segunda-feira, 2 de março de 2020

Opinião do dia – Fernando Henrique Cardoso*

Como se desdobrará a situação atual? Depende de como se comportarem líderes (não só políticos, mas da sociedade toda). É hora de convergir e assegurar o que mais necessitamos: coesão em torno de princípios e objetivos de proteção da democracia contra tentações populistas de índole autoritária. Sem sufocar as divergências naturais nas democracias, é urgente restabelecer o entendimento de que adversário político não é inimigo, de que política não é guerra, de que opositores eventuais do governo não são inimigos da pátria. É preciso ativar os anticorpos democráticos para neutralizar os impulsos de estigmatizar os políticos, como se difunde em parte das mídias sociais.

Precisamos de grandeza para superar nossos desafios. E de liderança: temos a que o povo escolheu. Mas o voto não é um cheque em branco e acima de qualquer mandatário está a Constituição. Termino citando de memória palavras de Ulysses Guimarães: divergir da Constituição, alterá-la por meio de emenda, sim; desrespeitá-la jamais.

*Fernando Henrique Cardoso, sociólogo, ex-presidente da República. “Hora de convergir”, O Globo / O Estado de S. Paulo, 1/3/2020.

Entrevista | Apoio nas ruas definirá futuro do atrito de Bolsonaro com Congresso, diz cientista política

Argelina Figueiredo* teme radicalização do presidente se convocação para atos no dia 15 for atendida

Ricardo Balthazar | Folha de S. Paulo

SÃO PAULO - O futuro do confronto entre o presidente Jair Bolsonaro e o Congresso dependerá do apoio que as manifestações convocadas para o próximo dia 15 receberão, diz a cientista política Argelina Figueiredo, professora da Universidade Estadual do Rio.

Na semana passada, Bolsonaro enviou a seguidores mensagens e vídeos que convocam a população para defendê-lo nas ruas no dia 15, data escolhida por grupos conservadores que apoiam o presidente para protestos contra o Congresso.

Para Argelina, Bolsonaro ampliou o espaço dos militares em seu governo, nomeando generais para postos chave no Palácio do Planalto, com o objetivo de intimidar adversários e inibir tentativas de esvaziar o poder do Executivo.

Argelina, 72, é autora de trabalhos acadêmicos influentes sobre a crise que levou ao golpe de 1964 e as mudanças promovidas nas relações entre o Executivo e o Legislativo pela Constituição de 1988, após o fim da ditadura militar e a redemocratização do país.

Atualmente, ela prepara um novo volume com o cientista político Fernando Limongi, da Fundação Getúlio Vargas, e outros pesquisadores, para atualizar o estudo sobre as relações entre o Executivo e o Legislativo, que completou 20 anos no ano passado.

• O presidente começou a semana incitando seguidores a participar de manifestações contra o Congresso e pareceu baixar o tom nos últimos dias. O que isso significa?

Bolsonaro é um agente provocador, como mostra desde o início do governo. Subestimamos o perigo que ele representa desde as eleições de 2018, quando muitos achávamos que não venceria. Mas há um risco grande de ele se transformar num pequeno ditador.

Como presidente, ele tenta impor ao sistema político tudo que teve de engolir quando era apenas um deputado do baixo clero. Suas ideias autoritárias e reacionárias, o desprezo pelas instituições. Tudo isso visando formar uma base de apoio popular que o ajude a confrontar o Congresso.

Ao mesmo tempo, ele se cerca de generais no Palácio do Planalto e afaga suas tropas, as polícias estaduais, os escalões inferiores do Exército. Acho que ele está fazendo isso para contar com os militares como bombeiros para defendê-lo se houver alguma iniciativa para tirá-lo do poder.

• Como os outros Poderes deveriam reagir?

Não faltariam motivos para iniciar um processo de impeachment se a maioria do Congresso quisesse, mas ele está na corda bamba. Ele precisa responder aos desatinos de Bolsonaro, mas não interessa a ninguém uma situação de confronto aberto.

Num cenário que classifico como catastrófico, mas que parece plausível, o presidente pode incitar as pessoas e provocar o caos para que os militares intervenham para manter a ordem. Acho que muitos políticos veem isso e querem evitar que algo assim ocorra.

Marcus André Melo* - A coabitação indesejada

- Folha de S. Paulo

Executivo com apoio parlamentar minoritário tem um leque de escolhas

A República começou mal na França. Jules Grévy, seu primeiro presidente, teve que pedir demissão devido a um escândalo familiar: seu genro montara um lucrativo negócio de venda de títulos da Légion d’Honneur. Os primeiros-ministros não tiveram sorte diferente: foram 50 na 3ª República (1870-1940), o que dá uma média de 15 meses de mandato.

De Gaulle ofereceu, em 1958, remédio para a malaise política instituindo o semi-presidencialismo e o chamado “parlamentarismo racionalizado”. A Presidência saiu muito fortalecida.

O presidente passou a ser escolhido em eleições diretas, e os governos passaram a deter instrumentos contra maiorias irresponsáveis: só seriam admitidas moções de censura construtivas (apresentando alternativa majoritária), e o Executivo poderia apresentar proposições do tipo pegar ou largar (“vote bloquée”). Funcionou.

A dinâmica do semi-presidencialismo depende do apoio parlamentar do presidente. Se minoritário, vira rainha da Inglaterra. Indicará o primeiro-ministro apoiado por maioria, e refugiar-se-á em matérias de sua competência exclusiva (ex política externa, segurança).

Se majoritário, o sistema muda o registro e funciona em chave presidencialista: o primeiro-ministro será apenas mais um membro do gabinete dominado pelo presidente.

O fortalecimento do Executivo entre nós, em 1988, também foi reação à instabilidade; e engendrou governabilidade, inclusive fiscal. Mas o que ocorre com presidentes minoritários, tornam-se rainha da Inglaterra? Não. O presidente detém muito mais poderes que o semi-presidente francês; há maior potencial conflitivo.

Celso Rocha de Barros* - O golpismo tem que custar caro

- Folha de S. Paulo

Bolsonaro convocou um golpe de Estado; não aconteceu nada com ele

Jair Bolsonaro convocou um golpe de Estado. Não aconteceu nada com ele.

O presidente da República convocou seus seguidores para uma manifestação contra os outros dois Poderes da República. Em um dos cartazes do evento, fotos dos generais do governo aparecem sobre a legenda “os militares estão esperando o chamado do povo”. Outro cartaz mostra o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), sendo cozinhado como um porco. Há mais de um cartaz pedindo um novo AI-5.

O deputado federal bolsonarista Daniel Silveira (PSL), do Rio de Janeiro, disse que era melhor o Congresso obedecer aos militares (“os homens dos botões dourados”), ou eles eliminariam os comunistas utilizando métodos “menos ortodoxos do que o politicamente correto”.

Todo o núcleo bolsonarista no Parlamento trabalha pela passeata, assim como ministros do governo e a secretária da Cultura, Regina Duarte. Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) disse que, se jogarem uma bomba no Congresso, ninguém sentirá falta.

Imaginem um cartaz que dissesse “Congresso, STF, cobrem impostos dos ricos ou nossos generais vermelhos, inspirados no glorioso Marechal Zhukov, os esmagarão como esmagaram os nazistas que hoje adubam Stalingrado”. Sobre o texto, as fotos de Heleno, Villas Bôas e Mourão photoshoppados com uniformes soviéticos, talvez com um Lamarca promovido a general ali no meio para dar aquela provocada.

As Forças Armadas ficariam em silêncio se um governo de esquerda usasse essa imagem para convocar uma manifestação contra o Congresso e o STF? Suspeito que não.

Leandro Colon* - Qual é a de Alcolumbre

- Folha de S. Paulo

Silêncio se agrava quando integrantes do próprio Legislativo atuam pelo ato contra deputados e senadores

O espírito de baixo clero da política que encarnou por anos a vida pública do presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), persiste após um ano de sua eleição para dirigir a Casa dos senadores.

Se Jair Bolsonaro não se comporta à altura do cargo que ocupa, o que dizer de Alcolumbre? Sua cadeira representa também a presidência do Congresso. O senador amapaense comanda um dos três Poderes.

Não se ouviu até agora um pio de Alcolumbre sobre o apoio de Bolsonaro aos protestos do dia 15 de março contra o Parlamento. Um silêncio que se agrava quando integrantes do próprio Legislativo atuam pelo ato contra deputados e senadores.

Um deles é a senadora Soraya Thronicke (PSL-MS). “Eu estou nos bastidores e posso dizer com propriedade: não duvidem do general Heleno”, disse. O que Alcolumbre acha da colega que turbina a ameaça do chefe do GSI ao Congresso?

Vinicius Mota* - Tiranovírus e outros patógenos

- Folha de S. Paulo

O protocolo recomenda paciência e tenacidade na reação

É tempo de afluência de agentes microscópicos que fazem os seres humanos adoecer, enrubescer, explodir de ódio e desejar a aniquilação do adversário. A coisa não se restringe ao terreno da biologia.

O vibrião da cólera, não o do cólera, deflagra na pessoa acometida uma marcha à ré evolutiva. Ativado pela exposição excessiva a Facebook, Twitter ou WhatsApp, anula os dispositivos mentais que possibilitaram à espécie conviver e prosperar em comunidades maiores que um punhado de indivíduos aparentados.

Quando já está infestado de cólera, o organismo social acaba sendo presa fácil de infecções oportunistas. É nesse substrato repleto de bile, embora de sinapses rarefeito, que o tiranovírus mais gosta de intervir. E intervir é o verbo correto aqui.

Bruno Carazza* - Viver é muito perigoso

- Valor Econômico

Temor e racionalidade diante do coronavírus

Não é exagero afirmar que o mundo ocidental tomou conhecimento da China pelas histórias de Marco Polo. Ditadas ao romancista Rusticiano de Pisa enquanto ambos estavam presos no Palazzo San Giorgio, em Gênova, as aventuras do veneziano na corte do poderoso Kublai Khan se tornaram um best-seller mesmo tendo sido publicadas mais de um século antes da invenção da imprensa.

Após uma épica viagem de três anos e meio atravessando o Mediterrâneo, o deserto da Pérsia e a Rota da Seda acompanhado do pai e do tio, Marco Polo chegou a Xanadu (atual Shangdu, no norte da China), onde se localizava o palácio de verão de Khan, por volta de 1275. Impressionado com a inteligência do jovem, o imperador mongol nomeou-o seu conselheiro, e durante 17 anos Polo foi encarregado de inúmeras viagens pelo interior da China e missões internacionais pelo extremo Oriente.

Embora existam controvérsias a respeito de possíveis omissões e exageros nos relatos de Marco Polo, o exotismo dos lugares e hábitos chineses, além da sua participação em guerras e batalhas, maravilhou os ocidentais através dos séculos.

Não há registros de que Marco Polo tenha passado por Wuhan ou pela província de Hubei em suas andanças - o mais próximo que ele esteve foi Yangzhou, a cerca de 600 km do epicentro da doença causada pelo coronavírus, que apavora o mundo centenas de anos depois.

Notícias de feitos heroicos e grandes tragédias fascinam a humanidade desde os tempos das cavernas. Quase sempre, o medo e o inesperado são os ingredientes principais para fisgar a atenção do público. Não surpreende, portanto, a apreensão gerada pela ameaça de uma epidemia causada por um vírus desconhecido que se alastra pelo globo matando milhares de pessoas em poucos dias.

Alex Ribeiro - BC ganha tempo para avaliar o coronavírus

- Valor Econômico

Copom deve avaliar esse choque dentro do arroz e feijão do sistema de metas de inflação

Muita coisa aconteceu desde que o Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central divulgou a sua avaliação de que o novo coronavírus tem efeito potencial ambíguo para a política monetária, com possíveis vetores tanto altistas quanto baixistas para a inflação. O vírus se espalhou para outras regiões do mundo, o dólar subiu para cerca de R$ 4,50, a cotação de commodities caiu e o Federal Reserve (Fed) deu sinais de que poderá cortar os juros. No Brasil, por enquanto a autoridade monetária se mantém em silêncio, o que significa que segue válida a sua mensagem de política monetária. Ela é atual e aberta o suficiente para lidar com as mudanças no cenário. O “forward guidance” de interrupção do ciclo de baixa de juros é condicional à evolução do cenário econômico.

Na ata de sua reunião de fevereiro, o Copom disse que o coronavírus importa para a política monetária pelo seu possível impacto na inflação, e, portanto, não na taxa de câmbio. Os pronunciamentos recentes do presidente do BC, Roberto Campos Neto, e do diretor de Política Econômica, Fabio Kanczuk, mostram que ambos adotam a cartilha básica do regime de metas de inflação para reagir a choques como esses. Isto é, acomodar eventuais efeitos primários na inflação e combater os possíveis efeitos secundários, que se manifestam sobretudo nas expectativas de inflação.

Gustavo Loyola* - De qual reforma falamos?

- Valor Econômico

São evidentes os ganhos que podem ser colhidos com a adoção de um IVA nacional, com a tributação no destino

O Congresso Nacional acaba de constituir uma Comissão Mista para tratar da reforma tributária. Se praticamente unânime é a opinião de que o sistema tributário necessita urgentemente ser reformado, há, entretanto, grande divergência sobre qual deve ser o teor das mudanças, tendo em vista os múltiplos interesses particulares em jogo.

Esse problema ocorre no Brasil de maneira mais aguda, em razão da coexistência de um sem número de regimes especiais de tributação que favorecem determinadas categorias de contribuintes, sacrificando a coerência e a consistência do Sistema Tributário Nacional. Em vista disso, dependendo da dinâmica da tramitação do tema no Legislativo, pode-se criar um clima de incerteza entre os agentes econômicos, prejudicando a recuperação do investimento privado esperada para 2020.

Com relação aos objetivos prioritários da reforma tributária, há distintas percepções em jogo, não necessariamente conciliáveis entre si. Há aqueles que buscam com a reforma aumentar a progressividade da taxação, como meio de reduzir as desigualdades de renda no país. Para outros, a reforma teria como alvo principal a simplificação do sistema tributário, reduzindo os custos de compliance e aumentando a segurança jurídica para os contribuintes. Por outro lado, a eliminação ou redução da interferência da taxação sobre a alocação eficiente de recursos na economia é a prioridade para os que têm como objetivo o aumento do potencial de crescimento econômico. Há ainda aqueles que prioritariamente enxergam na reforma uma oportunidade para repensar a Federação, alterando a distribuição da receita e da administração tributárias entre a União, os Estados e os municípios.

O fato é que nenhum grupo de contribuintes quer o aumento da sua carga tributária, do mesmo modo que nenhum dos entes da Federação quer sair da reforma com uma arrecadação menor do que têm hoje. Nessas condições, a única maneira de viabilizar um consenso mínimo para a aprovação de um projeto de reforma parece repousar no convencimento dos diversos grupos de interesse e dos entes arrecadadores de que com a mesma seria possível impactar positivamente o crescimento econômico, afetando favoravelmente as receitas futuras, sem necessariamente implicar um aumento da carga tributária como proporção do PIB. Isso sugere que a questão da melhora do ambiente de negócios deveria ter centralidade no debate sobre as mudanças tributárias, precedendo quaisquer outras considerações.

Sergio Fausto* - Mito e política – precisamos de uma alternativa

- O Estado de S. Paulo

País começa a se cansar de um clima que azeda relações pessoais e tira a alegria de (con)viver

A política não é lógica ou ciência exata, não quer demonstrar, e sim convencer. Mais do que argumentos, busca mobilizar certos valores e sentimentos, por oposição a outros. Visando à conquista de corações e mentes, vale-se de narrativas cognitivamente simples e emocionalmente poderosas para fixar, por contraste com outras, uma certa representação discursiva da realidade presente e projetar um futuro melhor (mesmo que a promessa seja de retorno a um passado idealizado).

Compreender que a política se dá no plano da competição simbólica é especialmente importante em momentos nos quais as sociedades se sentem ameaçadas. Nesses momentos, a racionalidade ordinária e individual do eleitor, sem desaparecer, cede terreno a vastas e polarizadas emoções coletivas de medo, rancor e intolerância. Vivemos um momento assim, que, paradoxalmente, cria possibilidades de restabelecer convergência e projetar aspirações novas em torno de valores comuns.

Em artigo recente, David Brooks, colunista do New York Times, oferece explicação convincente sobre o favoritismo de Bernie Sanders nas primárias democratas e o completo domínio de Donald Trump sobre o Partido Republicano. Foram os únicos até aqui, diz ele, que produziram narrativas de caráter mítico sobre a nação americana, formulando representações simbólicas sintéticas sobre o que são e o que devem ser os Estados Unidos da América. Que sejam representações opostas mostra que a nação não é una. Nenhuma nação.

Denis Lerrer Rosenfield* - Marcha da insensatez

- O Estado de S. Paulo

Sábios seriam o presidente e seu grupo se cancelassem as manifestações do dia 15

O governo está manifestamente desorientado. Adotou desde o início a política do confronto, baseada na distinção amigo/inimigo, em que o outro sempre aparece como alguém a ser neutralizado ou eliminado. O esquema permanece sempre o mesmo, muda apenas o alvo. Pode ser um partido de oposição, pode ser um(a) jornalista, pode ser a imprensa em geral, pode ser todo aquele que discorde, por uma ou outra razão, de alguma política governamental. A prática democrática corre ao largo de tal concepção, por estar baseada no diálogo, na ponderação e na negociação.

Acontece, porém, que tal processo ganha outra significação quando o inimigo passa a ser a própria instituição democrática, como se ela fosse um empecilho para a política a ser implementada. Se a democracia se torna um obstáculo, é porque está em pauta um claro pendor autoritário. A manifestação prevista para o dia 15 é um claro exemplo disso, por estar focada no Congresso Nacional, entendido não como um Poder independente, mas como uma facção a ser suprimida.

Note-se que um argumento frequentemente utilizado diz respeito a que o presidente, eleito dada essa legitimidade, está autorizado a fazer qualquer coisa. Para além do fato óbvio de um presidente se encontrar constitucionalmente limitado, caso contrário seria um tirano, a Câmara dos Deputados e o Senado têm igual legitimidade, por serem os seus representantes igualmente eleitos pelo voto popular. Ambos são frutos da soberania popular, usufruindo as mesmas prerrogativas.

No entanto, o presidente e o seu grupo familiar e digital optaram pelo confronto com a Câmara e o Senado, isto é, escolheram o enfrentamento como outra expressão da vontade popular, pressionando o País para uma ruptura institucional. Se o governo é contrariado, basta eliminar o opositor, no caso, o Legislativo, como se esse Poder devesse ser simplesmente submisso à vontade presidencial.

Fernando Gabeira - Olha o corona aí

- O Globo

Num campo político em que sobrevivem grupos antivacina, a orientação baseada na ciência é avanço

Passei o carnaval com um olho no crescimento do coronavírus na Itália. Não me tomem por um velho agourento. Especialistas indicavam que o vírus tinha uma grande possibilidade de expansão no planeta. E a Itália é mais próxima do Brasil que a China.

Busquei contato com brasileiros em Milão. Muitos queriam sair, mas os voos estavam lotados. Descobriram que viajar para o exterior hoje não só aumenta o risco de contágio, mas também o de ficar preso numa quarentena.

Li sobre as primeiras oito vítimas letais na Itália. A sensação é de que a maioria já estava doente: diabete, infarto, câncer.

Até o momento, as evidências são de um baixo índice de mortalidade. Isso indica que a propagação pode matar os mais vulneráveis, como a própria gripe o faz, mas as chances de sobrevivências são altas, mesmo sem existirem ainda um antiviral específico ou vacina contra o novo coronavírus.

Isso confirma as pesquisas com 36 mil pessoas atingidas na China: 80% dos casos foram brandos. Se, de um lado, o índice mortal é baixo, o de propagação pode ser alto.

Outro fator importante é a temperatura. O novo coronavírus surgiu em lugares frios, em pleno inverno. Há indícios de que o vírus sobrevive menos tempo no calor.

Rosiska Darcy de Oliveira - ‘Eppur si muove’

- O Globo

Chega uma epidemia e com ela a realidade

Os fatos se impõem às ideologias. Essa é a lição da história da Ciência. A Terra gira em torno do Sol, apesar das fogueiras que queimaram hereges. A Terra é redonda e o mundo é um só ainda que o obscurantismo teime em defender fronteiras como fossos medievais e maluquices como a Terra plana.

Em janeiro, o Fórum Mundial de Davos identificou como principais ameaças globais a crise climática e as pandemias. Acertaram na mosca. Nosso futuro comum.

Chega uma epidemia e com ela a realidade de um mundo global, em que um vírus sem visto ou passaporte atravessa, insuspeito, qualquer fronteira. Nenhum país, sozinho, tem como se defender do coronavírus.

Uma instituição chamou a si a responsabilidade da gestão da crise. Dialogando com a China, ajudando os países africanos a se preparar, o que seria de nós sem a Organização Mundial da Saúde, órgão-chave da ONU, a tão criticada organização vista como inimiga pelo nacional-populismo brasileiro.

Cacá Diegues - Dois do mesmo time

- O Globo

Comportamento do ministro da Saúde agravou mais ainda o silêncio do presidente sobre o coronavírus

Como é bom falar bem, com sinceridade no coração, de alguém que trabalha para alguém que não merece elogio. Em política, isso só é possível numa democracia, quando criticamos mas nem por isso desejamos que quem está do outro lado morra. Mesmo quando esse outro lado, muitas vezes, deseje a nossa morte, que a gente desapareça para sempre.

Para quem não acredita que um governo ruim possa contar com um bom servidor, recomendo acompanhar e avaliar, sem o peso desagradável do chefe, os serviços que vêm sendo prestados pelo ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta. Desde que as maldades do coronavírus começaram a se manifestar, nesse inicio de 2020, o ministro Mandetta tem sido de uma total presteza e serenidade. Ele tem nos alertado diariamente sobre a expansão para o Brasil do vírus, anunciando inclusive que não são mais 20 ou 30 suspeitos de infecção, mas 200, 300 ou mesmo uns 500. Ao mesmo tempo, ensina à população os meios mais simples e eficientes de evitar a contaminação. O ministro acaba por nos ensinar até a como lavar as mãos.

Mandetta tem participado ativamente desses dias difíceis, nos propondo calma em ações nas quais estão a perigo nossos parentes, vizinhos e amigos mais próximos. Ele tem praticado na televisão, nas redes sociais e em quaisquer outros meios de comunicação que por ventura alcance, um modo de evitar o pânico, sem deixar de nos alertar para a gravidade da situação.

O que a mídia pensa - Editoriais

O estado da democracia – Editorial | O Estado de S. Paulo

Para testar a pertinência da preocupação recorrente com o “declínio da democracia”, o Pew Research Center pesquisou o apoio a princípios e instituições democráticas em 34 países. O resultado revela uma série de inconsistências humanas, demasiado humanas, entre a teoria e a prática: a popularidade dos direitos democráticos é grande, mas a dos deveres, bem menos; as eleições seguem valorizadas, mas os eleitores estão cada vez mais frustrados com seus eleitos; os mais insatisfeitos com o funcionamento da democracia são os menos empenhados em reformá-la. É esclarecedor e preocupante notar a consistência com que o Brasil encarna estas inconsistências.

A pesquisa avaliou o apoio a nove princípios: igualdade de gênero, imparcialidade judicial, eleições livres, além das liberdades de prática religiosa, expressão, imprensa, internet, oposição política e atuação pelos direitos humanos. A imensa maioria tem alguma estima por estes princípios. Mas só nas Américas e Europa, em que pesem as crescentes apreensões com a saúde da democracia, tende-se a considerar todos eles muito importantes.

Um Judiciário justo é, em geral, o princípio mais valorizado (para 82% ele é “muito importante”), seguido pela igualdade de gênero (74%). A liberdade religiosa também recebe amplo apoio (68%). Contrariando a intuição comum, os mais comprometidos com a sua religião são justamente os mais comprometidos com o livre exercício das outras religiões – por outro lado, corroborando esta intuição, os mais favoráveis ao populismo conservador são em geral os menos favoráveis à liberdade de outras práticas religiosas.

Poesia | Carlos Drummond de Andrade - Entre o ser e as coisas

Onda e amor, onde amor, ando indagando
ao largo vento e à rocha imperativa,
e a tudo me arremesso, nesse quando
amanhece frescor de coisa viva.

As almas, não, as almas vão pairando,
e, esquecendo a lição que já se esquiva,
tornam amor humor, e vago e brando
o que é de natureza corrosiva.

N'água e na pedra amor deixa gravados
seus hieróglifos e mensagens, suas
verdades mais secretas e mais nuas.

E nem os elementos encantados
sabem do amor que os punge e que é, pungindo,
uma fogueira a arder no dia findo.