 mil municípios persistirá uma lógica binária, de luta política, travada entre duas ou três grandes expoentes locais. Isso pode explicar, advoga, a migração em massa dos políticos, na janela, para legendas com chance real na disputa.

“Em grandes municípios e capitais, os partidos tenderão a ter candidatos próprios. Há probabilidade de muita fragmentação de candidaturas”, explica Lavareda. O PT, sustenta, é um dos partidos que terão que fazer a escolha de Sofia: “O PT precisa recobrar seu espaço. Ao mesmo tempo, para evitar o isolamento, precisa de alianças”. Já nas pequenas cidades, Lavareda prevê que as disputas locais obriguem os candidatos a vereador a optar, no geral, entre dois ou três grandes partidos, sem o risco de perda de mandato durante a janela.

O que a mídia pensa – Editoriais

A imparcialidade da Justiça – Editorial | O Estado de S. Paulo

A Operação Lava Jato não apenas inaugurou um novo patamar de eficiência no combate à corrupção. Ela trouxe o Direito Penal e o Direito Processual Penal para o centro do debate público. Basta ver a repercussão gerada nas últimas semanas pela criação, por meio da Lei n.º 13.964/2019, da figura do juiz das garantias. Poucas vezes se viu uma alteração da legislação processual penal suscitar tamanha celeuma. Se é extremamente positivo o envolvimento da população com temas de evidente interesse público, como é o caso, ao mesmo tempo é necessário não se distanciar dos fatos.

Tratada por alguns como um retrocesso no combate à corrupção e à impunidade, a figura do juiz das garantias, “responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais”, como dispõe a nova lei, é um evidente aperfeiçoamento do sistema penal, ao garantir a imparcialidade do magistrado. O juiz das garantias, também conhecido em muitos países como juiz de instrução, não traz nenhum empecilho para a eficiência da persecução penal.

Poesia | João Cabral de Melo Neto - O dialeto*

No Recife havia um dialeto
família, o Gonçalves de Melo.
Nele falava minha mãe
e escrevia seu primo Gilberto.

Ele me aflora quando falo
Distraidamente ou sem ecos.
Nele nunca soube escrever:
Deve escrever-me um super-ego.

Depois de anos-luz de outras falas,
De viver de línguas alheias
p. ex, o esperanto carioca,
que menos que fala, canteia,

caio de volta no dialeto
com oito dias no Recife:
volta na fala, que na escrita
o super-ego não desiste

*In O Globo / Segundo Caderno, 4/1/2020