sábado, 1 de fevereiro de 2020

Ricardo Noblat - Bolsonaro pode deixar tudo como está para ver como ficará. Ou não

Blog do Noblat | Veja

Um governo que se alimenta de crises

Fazer o quê com Onyx? Transferi-lo para outro ministério? Seria a mesma coisa que transferir a crise – argumentou, ontem, com um dos seus auxiliares, o presidente Jair Bolsonaro.

Onyx Lorenzonni é o chefe da Casa Civil. Perdeu para o general Luiz Eduardo Ramos a coordenação política do governo. Para Paulo Guedes, o Programa de Parcerias de Investimentos.

Perdeu seu número 2 demitido, readmitido e demitido outra vez por Bolsonaro em menos de 48 horas. E perdeu seu assessor de imprensa, também demitido por Bolsonaro.

Sem ser convidado, o ministro com a cabeça a prêmio foi ao Palácio da Alvorada com outros colegas para uma reunião onde se discutiu o risco para o Brasil da epidemia do coronavírus chinês.

Bolsonaro cumprimentou-o friamente. Mas os dois não conversaram a sós. Ficou para hoje. Onyx não pedirá demissão. Bolsonaro não decidiu se o demitirá. Talvez sim, talvez não.

Onyx fará o que Bolsonaro quiser – desde que não fique ao sol e à chuva. O presidente é um homem imprevisível. Pode não decidir nada, ou decidir e mudar de opinião no momento seguinte.

Demitiu e humilhou Gustavo Bebbiano, ministro da Secretaria Geral da Presidência da República, um advogado que chegou a dormir no chão da casa dele quando Bolsonaro era candidato.

Quando Bebbiano estava prestes a deixar o Palácio do Planalto, Bolsonaro ofereceu-lhe uma das diretorias da hidroelétrica de Itaipu. Bebbiano recusou. Hoje, os dois são inimigos jurados.

Oscar Vilhena Vieira* - República, para quem puder mantê-la

- Folha de S. Paulo

Ao absolver Trump, republicanos se tornam corresponsáveis pelos seus abusos

Tudo indica que o julgamento do impeachment de Donald Trump caminha para um rápido desfecho.

A absolvição de Trump sempre foi dada como certa. Afinal, a maioria dos senadores que irão julgá-lo pertence ao partido do presidente.

Se o resultado era sabido, por que gastar tanto tempo e energia com isso? Por que a experiente deputada democrata Nancy Pelosi, presidente da Câmara dos Deputados, que por muito tempo relutou em autorizar o início de outros pedidos de impeachment contra Trump, cedeu no caso da Ucrânia?

A resposta realista é que Pelosi simplesmente percebeu que os custos de sua inércia estavam se tornando mais altos que os riscos em autorizar as investigações. Ainda que a expectativa de remover Trump fosse baixíssima, a oportunidade de fustigá-lo tornou-se irresistível.

O argumento de Pelosi, no entanto, foi mais sofisticado. Ao extorquir o presidente da Ucrânia para prejudicar seu adversário nas próximas eleições, Trump cruzou uma linha fundamental, colocando em risco não apenas a soberania nacional, mas a própria democracia americana.

Benjamin Franklin, quando perguntado sobre qual a natureza do regime criado pela Constituição de 1787, teria respondido: “Uma República, se vocês puderem mantê-la”. Ao se colocar acima da lei, Trump impôs aos democratas o imperativo de defender a República.

O impeachment é uma velha geringonça institucional que os norte-americanos importaram dos ingleses e nós dos americanos.

Julianna Sofia - O latifúndio de Guedes

- Folha de S. Paulo

Com PPI, superministro administrará da fila do INSS à venda de parques nacionais e Eletrobras

Caso não seja apenas mais um arroubo retórico de Jair Bolsonaro seguido de recuo, o anúncio presidencial de incorporar o PPI (Programa de Parcerias de Investimentos) ao ministério de Paulo Guedes (Economia) será mais uma medida a expandir o latifúndio administrativo a cargo do superministro.

No ano passado, a fusão das pastas da Fazenda, do Planejamento, do Desenvolvimento e do Trabalho foi promovida com o argumento de dar coerência às ações da nova e ultraliberal equipe econômica. O que seu viu, por meses, foi a dificuldade de por em funcionamento uma máquina de proporções gigantescas e com tentáculos mui diversos.

Na reforma agrária ora em curso, o presidente desidrata a já esquálida Casa Civil para tirar poderes e tornar insustentável a permanência de Onyx Lorenzoni à frente do órgão —há uma semana, Bolsonaro impingiu ao ministro-herói Sergio Moro mesmo tipo de fritura, mas a reação contrária das redes à manobra do presidente garantiu blindagem ao ex-juiz da Lava Jato.

Hélio Schwartsman - Como enfrentar a epidemia?

- Folha de S. Paulo

Em 2002-3, o democrático Canadá lidou melhor com a Sars do que a ditatorial China

Qual o melhor sistema político para enfrentar a epidemia provocada pelo novo coronavírus? O modelo centralizador-autoritário chinês, que faz as coisas acontecerem rapidamente, ou o das democracias ocidentais, que põem limites à atuação de autoridades e privilegiam o livre fluxo de informações?

Não há como não se impressionar com a capacidade de mobilização da China, que constrói um hospital de mil leitos em seis dias, ou com a assertividade de seus dirigentes, que não hesitam em pôr milhões sob quarentena. Mas o sistema chinês saiu em desvantagem. A forma arbitrária com que o poder é exercido ali estimula autoridades locais a esconderem problemas. Ao que tudo indica, foi o que fizeram inicialmente em Wuhan, retardando a percepção da gravidade do surto.
1.
Quarentenas forçadas, embora sejam desde o século 14 a resposta automática de autoridades a epidemias, funcionam melhor ou pior dependendo das características da doença. Elas têm mais chance de conter a moléstia quando a capacidade do patógeno de gerar novas infecções a partir de um paciente (o R0, em epidemiologuês) é baixa e quando a transmissão só ocorre após o aparecimento dos sintomas.

Demétrio Magnoli* – Perjúrio

- Folha de S. Paulo

Democracia americana sairá menor do processo de impeachment de Trump

Os senadores americanos juraram, de acordo com a Constituição, fazer "justiça imparcial" no julgamento de Donald Trump. Mas Mitch McConnell, líder republicano no Senado, proclamou que conduziria sua bancada em "total coordenação" com o próprio Trump. Antes da primeira sessão, McConnell confessou perjúrio: "Não sou um juiz imparcial. Este é um processo político. Impeachment é uma decisão política". A democracia americana sairá menor do processo.

O instituto do impeachment deita raízes na Inglaterra do século 14. Michael de La Poe, ministro de Ricardo 2º, sofreu impeachment, em 1386, por nomear funcionários incompetentes. O bispo John Thornborough foi impedido, em 1604, por escrever um livro controverso sobre a união com a Escócia. Não faltaram casos de impeachment por ofensas como a demissão de bons magistrados ou oferecer conselhos ruinosos ao rei.

Nos EUA, a tradição britânica foi recolhida, mas conheceu restrições. O impeachment só atingiria autoridades acusadas de "crimes e delitos sérios". Contudo nunca foi circunscrito a atos criminosos, na acepção judicial do termo. O critério americano destina-se a evitar que uma alta autoridade tire proveito do cargo para, violando leis, expandir seu poder pessoal ou perpetuar o poder de seu grupo político.

Miguel Reale Júnior* - Um país do avesso

- O Estado de S.Paulo

Busca-se um juiz imaculado. Essa é uma ilusão tão louvável como irrealista

Como tudo o que atualmente sucede no Brasil, a adoção da figura do juiz das garantias revestiu-se de emoção e pré-juízos. Hoje, para ser jurista basta ser internauta.

O juiz das garantias é o competente para decidir sobre os incidentes ocorridos na fase do inquérito policial, em especial escuta telefônica, busca e apreensão e prisão preventiva do indiciado. Pretende-se, então, deixar o juiz da causa isento de qualquer participação em decisões anteriores ao início da ação penal, para que atividade anterior não comprometa a imparcialidade.

O juiz das garantias é adotado em diversas legislações em que há, contudo, o juizado de instrução, com ampla atuação probatória do juiz na fase inquisitiva. No processo penal chileno, no italiano e no código modelo para a América Latina há um juiz de instrução, com grande poder de determinação de produção probatória e até mesmo indicação de propositura da ação penal, como dispõem o artigo 258 do Código de Processo Penal (CPP) do Chile e o artigo 409 do CPP da Itália.

No nosso sistema, ao contrário, o juiz é passivo, pois em geral age por solicitação da polícia ou das partes, exceto nas hipóteses previstas nos artigos 156 e 242 do CPP, que deveriam ter sido revogados desde a Constituição de 88, pois efetivamente não deve o juiz ter nenhuma iniciativa probatória.

Presume-se que o juiz, por autorizar medidas cautelares pedidas pelas partes, venha a criar predisposição impeditiva de postura equidistante. Suspeita-se que o juiz, ao examinar pedido de medidas cautelares, como uma escuta telefônica, estará por isso comprometido com um veredicto final condenatório. Não me parece, todavia, que o juiz se vincule às suas decisões precárias no exame da prova de forma a estar já convicto de como decidir. Estaria o juiz que não concede a prisão preventiva solicitada pela polícia comprometido a absolver o réu? Não. E, igualmente, o que a concede deixará de absolver diante de provas de inocência produzidas no processo só porque decretou a preventiva?

Vera Magalhães - Onyx vai a Bolsonaro, mas ainda balança no cargo

- O Estado de S. Paulo

Presidente encerra entrevista sem confirmar se chefe da Casa Civil fica ou sai do governo

Chá de cadeira. Onyx está sendo colocado em fogo brando pelo chefe. Bolsonaro demorou a receber o ministro, que voltou antes das férias nos Estados Unidos quando viu que sua cabeça estava a prêmio. "Já que deturpou a entrevista, acabou a conversa", respondeu o presidente, encerrando um dos quebra-queixo em frente ao Alvorada no fim da tarde desta sexta-feira em que pretendia falar apenas das medidas de prevenção ao coronavírus. "Deturpar" a conversa, no caso, é perguntar se um dos principais ministros do governo vai permanecer ou cair.

Resta um. Nos bastidores, auxiliares dão conta de que Bolsonaro estuda formas de realocar Onyx no governo. Poderia ser o Ministério do Desenvolvimento Regional ou o cobiçado Ministério da Educação, mas há obstáculos no caminho, além do desconforto do chefe da Casa Civil com a possibilidade de que a mudança seja vista como "rebaixamento".

Montanha-russa. O gaúcho foi o primeiro ministro anunciado pelo então presidente eleito, ainda em outubro, juntamente com Paulo Guedes. Tal prestígio se devia ao fato de ter sido o primeiro deputado com trânsito na Câmara a apoiar o então baixo clero Bolsonaro, contrariando inclusive decisão do DEM, seu partido. Ele demonstrou força ao bancar a candidatura de Davi Alcolumbre no Senado e ao emplacar um auxiliar seu no Ministério da Educação, mas foi perdendo espaço para outros integrantes do Planalto e se indispondo com Guedes pelo rumo das reformas.

Adriana Fernandes* - Que ajuste fiscal é esse?

- O Estado de S.Paulo

A promessa de que o teto seria vital para priorizar os gastos mais essenciais caiu por terra

O Ministério da Economia foi completamente atropelado pela decisão do governo Jair Bolsonaro de fazer uma capitalização de R$ 9,6 bilhões no final do ano passado em empresas estatais federais.

A Emgrepron, estatal vinculada ao Ministério da Defesa, foi uma das empresas beneficiadas com o presente de Natal – R$ 7,6 bilhões de uma tacada só. Serão construídos quatro navios de guerra da Classe Tamandaré e um navio de apoio ao Programa Antártico Brasileiro.

Pouca gente sabe, mas o que permitiu o aporte bilionário do final do ano foi o dinheiro do pré-sal. Justamente aquele prometido para financiar o “futuro” dos brasileiros com mais educação.

É impossível não reconhecer que a decisão está na direção contrária ao discurso dos integrantes da equipe econômica de que a crise fiscal é ainda grave e exige governar com prioridades.

Há exato um ano, o que se mais ouvia em Brasília, no início do governo, era a importância da política de privatização. A promessa era de que ela seria rápida e reduziria gastos com as estatais pesadas e custosas para o contribuinte, abrindo espaço para investimentos nas áreas fundamentais: saúde, educação, segurança e assistência social.

O discurso de que é preciso avançar na busca do equilíbrio das contas públicas não funcionou nesse caso.

Sérgio Augusto - Rainha só no nome

- O Estado de S. Paulo

Fernanda Montenegro recusou ministério por não se julgar preparada para a função

Uma correspondente do The Guardian me liga para uma entrevista. Quer falar do desmonte da cultura pelo governo B*. Ela, polidamente, não usou a palavra desmonte, deixando-a por minha conta, assim como referiu-se a B* por extenso, até porque o asterisco é um recurso apenas gráfico, universalmente empregado para complementar vocábulos de baixo calão ou antropônimos indesejáveis como T***p, que é como a escritora Joyce Carol Oates sempre se refere ao alaranjado ogro da Casa Branca.

A indicação de Regina Duarte me pareceu o lead da reportagem. O que eu acho dela como atriz, o que esperar de sua gestão, daí partiu nossa conversa.

Talento histriônico não vale um tostão no ofício que lhe foi oferecido com metafóricas alianças de noivado. Se valesse, teríamos exigido, com moções e passeatas, que Fernanda Montenegro aceitasse os convites que Itamar e Sarney lhe fizeram para ministra da Cultura, e ela - que não é rainha só no nome - recusou, por não se julgar devidamente preparada para a função.

Regina tem um quê de donzela careta e um jeito lamecha, piegas (“corny” expressa melhor o que quero dizer), de interpretar e falar que sempre me impediram de avaliar, com isenção, os seus dotes de atriz. Se Henfil ainda fosse vivo, ela já teria uma lápide no Cemitério do Cabôco Mamadô pelas insânias que desde as eleições de 2002 vem dizendo publicamente e há bem uns quatro anos proclamando em louvor a B*, segundo ela, “um cara doce”, e “homofóbico só da boca pra fora”.

Verdade que essas foram suas impressões ao conhecer o futuro “noivo”. Hoje, aos olhos dela, ele também só deve ser sexista, racista, miliciano, etc. da boca pra fora.

Teoricamente, Regina teria sido uma escolha esperta, uma ponte conciliatória com a classe artística, o tal algodão entre os cristais e clichês que tais. Só que não era bem essa a intenção do capitão. Ademais, para apagar a deplorável impressão deixada pelo ex-secretário de Cultura Roberto Alvim, antes mesmo de o exu de Goebbels baixar nele, B* teria de fazer um gesto de grande impacto, preenchendo aquele cargo não com a “namoradinha do Brasil”, mas com outro astro global, como, por exemplo, José de Abreu.

Merval Pereira – Melhor para Bolsonaro

- O Globo

Regina já se disse respeitadora dos que pensam diferente dela, se define como uma conservadora, mas não destrata os de esquerda

Regina Duarte tem todas as condições para assumir a Secretaria de Cultura, e integrará a parte tecnicamente competente do governo Bolsonaro. Ela conhece bem o ambiente cultural brasileiro, é séria e sensata, e acredito que não seja adepta dessa política de bateu, levou, e de ficar falando mal das pessoas pelas redes sociais.

Até agora, foi a melhor indicação do governo Bolsonaro para a Cultura. Ela enfrentará muitas dificuldades, mas acredito que terá condições de fazer um acordo na área cultural, pois uma parte influente já se convenceu de que ajudar Regina Duarte a fazer um trabalho de apaziguamento é mais benéfico para a classe como um todo do que permanecer nessa guerra ideológica que só leva ao isolamento.

O problema maior será mesmo o próprio presidente Bolsonaro e seu entorno, especialmente os filhos, que não têm uma visão do que seja cultura, e atiçam suas milícias digitais para derrubar qualquer ministro que se coloque acima dessa radicalização patética que rege o governo Bolsonaro.

O exemplo do general Santos Cruz é autoexplicativo. Um militar sensato, sensível, que entendeu a grandeza da Presidência da República, amigo do presidente há mais de 40 anos, foi abatido por intrigas palacianas de quinta categoria, e até mesmo mensagens falsas de WhatsApp foram montadas para inviabilizar sua presença no Palácio do Planalto, onde era das poucas vozes sensatas a aconselhar o presidente da República.

Na verdade, Bolsonaro emprenha-se pelo ouvido, como se diz popularmente. Qualquer intriga tem boa acolhida no perfil paranoico do presidente Bolsonaro, que acha que está sendo sabotado por todos à sua volta, com exceção dos filhos, quando, na verdade, são os filhos que o boicotam involuntariamente.

Ascânio Seleme - A democracia não é mais aquela

- Globo

No Brasil, cidadãos de orientação política de direita estão da mesma forma equivocados sobre a democracia quanto os de esquerda

Tem muita gente festejando o resultado da pesquisa da Universidade de Cambridge que mostra descontentamento crescente com a democracia em todo o mundo. Segundo a pesquisa, 58% das pessoas entrevistadas em 154 países estão insatisfeitas com este sistema de governo. No Brasil, apenas 20% das pessoas ouvidas aprovam o regime democrático. Os que comemoram este péssimo resultado são aqueles que acreditam que um regime totalitário pode ser mais útil ao país, acreditando que um governo de força acabaria com a corrupção e a violência, entre outros problemas.

A História prova que eles estão enganados, e a pesquisa revela as limitações dos que pensam assim, não importando de que ângulo enxergam o cenário. No Brasil, cidadãos de orientação política de direita estão da mesma forma equivocados sobre a democracia quanto os de esquerda. Aqueles bolsonaristas que aplaudem de modo entusiasmado tanto os acertos do governo quanto seus erros grosseiros e antidemocráticos imaginam que um regime totalitário salvaria o Brasil. Da mesma forma, há lulopetistas que prefeririam um governo centralizador, sem o contraditório, sobretudo sem imprensa, como imaginou um dia José Dirceu.

Supor que um governo não democrático acabaria com a corrupção é o mesmo que acreditar que há democracia na Venezuela e que os generais de Maduro não são os mais corruptos da América Latina. Pensar que um regime fechado terminaria com a violência é tão absurdo quanto ignorar o poder global da máfia russa, a mais cruel e sanguinária do mundo.

A pesquisa mostra que as pessoas não confiam em regimes democráticos em razão dos sucessivos escândalos de corrupção e nepotismo que produziram, sobretudo na América Latina, pela sua incapacidade em lidar com a criminalidade e por se revelarem inúmeras vezes incompetentes na busca de soluções para crises econômicas. O problema não é apenas enxergar a democracia por esta ótica. Mais grave é imaginar que há solução mágica fora dela. No Brasil, por exemplo, a pesquisa demonstra que 37% dos entrevistados acreditam que um golpe militar resolveria os problemas de corrupção e seria capaz de reduzir os índices da violência urbana.

Rematada bobagem. Nostalgia da ditadura brasileira revela não apenas desconhecimento histórico, mas também ignorância antropológica, por ser impossível comparar qualquer dado dos anos 60 e 70 com seus similares de hoje. Para começar, o Brasil de 1970, por exemplo, tinha 93 milhões de habitantes, sendo que 42% viviam na zona rural. Hoje, o Brasil tem 215 milhões, e 85% habitam as cidades. São obviamente dois países distintos. Mesmo os que acreditaram cegamente no regime militar daqueles anos não conseguiriam explicar de que forma ele se cristalizaria em 2020.

No mundo, segundo a pesquisa da Universidade de Cambridge, o desencanto com a democracia cresceu exponencialmente na última década em razão da crise econômica de 2008, por causa da insolúvel crise dos refugiados, em razão da polarização política e pela falta de respostas dos governos em atender questões sociais urgentes. Claro que o regime de governo não é o culpado por estes problemas, mas os entrevistados não pensam assim.

Míriam Leitão - O liberalismo à moda da casa

- O Globo

Mesmo com déficit longe do prometido zero, o governo criou estatal militar e colocou quase R$ 8 bilhões em outra estatal militar

O governo colocou de uma vez R$ 8 bilhões numa estatal controlada pela Marinha e que constrói corvetas, a Emgepron. O ministro da Economia, Paulo Guedes, é liberal, a conjuntura é de aguda restrição fiscal, mas R$ 10 bi foram gastos em capitalização de estatais, a maior parte para essa da área militar. Criou uma estatal este ano, a NAV Brasil, também na área militar, que pode vir a ter 13,5 mil funcionários. Então o déficit do Tesouro que o ministro prometeu zerar no primeiro ano terminou em R$ 95 bi, e houve expansão de gastos com estatais.

Para o setor público consolidado, o déficit foi de R$ 62 bilhões, porque houve superávit nos governos regionais e nas estatais. O dado do Tesouro foi o menor déficit em seis anos, mas a maior parte da queda foi resultado de receitas extraordinárias. Com a divulgação dos números esta semana do déficit público no primeiro ano do governo Bolsonaro, tanto pelo cálculo do Tesouro quanto pelo do Banco Central, fica claro que existe melhora, mas ela é gradual e volátil. Se caírem as receitas extraordinárias, o buraco pode aumentar. De estrutural, houve a reforma da Previdência, cujo resultado negativo foi de R$ 318,4 bi em 2019, com alta de 10% sobre o ano anterior. A reforma reduz apenas o ritmo de crescimento do rombo. É a melhor notícia na área das contas públicas, mas foi conseguida em grande parte pelo esforço do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, que na quinta-feira trocou farpas com o ministro Paulo Guedes em um evento do Centro de Liderança Pública (CLP) em São Paulo.

Em outro evento, promovido pelo Credit Suisse, o ex-presidente do Banco Central Persio Arida duvidou do liberalismo do governo:

Marcus Pestana - Prevenção e catástrofes

De repente, não mais que de repente, a natureza explode e mostra sua força avassaladora. E as pessoas ficam indefesas, inseguras, impotentes, assustadas. Catástrofes sempre ocorreram na história da humanidade. É da vida, faz parte da aventura humana.

Os acontecimentos em Minas Gerais, nos últimos quinze dias, entristeceram a todos nós e nos convocam a uma inadiável reflexão e a uma mudança de atitude. Dezenas de vidas perdidas, milhares de desabrigados, rios transbordando, ruas e avenidas alagadas, pontes destruídas, casas e imóveis arrasados, carros empilhados. Um verdadeiro cenário de guerra.

O maior saldo tem necessariamente que ser o aprendizado coletivo. Os fenômenos naturais, até certo ponto, estão fora de nosso controle. O avanço tecnológico nos ajuda a antecipar acontecimentos, prevenir, criar defesas. Mas, às vezes, tudo parece inútil. O mundo parece cair sobre nossas cabeças. As perdas, principalmente de vidas, são irreparáveis. Mas o aprendizado é obrigatório.

Tudo começa na raiz. Nas mudanças climáticas fruto do desmatamento avassalador. No assoreamento dos rios, córregos e cursos d’água, frutos da ação humana. E prossegue na precária educação ambiental coletiva que temos no Brasil. As fotos do lixo represado por pontes encobertas no Rio Doce e outros deveriam ser objeto de reflexão em todas as escolas, associações de moradores e espaços comunitários. Cada vez que jogamos toda sorte de resíduos nos rios ou em simples “bocas de lobo”, estamos contribuindo para o agravamento do efeito catastrófico de eventos naturais.

O que a mídia pensa – Editoriais

O desafio da população de rua – Editorial | O Estado de S. Paulo

A população de rua na cidade de São Paulo aumentou 60% entre 2015 e 2019, segundo o Censo da População em Situação de Rua divulgado no dia 30 passado. Agora são 24,3 mil pessoas vivendo em logradouros públicos na capital paulista. A expressiva multiplicação desse contingente já podia ser constatada por qualquer paulistano circulando pela cidade, sem necessidade de estatística: os moradores de rua parecem estar em toda parte, em especial nas regiões mais centrais.

Constatado matematicamente pela Prefeitura, o impressionante aumento é indicador bastante eloquente dos efeitos desastrosos da crise econômica legada pelo governo de Dilma Rousseff. Entre 2014 e 2018, convém lembrar, o desemprego dobrou, passando de 6,5% para 12%, condenando milhões à pobreza – e muitos a viver na rua.

O desemprego, contudo, não é a única explicação para que mais e mais pessoas estejam nessa situação. Vários outros fatores, isoladamente ou de forma combinada, contribuem para ampliar a população de rua – e é justamente essa multiplicidade de causas que torna tão complexo o trabalho do poder público no enfrentamento do problema. Não há solução simples.

Até recentemente, um dos grandes obstáculos para conhecer a realidade dessa população era justamente sua invisibilidade estatística. Não havia nenhum levantamento censitário oficial sobre os moradores de rua, a começar pelo fato de o Censo Demográfico do IBGE só considerar os brasileiros com residência. Em 2008, foi feita a primeira – e até agora única – mensuração nacional dessa população, e na ocasião ficaram claros os desafios desse tipo de pesquisa, a começar pelo fato elementar de que moradores de rua não ficam em um lugar só e, portanto, podem ser contados mais de uma vez. Por esse motivo, aquele censo limitou-se a 71 cidades do País, sendo 23 capitais. Na ocasião, foram contabilizados 44 mil moradores de rua – dos quais 46,5% disseram preferir dormir na rua em vez de ir a um albergue. Desses, 20,6% disseram preferir dormir na rua pela liberdade que essa situação lhes proporcionava.

Poesia | Carlos Drummond de Andrade - Obrigado

Aos que me dão lugar no bonde
e que conheço não sei de onde,

aos que me dizem terno adeus
sem que lhes saiba os nomes seus,

aos que me chamam de deputado
quando nem mesmo sou jurado,

aos que, de bons, se babam: mestre!
inda se escrevo o que não preste,

aos que me julgam primo-irmão
do rei da fava ou do Hindustão,

aos que me pensam milionário
se pego aumento de salário

- e aos que me negam cumprimento
sem o mais mínimo argumento,

aos que não sabem que eu existo,
até mesmo quando os assisto.

aos que me trancam sua cara
de carinho alérgica e avara,

aos que me tacham de ultrabeócia
a pretensão de vir da Escócia,

aos que vomitam (sic) meus poemas
nos mais simples vendo problemas,

aos que, sabendo-me mais pobre,
me negariam pano ou cobre

- eu agradeço humildemente
gesto assim vário e divergente,

graças ao qual, em dois minutos,
tal como o fumo dos charutos,

já subo aos céus, já volvo ao chão,
pois tudo e nada nada são.