quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

Rosângela Bittar - O novo anormal

- O Estado de S.Paulo

Uma crise engole a outra e o governo Bolsonaro para todos não começa

Parece até de propósito, para manter a sociedade em choque permanente. O anômalo, de exceção, tornou-se regra, e a sequência vertiginosa de esquisitices tem sido de tirar o fôlego. Nada a ver com um grande governo de ideias estapafúrdias, mas com uma carnavalesca forma da gestão.

A demissão do secretário da Cultura, da motivação à efetivação, desenvolveu-se de forma não apenas patética, mas sem emoção. Jair Bolsonaro reafirmou, no episódio, como gosta de agir na gestão, admissão, demissão e comando: é o império do aleatório, do errático, do vazio; o novo anormal.

Minutos antes de baixar a forca, o presidente elogia o condenado. Nenhum dos dois, porém, sabe exatamente por que estão naquela situação. O presidente não disse o que era para fazer e o ajudante não contou o que faria. Uma vez feito, se vier a pressão, afasta o indigitado.

As demissões que fez até agora seguiram o rito. De pressões, já há uma tipologia: internacional, família, corporação. Os filhos têm uma arma: exploram as síndromes de perseguição e de traição que acometem o pai.

Vera Magalhães - 'Cadeia de comando'

- O Estado de S.Paulo

Desafios postos diante de Moro vão além da disciplina e da hierarquia: são políticos, éticos e institucionais

“Eu não contrario publicamente o presidente. Existe aí, evidentemente, uma cadeia de comando.” A frase, dita por Sérgio Moro já no primeiro bloco do programa Roda Viva, foi a tônica da entrevista do ministro da Justiça. É claro que num regime presidencialista os ministros seguem o presidente da República. Mas os desafios postos diante de Moro vão além da disciplina e da hierarquia. São políticos, éticos e institucionais.

Os políticos são óbvios, estão na mesa e tanto ele quanto o presidente os compreendem muito bem. Moro é o único a ombrear com Bolsonaro nas pesquisas hoje. O chefe não pode demiti-lo, sob pena de criar um adversário. E ele não pode sair do governo agora, sem antes traçar um caminho. O jogo de ver quem pisca primeiro continuará, e Moro parece ainda ter apetite para engolir alguns sapos.
Os conflitos éticos dizem respeito aos quase diários ataques às liberdades e às minorias por parte de Bolsonaro e de seus auxiliares.

Até quando será possível ao ex-juiz calar sobre assuntos como o atentado à produtora Porta dos Fundos e falar apenas em privado sobre absurdos como a performance nazista de Roberto Alvim? Ou silenciar quanto aos ataques à liberdade de imprensa? Não se trata, como diz ele, de ser um “comentarista-geral” da República. Mas de cumprir o papel de ministro da Justiça: o de guardião da democracia e da Constituição.

Por fim, os dilemas institucionais são os decorrentes do fato de que Moro convive no governo com acusados de irregularidades que, como juiz, não hesitaria em investigar. Isso afeta a imagem de “herói do Brasil”, hashtag que liderou o Twitter mundial durante o programa.

O ministro tem o maior cacife político do Brasil hoje. Ganha de Bolsonaro e eclipsou Lula. Resta saber o quanto desse patrimônio está disposto a queimar enquanto aguarda saber se vai para o STF ou se parte para uma candidatura. Pode parecer que há muito tempo até 2022, mas a corrosão que a exposição ao bolsonarismo é capaz de operar é incerta.

Fernando Exman - As próximas fases da crise na Venezuela

- Valor Econômico

Bancada de Roraima quer mais recursos do FPE e do FPM

A evolução da crise venezuelana foi objeto, em Brasília, de reuniões de análise de conjuntura e articulações políticas durante o normalmente pacato período de recesso parlamentar.

O tema ganhou evidência na semana passada, quando no último dia 16 o presidente Jair Bolsonaro levou para o Palácio do Planalto a cerimônia de passagem do comando da Operação Acolhida. Símbolo de prestígio e reconhecimento às atividades executadas, principalmente pelo Exército, no acolhimento e na interiorização dos migrantes e refugiados venezuelanos.

Nos bastidores, contudo, autoridades do Palácio do Planalto, ministros e parlamentares de Roraima também trataram de outras questões. Há uma preocupação em relação ao possível aumento da violência dentro da Venezuela e o fluxo populacional que pode resultar desse fenômeno, assim como com a capacidade do Estado brasileiro de atender essa população sem reduzir a qualidade dos serviços públicos na região.

Algumas estatísticas da Operação Acolhida ajudam a explicar as razões da movimentação política. Segundo estimativa do governo federal, cerca de 264 mil venezuelanos entraram e permaneceram no Brasil de 2018. Foram “interiorizadas” aproximadamente 27,2 mil pessoas, ou seja, transferidas para cerca de 375 cidades em 24 unidades da federação.

Dentre esses venezuelanos estão os cinco militares que foram detidos na fronteira no fim de dezembro do ano passado. Apesar das críticas do governo de Nicolás Maduro, que os considera terroristas, eles devem receber refúgio após passarem por período de quarentena. O que mais preocupa as autoridades de Roraima, contudo, são os civis que por lá se instalam.

Cristiano Romero - O grande risco

- Valor Econômico

Espera-se que Bolsonaro não ameace cumprimento da agenda econômica defendida hoje pela maioria dos brasileiros

Em julho de 2015, o economista Nilson Teixeira fez uma profecia terrível: a recessão que atingira o país no segundo trimestre do ano anterior seria a mais longa da história e a recuperação, a mais lenta. Infelizmente, acertou. A “Grande Recessão” durou três anos (2014/16) e registrou contração do PIB de 6,2%. A recuperação tem sido medíocre: entre 2017 e 2019, o crescimento acumulado pode ter sido de apenas 3,8%, muito inferior, portanto, à queda ocorrida no triênio anterior.

Economista-chefe do Credit Suisse quando fez o vaticínio, Nilson, hoje sócio da gestora Macro Capital, e sua equipe projetaram números menos pessimistas que os revelados mais tarde pela realidade. Ainda assim, a previsão contrariava a tradição da economia brasileira, de recuperação rápida de crises. A severa crise fiscal, um governo fraco e sem nenhuma intenção de promover reformas e corrigir os erros que provocaram a “Grande Recessão” compunham um quadro tão desolador que a superação levaria tempo.

Ninguém esperava, porém, que o PIB fosse recuar 3,5% em 2015 e 3,3% em 2016. Nos últimos três anos, o crescimento foi desanimador, contrariando as expectativas da maioria dos analistas - de 1,3% em 2017 e 2018 e de 1,16% em 2019, considerando para o ano passado a mediana das expectativas do mercado captadas pelo Banco Central.

Hélio Schwartsman - Bolsonaro e os judeus

- Folha de S. Paulo

Que meus correligionários atentem para o autoritarismo encabeçado por Bolsonaro

Num mundo em que versões prevalecem sobre fatos, criou-se a ideia de que a comunidade judaica brasileira em bloco apoia Jair Bolsonaro. A tese não procede. Como qualquer grupo razoavelmente heterogêneo, os judeus se dividiram em relação à candidatura do capitão reformado. Não existem pesquisas que permitam estimar números, mas é certo que a cisão foi acrimoniosa. Para dar uma medida do grau de polarização, basta lembrar que a direção da Confederação Israelita do Brasil praticamente entrou em guerra com o embaixador de Israel, que se tornou recentemente "amigo de infância" de Bolsonaro.

A ideia de que judeus estão com o presidente não surgiu, porém, do nada. Em sua origem está o apoio de primeira hora de alguns empresários judeus como Meyer Nigri (Tecnisa) e Elie Horn (Cyrella). O fato de Bolsonaro ter escolhido o hospital da comunidade, o Albert Einstein, para se tratar da facada que levou ajudou a criar a imagem de afinidade, que foi consolidada pela aproximação do já presidente com o premiê israelense, Binyamin Netanyahu, e pela indicação de nomes com ascendência judaica para compor o primeiro escalão do governo.

Bruno Boghossian - Manipular e perseguir

- Folha de S. Paulo

Procurador distorce diálogo gravado para defender interesse de colegas da Lava Jato

A Polícia Federal ouviu as 1.285 palavras trocadas entre Glenn Greenwald e um dos hackers de Araraquara no último dia 7 de junho. O delegado não viu provas contra o jornalista e anotou que ele manteve na conversa “uma postura cuidadosa e distante”. Já o procurador Wellington Oliveira realizou a façanha de analisar o mesmíssimo diálogo e denunciar o repórter por três crimes.

O contorcionismo do Ministério Público Federal para alvejar Glenn mostra como uma corporação é capaz de manipular o sentido das leis para proteger seus próprios integrantes e perseguir quem incomoda.

O procurador ignorou o fato de que o jornalista não era sequer investigado pelo hackeamento de autoridades como Sergio Moro e a força-tarefa da Lava Jato. Preferiu distorcer diálogos que, na verdade, desmontam sua própria tese.

O responsável pela denúncia argumentou que Glenn recebeu material de sua fonte enquanto o grupo continuava acessando ilegalmente conversas de outros personagens. A investigação, porém, aponta que as mensagens utilizadas pelo jornalista haviam sido obtidas anteriormente.

Ruy Castro* - Pátria amada

- Folha de S. Paulo

Será suficiente lavar com sabão a bandeira no vídeo de Roberto Alvim?

Sou despertado todos os dias pelo rádio de cabeceira. Os locutores têm fixação por engarrafamentos, as vinhetas musicais são longas e repetitivas e o Brasil parece sempre pior do que na véspera. É bastante para fazer o cidadão pular da cama e ir à vida, em vez de tentar mais dez minutos de cochilo. E, mesmo que não fosse, há os anúncios da propaganda oficial com as façanhas dos ministérios, todos terminando com a assinatura: "Ministério tal. Governo Federal. Pátria amada, Brasil".

É de embrulhar os mais rijos estômagos, tão desprevenidos de manhã. A mim, soam particularmente ofensivos, porque não gosto que me pespeguem a pátria amada sem minha autorização. Não por ter algo contra a dita pátria —perdi a conta das vezes em que, nos anos 60, saí às ruas do Rio por ela, levei borrachadas no lombo e passei algumas horas numa cela da rua da Relação. É que não sei se estamos falando da mesma pátria. Se for a atual, dedicada a destruir a educação, o ambiente, as relações exteriores, os direitos humanos e a cultura, pode ser a mesma, mas não será amada.

Luiz Carlos Azedo - Os intocáveis

- Nas entrelinhas | Correio Braziliense

”O jornalista Glenn Greenwald é acusado de associação criminosa e crime de interceptação telefônica, informática ou telemática, com objetivos não autorizados em lei”

A denúncia apresentada, ontem, pelo Ministério Público Federal (MPF) contra o jornalista Glenn Greenwald, do site The Intercept, representa uma blindagem para a força-tarefa da Lava-Jato e o ministro da Justiça, Sérgio Moro, contra acusações da oposição de abuso de autoridade na condução das investigações. O relatório da Polícia Federal sobre o caso não constatou evidências da participação do jornalista nos crimes investigados, mesmo assim, Glenn foi denunciado na Operação Spoofing, que apura invasões de celulares de autoridades. É acusado de associação criminosa e crime de interceptação telefônica, informática ou telemática, sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei.

O Intercept, em 2019, publicou conversas atribuídas ao ministro Moro, então juiz federal, e a procuradores da Operação Lava-Jato. Glenn revelou que Moro orientou ações e cobrou novas operações dos procuradores; para o jornalista do Intercept, demonstrou parcialidade em sua atuação como juiz. Agora, o Ministério Público afirma que Glenn “auxiliou, orientou e incentivou” o grupo de hackers suspeito de ter invadido os celulares de autoridades durante o período em que os delitos foram cometidos, apesar de o relatório da Polícia Federal, em dezembro passado, concluir que “não é possível identificar a participação moral e material” do jornalista nos crimes.

O delegado da Polícia Federal Luís Flávio Zampronha, responsável pelo inquérito, fez seu relatório com base nos diálogos interceptados. Glenn é citado e participa de algumas conversas, mas não houve base para indiciá-lo: “Não é possível identificar a participação moral e material do jornalista Glenn Greenwald nos crimes”. O delegado explicou também que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, para a configuração do tipo penal, exige que o objeto material do crime deve possuir valor econômico intrínseco, o que não foi o caso.

Ricardo Noblat - Denúncia contra Greenwald irá para a lata do lixo

- Blog do Noblat | Veja

Abuso de autoridade
Está com os dias contados a decisão do procurador Wellington Divino Marques de Oliveira de denunciar o jornalista Glenn Greenwald como “partícipe” nos crimes de invasão de dispositivos informáticos, monitoramento ilegal de comunicações de dados e associação criminosa no caso das conversas entre os procuradores da Lava Jato e o ex-juiz Sérgio Moro publicadas pelo site The Intercept Brasil, VEJA, Folha de S. Paulo e o jornal El País.

Cabe ao Supremo Tribunal Federal, tão logo chegue ali uma reclamação da defesa do jornalista, manter ou mandar arquivar a denúncia. Se a reclamação for apresentada de imediato, o ministro Luiz Fux, de plantão durante as férias de fim de ano dos seus colegas, arquivará a denúncia contra Greenwald. Se a reclamação só der entrada no tribunal em fevereiro, o ministro Gilmar Mendes procederá da mesma forma.

Mesmo que Fux rejeitasse a reclamação da defesa, a última palavra seria de Gilmar. Porque em agosto último, o ministro decidiu que as autoridades públicas e seus órgãos de apuração se abstivessem de “praticar atos que visem à responsabilização do jornalista Glenn Greenwald pela recepção, obtenção ou transmissão de informações publicadas em veículos de mídia, ante a proteção do sigilo constitucional da fonte jornalística”.

O indiciamento de Greenwald pelo procurador Marques de Oliveira afronta a decisão de Gilmar, como o próprio ministro admitiu, ontem, em conversa com um amigo por telefone. Gilmar está em Lisboa, onde tem um apartamento. Voltará a Brasília daqui a uma semana. Afronta também decisões tomadas pelo Supremo Tribunal que garantem o sigilo das fontes jornalísticas de informação. Sem o sigilo, não haveria liberdade de imprensa.

De resto, a Polícia Federal investigou o hackeamento das conversas entre autoridades da Lava Jato e não encontrou evidências que possam incriminar Greenwald. Por qualquer ângulo que se examine, a peça do procurador Marques de Oliveira simplesmente não se sustenta. Seu destino será o lixo da História.

Entrevista de Moro no Roda Viva desagradou a Bolsonaro

Pisadas na bola
É difícil agradar ao presidente Jair Bolsonaro. Por mais que tenha se esforçado para isso, o ministro Sérgio Moro, da Justiça, não conseguiu completamente ao longo de uma hora e meia de entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura.

Marina rebate declaração de Guedes e diz que degradação ambiental é culpa do governo

Levantamento mostra que 35% do desmatamento entre 2018 e 2019 ocorreu em processo de grilagem

Fabiano Maisonnave | Folha de S. Paulo

SÃO PAULO - A ex-ministra do Meio Ambiente Marina Silva (Rede) criticou a declaração do ministro Paulo Guedes (Economia) em Davos (Suíça) que vinculou a degradação ambiental à pobreza. Para ela, são políticas públicas do governo Bolsonaro, como a regularização de áreas griladas, que incentivam o desmatamento na Amazônia.

“O que gera maior critica o maior desmatamento e crime ambiental são os governos”, disse Marina, em entrevista por telefone. “Eles desmontam a governança ambiental, apoiam formas predatórias de uso da floresta e dos recursos naturais, negam o problema das mudanças climáticas, cortam o orçamento do Ministério do Ambiente e ainda têm a falta de noção de dizer que o maior inimigo são os pobres.”

Filha de seringueiros e natural do Acre, Marina foi ministra de 2003 a 2008, no governo Lula. Na pasta, promoveu a criação de unidades de conservação na Amazônia e conseguiu reduzir o desmatamento por meio do Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm), extinto pelo governo Bolsonaro.

“É muito cômodo culpar a pobreza pela degradação do meio ambiente. Eles enfraquecem o Ibama, o ICMBio e o Inpe, propõem uma medida provisória pra quem roubou terra pública e aí dizem que os pobres são os inimigos do meio ambiente?”, questionou.

Vinicius Torres Freire - Burrice autoritária é o pior inimigo do meio ambiente

- Folha de S. Paulo

Economia padrão e ideias liberais tem ideias ambientais ignoradas por Bolsonaro

O crescimento econômico é o pior inimigo do ambiente, insinuou Paulo Guedes em debate em Davos. Na verdade, o ministro da Economia falou que a pobreza, pessoas que "precisam comer", destroem o ambiente, como o fizeram povos que têm outras "preocupações" porque já "destruíram suas florestas" e já lidaram com "suas minorias étnicas" (oi?).

Suponha-se então que o ministro tenha recorrido a uma metonímia (superação da pobreza etc.) para se referir ao fato de que o crescimento esteve associado à destruição da natureza, pelo menos até faz bem pouco tempo.

Que não estivesse se referindo a dano ambiental causado por indivíduos pobres ou ao genocídio de indígenas, o que já foi motivo de elogio de Jair Bolsonaro.

Ainda assim, não dá pé. É verdade que, mesmo no melhor dos mundos, de onde estamos cada vez mais distantes, crescimento provoca dano ambiental, embora cada vez mais o dano ambiental solape a possibilidade de crescimento econômico ou da vida. Além do mais, há alternativas para atenuar ou mesmo eliminar alguns desses problemas.

Para ficar apenas no universo da economia-padrão ou de ideias liberais, há destruição ambiental por falhas de mercado, falhas de coordenação e ineficiências em geral.

Carlos Góes* - Economia sem democracia não resiste por muito tempo

- Folha de S. Paulo

Efeito da democracia e das instituições sobre a economia se dá no longo prazo

O governo Bolsonaro convive com uma contradição fundamental. O paradoxo consiste na forma como o Presidente vê a relação entre Estado e sociedade e como a equipe do Ministério da Economia vê essa simbiose.

Para Bolsonaro, o modelo ideal seria aquele delineado pela ditadura militar: nacionalista e controlador da vida social e econômica do país. Já a equipe de Paulo Guedes tem planos de reformas liberalizantes que se chocam diretamente com o modelo de País vislumbrado pelos militares. Resta a pergunta: até que ponto os benefícios das reformas econômicas podem conviver com a agenda cultural nacionalista e o ataque às instituições?

No curto prazo, a economia parece estar descolada da agenda cultural. Muitos se surpreenderam com o fato de o Ibovespa não reagir negativamente ao discurso de contornos nazistas do demissionário Secretário de Cultura de Bolsonaro. Mas não deveria ser surpreendente: preços de ações refletem expectativas de lucros futuros das empresas listadas em Bolsa, dando maior peso para o futuro próximo. Efetivamente, o impacto imediato da agenda cultural sobre o lucro das empresas ali representadas é próximo de zero.

O efeito da democracia e das instituições sobre a economia se dá no longo prazo. Bens públicos de responsabilidade do governo (como saúde primária, educação de base, controle de epidemias e resposta a desastres naturais) tendem a ser mais responsivos aos desejos da população em governos democráticos. Amartya Sen, prêmio Nobel de Economia, assinala em seu livro Desenvolvimento como Liberdade que, como governos democráticos precisam ganhar eleições e manter sua popularidade, mesmo países muito pobres como a Índia, sob democracia, foram capazes de evitar a penúria alimentar.

Elio Gaspari - Weintraub fez um Enem infernal

- O Globo / Folha de S. Paulo

O que aconteceu foi inédito: erraram nas notas

É a mesma história, a quitanda abre tarde, sem berinjelas para vender, nem troco para a freguesa. Não bastassem as filas do INSS, o governo conseguiu azucrinar a vida da garotada que fez o exame no Enem e viu-se tungada nas notas. Aos aposentados disseram que fila é “estoque” e atraso é “empoçamento”. Aos estudantes dizem que erro nas notas é “inconsistência” e que o Inep “imediatamente adotou medidas”. A primeira afirmativa é empulhação, a segunda, mentira.

O vestibular sempre foi uma crueldade imposta aos jovens brasileiros. Em duas manhãs eles são obrigados a jogar um ano de vida, bem como suas expectativas pessoais e de seus familiares. Desde 2009 acontecem desgraças nesse exame. Num ano houve o furto de provas na gráfica, em três outros comprovaram-se vazamentos de questões. O que aconteceu com o exame de 2019 foi coisa inédita: erraram nas notas dadas a estudantes e em dois dias foram da onipotência à mistificação.

Aos fatos:

Vitor Brumano, 19 anos, candidato a uma vaga num curso de Engenharia, viu que sua nota não conferia. Tentou se queixar, mas não havia onde. Ligou para um 0800, e a atendente lhe disse que era isso mesmo. Registrou sua reclamação junto à Ouvidoria do Inep e recebeu a seguinte resposta:

“O edital que regulamenta o exame não prevê a possibilidade de recorrer da nota, pois o desempenho do participante na prova objetiva é calculado com base na TRI, a prova do Enem tem 180 questões objetivas. Portanto, a média não é exatamente proporcional à quantidade de acertos porque as perguntas têm grau de dificuldade diferente”. Conversa de educateca.

Vitor criou um grupo no WhatsApp. Começou com sete jovens tungados e em poucos dias teve dois mil comentários.

Zuenir Ventura - Novo e difícil papel

- O Globo

Ela corre o risco de desagradar a quem torce a favor e a quem torce contra

Desde que começou sua carreira, aos 14 anos, Regina Duarte tem diante de si agora, aos 72, o papel mais difícil de sua vida. Tudo indica — escrevo de véspera — que ela vai aceitar o cargo para o qual foi convidada pelo presidente Jair Bolsonaro. Ficou de dar a resposta oficial hoje e, por via das dúvidas, os dois recorreram à velha metáfora do casamento: estão noivos.

Independentemente do desempenho, ela corre o risco de desagradar aos que torcem a seu favor e aos que torcem contra. A tarefa que terá pela frente é conciliar os dois lados, e ela, supostamente em sua missão de paz, saiu do encontro falando maravilhas do interlocutor, e já chegou ao ponto de classificá-lo como um “cara doce”. Só com muita boa vontade pode se chamar de “doce” quem se caracteriza pela incontinência verbal e é capaz de xingar a mãe do repórter que lhe faça uma pergunta incômoda.

Mas a grande questão é saber o que será feito da herança maldita do ex-secretário, que confessou ter escolhido para dirigentes de entidades culturais “profissionais conservadores para criar uma máquina de guerra cultural”. O indicado para a presidência da Funarte, por exemplo, declarou que o rock “leva ao aborto e ao satanismo”.

Bernardo Mello Franco - A era da denúncia sem investigação

- O Globo

Campeão de ataques à imprensa, Jair Bolsonaro já havia ameaçado Glenn Greenwald de prisão. Agora a ameaça ao jornalista vem do Ministério Público Federal

Depois da denúncia sem provas, surgiu a denúncia sem investigação. Glenn Greenwald não era alvo do inquérito que apura a quebra de sigilo de mensagens de autoridades da Lava-Jato. Mesmo assim, o procurador Wellington Divino de Oliveira resolveu acusá-lo de associação criminosa.

Há sete meses, o jornalista do Intercept Brasil revela diálogos incômodos para o ex-juiz Sergio Moro e a força-tarefa de Curitiba. As reportagens o transformaram em alvo do governo e de suas milícias virtuais. O presidente Jair Bolsonaro, campeão de ataques à imprensa, chegou a ameaçá-lo de prisão.

Agora a ameaça vem do Ministério Público Federal. O procurador Oliveira pediu à Justiça que o repórter seja condenado pelo antigo crime de quadrilha. Para isso, ignorou uma decisão do Supremo e um relatório da Polícia Federal, subordinada a Moro.

Em dezembro, o delegado Luís Flávio Zampronha concluiu que “não é possível identificar a participação moral e material do jornalista Glenn Greenwald nos crimes investigados”. Ele indiciou os hackers que violaram as mensagens, não o jornalista que recebeu e divulgou as informações.

Merval Pereira - Industrializar a Biodiversidade

- O Globo

O ministro da Economia, Paulo Guedes, com a sua retórica estimulante, poderia estar hoje em Davos anunciando novos projetos industriais na Amazônia

A polêmica frase do ministro da Economia Paulo Guedes, representante do Brasil no Fórum Econômico Mundial, afirmando que as queimadas da Amazônia são provocadas pela necessidade de se alimentar dos brasileiros que vivem na região, é uma derivação do que já disse o presidente Jair Bolsonaro: “As queimadas são uma questão cultural”.

Assim se resume a política ambiental do novo governo brasileiro: a prioridade é o milhão de pessoas que moram na região amazônica. Não há o que discordar, as pessoas em primeiro lugar. O problema é que o governo considera que a devastação da Amazônia é justificável pela questão social, sem nem mesmo admitir que a exploração econômica descontrolada serve apenas aos interesses dos grileiros, que ao mesmo tempo devastam vidas humanas que exploram e o meio ambiente que degradam em busca de vantagens econômicas.

O mais angustiante é que a exploração econômica da Amazônia baseada na nossa biodiversidade é um grande projeto nacional que poderia ser levado adiante para reforçar nossa soberania na região, que tanto preocupa os militares.

Os projetos para a Amazônia sempre foram paralisados pelos disputa politica, mesmo no governo Lula, quando a então ministra do Meio-Ambiente Marina Silva propôs programa nacional de Amazônia Sustentável, citado pelo ex-presidente do Inpe Ricardo Galvão como uma boa proposta no caminho do desenvolvimento da região.

Míriam Leitão - A economia do desmatamento

- O Globo

Para grilar e desmatar é preciso um grande volume de capital. O governo tem que entender melhor quais são os vetores do desmatamento

Quanto custa uma motosserra? E várias delas? Quanto custam tratores, correntões, caminhões? Tudo isso é necessário para desmatar. Um método primitivo, mas muito usado, é o correntão. Ele vai arrastando as árvores, mas não funciona sem tratores. São necessários dois, um de cada lado. Quanto custam dois tratores? Depois, é preciso ter caminhões para transportar as toras até o consumo. Mas, antes, é necessário ter uma escavadeira hidráulica com garra de metal para empilhar as toras nos caminhões. Capangas armados ocupam a terra que está sendo grilada. Fazem isso a soldo. De quem? Documentos são esquentados, como as guias de transportes. São comprados títulos falsos de propriedade. O ministro Paulo Guedes disse em Davos que “o pior inimigo do meio ambiente é a pobreza” e que “as pessoas destroem o meio ambiente porque precisam comer”. Não é a pobreza que desmata. Para grilar e desmatar é preciso capital. Muito capital.

O ministro estava num debate sobre outro assunto. Era um painel sobre indústria avançada e o uso de recursos naturais. Paulo Guedes, segundo explicou depois, defendia a tese de que os países de economia avançada derrubaram florestas para escapar da pobreza. Mas essa ideia de que, como disse, “as pessoas destroem o meio ambiente porque precisam comer” já foi dita algumas vezes pelo ministro do Meio Ambiente. É uma avaliação errada dos vetores reais do desmatamento.

No ano passado foram desmatados quase 10 mil km2 só na Amazônia, numa alta de 30%, segundo o Prodes, do Inpe. E aumentaram as queimadas. Há muitos estudos provando a correlação direta entre o aumento do desmatamento e o das queimadas. Não houve um surto de alta da pobreza que explicasse o que aconteceu em 2019. O que houve foram sinais do governo de que o crime não seria combatido. E qualquer economia, até a do crime, é estimulada por sinais e expectativas.

O que a mídia pensa – Editoriais

A 'noiva' da Cultura – Editorial | Folha de S. Paulo

Em área dominada pelo caos, escolha de Regina Duarte pode trazer previsibilidade

Desde a campanha eleitoral de 2018, os apoiadores de Jair Bolsonaro elegeram a cultura como um campo de batalha. Na visão de ideólogos ligados ao atual presidente, tratava-se de território dominado pela doutrinação de esquerda, uma espécie de grande trincheira internacional de ideias derivadas do marxismo a ser combatida.

Paralelamente, a militância do então candidato empenhava-se em ataques nas redes sociais com o intuito de desmoralizar artistas consagrados, que se aproveitariam de “mamatas”, como a Lei Rouanet, para enriquecer e —em alguns casos— entregar-se à devassidão.

Eleito, Bolsonaro passou da teoria à prática e desmontou o que sempre viu como uma estrutura a serviço de projetos esquerdistas. As ações do presidente, em nada familiarizado com o setor, revelaram-se caóticas e ineficazes. Em um ano, a secretaria que substituiu a antiga pasta foi alocada em dois ministérios e teve três titulares.

O último deles, como se sabe, foi demitido sob intensas pressões sobre o presidente depois de ter estrelado um vídeo no qual parodiava Joseph Goebbels, o ministro da Propaganda de Adolf Hitler.

Poesia | Charles Baudelaire - O inimigo

Minha juventude não foi senão um tenebroso furacão,
Salpicado aqui e ali por alguns sóis dourados;
Torrentes de chuva fizeram tanta e tal destruição,
Que restam em meu pomar poucos frutos sazonados.

Eis que cheguei ao outono do pensamento,
E foi preciso usar pás e picaretas
Para renovar as terras em desalento,
Onde a água fura tumbas, buracos e valetas.

E quem sabe se neste solo, lavado e arenoso,
As novas flores com que sonho encontrarão
O místico alimento que o fará vigoroso?

- Que dor! oh que dor! O Tempo, a vida devora
E o obscuro inimigo que nos corrói o coração
Do sangue que perdemos, cresce e se revigora.

Tradução
L’Ennemi, Les Fleurs du Mal - Charles Baudelaire (1821-1867).