domingo, 12 de abril de 2020

Paulo Fábio Dantas Neto* - Solidariedade e conciliação: sinais de fumaça da política em tempo de pandemia

Viu-se no Brasil, durante o março tormentoso da chegada do Covid-19, um ensaio de reversão do ambiente político maniqueísta e predatório que deprime o país há seis anos. Vimos chegar, em mensagens diariamente dirigidas ao grande público, um pensamento orientador, combinando as ciências e técnicas da saúde e da gestão pública com um discurso de solidariedade social, as duas coisas bem sintonizadas com a delicadeza própria do método prudencial da política. Uma escolha pelo caminho da persuasão, que não excluía clareza na diretriz, nem firmeza na ação. O ministro da Saúde vinha sendo um dos protagonistas, certamente o mais visível, dessa estratégia promissora e promotora da segurança possível, em hora de tempestade.

Essa linha de conduta implicava em todo o poder aos médicos, antessala de uma ditadura sanitária? Provocava paranoia ou histeria? Longe disso, estava produzindo sinergia entre ciência e política, perseguindo e obtendo, gradativamente, a complexa cooperação entre os entes federativos. Esse caminho, além de dar rumo seguro ao combate à epidemia, foi levando a uma consistente legitimação do SUS como patrimônio federal de interesse público. Não é de pouco significado um ministro oriundo da direita passar a usar como uniforme, diante das câmeras, um colete do SUS. Esse simbolismo forte poderia ser encarado com grandeza ou com mesquinhez política, por quem defende o SUS por convicção. A hora cobrava de uma elite política soluções não triviais para uma situação nada trivial, como a sabotagem de um ministro bem situado, pelo próprio presidente que o nomeou. Fosse qual fosse a solução do problema Bolsonaro, ela precisaria ter como premissa, publicamente assumida por todas as lideranças responsáveis, evitar descontinuidade no Ministério da Saúde, ao qual cabia o protagonismo, por missão institucional sustentada por uma visível capacidade técnica e política do seu titular.

O “campo dos governadores”, se adota essa premissa, não lhe tem dado a atenção requerida pela gravidade da hora. Articulou-se mais ou menos em bloco, com protagonismo do governador de São Paulo. Parte relevante da mídia apoiou e instalou-se nova polarização. Agora não mais Bolsonaro x PT e sim Bolsonaro x "governadores". Esse coletivo de mandatários estaduais é uma ficção política e administrativa. Um pretenso colegiado sem lastro institucional, que tende a ser refém de vontades políticas estaduais, a baterem cabeça. Se se impuser uma descentralização forte de decisões e recursos, uma ação coordenada pode ficar inviável. Colocar recursos para livre uso nas mãos dos governadores é mobiliar a antessala de um salve-se quem puder, na hora mais grave da pressão a vir sobre os serviços de saúde. Quando a ficha cair e sentir-se a necessidade do MS, pode já ser tarde. Em jogo confederado, o empurra-empurra das culpas, que há muito começou, tende a se disseminar.

Pode-se contra argumentar, com razão, pelo realismo político, tanto no diagnóstico da situação, quanto na prescrição do remédio. A conduta irresponsável do presidente criou um vácuo que os governadores, pressionados por suas próprias responsabilidades, precisavam preencher. Deve-se louvá-los por isso, não criticar. O que aqui se discute não é a decisão política de fazer contraponto à negligência presidencial. Discutível é se foi levado suficientemente em conta que o protagonismo político do MS no processo precisava ser sustentado por eles, como condição para o próprio sucesso desse contraponto. Um caminho mais seguro do que aquele que foi afinal adotado, ou admitido, pelo qual o ministro foi mantido no cargo até aqui, mas enquadrado pelos militares palacianos numa saia justa que não impede o presidente de prosseguir fomentando o seu desgaste. Poderia ter sido diferente? Talvez não, mas não há indícios de que outro caminho foi tentado.

O clima de polarização (e ficou evidente que não só Bolsonaro aposta nele) asfixia, como sempre, qualquer atitude política moderada, como é a de Mandetta. Abre porta a que a lógica da guerra se torne autônoma em relação à da persuasão. Com o tempo ela tende a se tornar superior, como perigosamente se insinua com os primeiros acenos a imposição vertical de um isolamento horizontal. Uma coisa é adotar essa imposição no Japão da disciplina e na China da ditadura. Outra coisa, em democracias fortemente enraizadas numa cultura de liberdades civis, como na Europa Ocidental e nos EUA. Uma terceira coisa é que se pense e possa fazer isso numa cidade-estado, como Cingapura. Uma quarta e muito diferente coisa é adotá-la no Brasil, um país imenso, onde uma ampla democracia política federativa vigora em sociedade plural e crescentemente liberal nos valores, em cuja psicologia social a disciplina individual é, no entanto, traço menos marcante que a solidariedade religiosa ou familiar. Sociedade conservadoramente gregária, assentada, ademais, em abissal desigualdade social e numa ainda frágil cultura de direitos, da qual é sintoma explícito a truculência tradicional e ainda relativamente impune de suas várias polícias e milícias, quando entram em contato com cidadãos socialmente mais vulneráveis. E não é de outra coisa que se trata quando se precisa manter em casa a população aglomerada em realidades urbanas onde se expõem as dores dessa modernidade complexa.

Para FHC, faltam dois ingredientes para o impeachment

Por Gabriel Mascarenhas | O Globo / Lauro Jardim 

Embora o considere um incapaz para tocar a presidência da República, FHC não posta um real sequer na derrubada de Jair Bolsonaro.

Durante uma análise feita reservadamente, na semana passada, ele disse que faltam dois ingredientes fundamentais a qualquer impeachment: um crime de responsabilidade claro e o ambiente político no Congresso.

Para FHC, o país vai sangrar em crises sucessivas pelos próximos três anos, com Bolsonaro no comando.

Luiz Carlos Azedo - O bêbado e a borboleta

- Nas entrelinhas | Correio Braziliense

“Desafiar o novo coronavírus se tornou uma espécie de obsessão para o presidente da República, que se comporta como quem adquiriu imunidade contra a doença”

No livro O revólver que sempre dispara (Casa Amarela), Emanuel Ferraz Vespucci analisa as causas, os comportamentos e as consequências para a saúde de diversas dependências químicas, inclusive o alcoolismo e o tabagismo. É um livro despido de preconceito e, do ponto de vista clínico, como não poderia deixar de ser, serve de referência para os que lidam com o problema: usuários em busca de tratamento, seus familiares e terapeutas. O livro explica de maneira clara como as diversas drogas causam dependência física e psicológica, os problemas que acarretam e as maneiras de enfrentá-los, sem moralismo. A perda de controle sobre o álcool, a cocaína, o crack, a maconha, morfina, calmantes, inibidores de apetite e outros psicotrópicos é um problema muito mais amplo do que se imagina.

A dependência funciona como uma roleta russa. Em algum momento a bala que está no cilindro do rerólver será disparada, na medida em que o sujeito arrisca mais uma vez. Ou seja, o acaso tem um limite, quanto maior a frequência, maior a probalidade de ocorrência. Por causa da dependência, algo grave acontecerá na vida da pessoa, pode ser um acidente de carro, a perda do emprego, um surto psicótico, um infarto.

O que interessa aqui é a analogia da roleta-russa, ou seja, do revólver que sempre dispara. Durante a pandemia de Covid-19, por causa do risco de contaminação, sair de casa é uma espécie de roleta russa, mesmo que a pessoa utilize máscaras e luvas. Acontece que o presidente da República — com o objetivo declarado de desmoralizar a política de distanciamento social preconizada pelas autoridades médicas, inclusive seu ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, e responsabilizar governadores e prefeitos pela recessão econômica — resolveu sair às ruas com frequência e, nesses passeios, visitar o comércio local para estimular proprietários e consumidores a manterem uma vida normal. Bolsonaro ignora uma epidemia que está matando mais de 100 pessoas por dia no Brasil, o equivalente a um desastre de grandes proporções.

Ricardo Noblat - Mandetta abre espaço para que Bolsonaro se divirta sozinho

- Blog do Noblat | Veja

Enquanto não chega a primeira grande onda do Covid-19
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Depois de muito refletir, o ministro Luiz Henrique Mandetta, da Saúde, decidiu não mais bater de frente com o presidente Jair Bolsonaro. É por isso que tem aparecido menos nas entrevistas coletivas de fim de tarde. É por isso também que passou a recusar convites para participar de lives de cantores famosos.

Foi aconselhado a proceder assim por ministros militares lotados em gabinetes do Palácio do Planalto que há muito ganhou ares de quartel. O recuo de Mandetta abriu espaço para que Bolsonaro recobrasse o protagonismo político que o cargo confere ao seu ocupante e do qual ele jamais admitiu abrir mão.

Sem que ninguém lhe faça sombra, Bolsonaro sente-se seguro para passear por onde quiser, dizer o que quiser, sem medo de ser confrontado por Mandetta. Levou-o, ontem, para a inauguração de um hospital de campanha em Goiás. Enquanto confraternizava com seus devotos, Mandetta só observava, calado.

Eliane Cantanhêde - Ímpeto suicida

- O Estado de S.Paulo

Quebra criminosa do isolamento de Norte a Sul vem de cima, do isolado nº 1

Com o coronavírus ultrapassando a barreira de mais de cem mil mortos no nosso mundo e mais de mil no nosso Brasil, as pessoas parecem não entender, sofrem uma intrigante negação da realidade e estão voltando às ruas em todas as capitais, de Norte a Sul do País. Por que Manaus e Porto Alegre, Cuiabá e Recife, São Luís e São Paulo fazem esse movimento suicida ao mesmo tempo? Porque a ordem, ou o exemplo, vem de cima. Vocês sabem de quem. E não vão esquecer.

Seria impossível desconhecer e esquecer que o isolado número 1 do País estimula manifestações contra o Supremo e o Congresso, toca pessoas e celulares na frente do Planalto, mistura-se e tira selfies com cidadãos em três locais do Distrito Federal, descumpre decreto do DF para comer numa padaria, causa aglomeração em frente a uma farmácia. É tão inacreditável que se torna inesquecível.

Não satisfeito, o isolado número 1 corre atrás de governadores, e do prejuízo político, inaugurando uma forma inédita de compra de apoios: o toma lá dá cá em tempos de coronavírus. Oferece mundos e fundos para reduzir o impacto econômico da pandemia nos Estados, desde que relevem a preocupação com a mortandade e relaxem o isolamento. Ou seja, façam como na ditadura militar: “Às favas os escrúpulos de consciência”.

Vera Magalhães - A revolta da cloroquina

- O Estado de S.Paulo

Assim como a reação à vacina em 1904, a apologia a um remédio é irracional e perigosa

Cada epidemia que assola a humanidade tem seus surtos de irracionalidade, ignorância e aproveitamento político associados. Não é diferente com a covid-19, e o fenômeno não é uma exclusividade do Brasil, embora por aqui estejamos nos esforçando para passar à frente no campeonato desses efeitos incidentais.

Em 1904, o Rio de Janeiro viveu a Revolta da Vacina. O presidente Rodrigues Alves nomeou o médico sanitarista Oswaldo Cruz para tentar conter os surtos concomitantes de varíola, febre amarela e peste bubônica, que assolavam uma população crescente que vivia em condições sanitárias precárias. A obrigatoriedade de vacinação para a varíola, aprovada pelo Congresso, foi o estopim para uma revolta popular instrumentalizada por grupos políticos em novembro daquele ano.

Mais de um século depois, diante da pandemia do novo coronavírus, outra reação irracional e perigosa, insuflada por políticos e seus apoiadores, confunde a população e desarticula a estratégia nacional para o combate à propagação do vírus.

Trata-se da pregação do uso de cloroquina e hidroxicloroquina no tratamento da covid-19. Na última semana, o debate, que já era intenso nas hostes bolsonaristas, ganhou emissoras de TV aberta, fez com que o ministro da Saúde, Luiz Mandetta, fosse forçado a se pronunciar e colocou na berlinda até médicos conceituados, instados por comunicadores a dizer se haviam ou não usado os medicamentos em seus próprios tratamentos.

Merval Pereira - Barreira legal

- O Globo

O STF tem sido uma barreira de contenção a ações autoritárias do governo nesses tempos da pandemia de Covid-19

O Supremo Tribunal Federal (STF) tem sido uma barreira de contenção a arroubos autoritários do governo nesses tempos da pandemia da Covid-19. Várias decisões já foram tomadas para definir os limites de atuações dos governos estaduais e municipais na implementação de medidas mais rigorosas de isolamento social, mesmo à revelia do governo federal.

O presidente do STF, ministro Dias Toffoli, defende que a segurança jurídica de decisões urgentes seja garantida, mesmo que prazos e exigências legais sejam alteradas pela situação excepcional. Somente um ministro, Ricardo Lewandowski, não entendeu o momento especial que vivemos e barrou com burocracia sindicalista a permissão para que as empresas entrem em acordo com os empregados para cortes salariais equivalentes à redução da carga horária de trabalho.

A exigência de intermediação de sindicatos para esses acordos têm criado problemas para as empresas que já os formalizaram, inclusive aumentado os seus custos, pois há sindicatos cobrando taxas de empregados e empregadores para homologar os acordos trabalhistas. Na quinta-feira, o plenário do Supremo decidirá essa questão.

O vice-presidente do STF, Luiz Fux, que assumirá a presidência em setembro, tem se posicionado em entrevistas e artigos a favor da necessidade de “sensibilidade judicial superior ao mero dogmatismo jurídico”.

Bernardo Mello Franco - A pressa da fome

- O Globo

Nas favelas, a fome chegou antes do vírus. Demonizadas por Bolsonaro, as ONGs se mexeram antes do governo para combatê-la

Nas favelas e nas periferias, a fome chegou antes do coronavírus. A paralisação da economia tirou a renda de milhões de famílias que já sobreviviam com pouco. O tranco necessário para conter a doença foi agravado pela inércia do governo. A renda básica emergencial só começou a ser paga na quinta-feira, passados 43 dias do primeiro registro da Covid-19.

Diante da omissão federal, cresceu o papel das iniciativas solidárias. Demonizadas pelo bolsonarismo, as ONGs se mexeram antes do poder público. Só a Ação da Cidadania já distribuiu mais de 350 toneladas de alimentos em dez estados e no DF. A entidade fundada por Herbert de Souza segue a lição do sociólogo: “Quem tem fome tem pressa”.

“Nunca vivemos uma situação tão grave”, diz Daniel de Souza, filho de Betinho e presidente do conselho da ONG. “Nosso WhatsApp não para de receber apelos de pessoas que não conseguem levar comida para casa. Lançamos a campanha em março e não sabemos quando ela vai acabar”, conta.

Janio de Freitas – Nos dias da caça

- Folha de S. Paulo

Se demagogia de Bolsonaro lhe rendesse algo, seriam migalhas de recuperação

Jair Bolsonaro erra até quando age em interesse próprio. Mais do que peças do confronto com seu ministro da Saúde, suas idas ao encontro de aglomerações, e já também ao comércio, são uma caça popularesca de porções do apoio corroído, até entre seus eleitores.

Se essa demagogia lhe rendesse alguma coisa, seriam migalhas de recuperação nos aglomerados pequenos. Mas nem isso, se quem o cerca só o faz por ser ainda seu apoiador. O que esses aglomerados têm a dar, de fato, é o que, neste momento, os lúcidos procuram evitar.

O mais recente passeio virótico de Bolsonaro basta, por si só, para negar outra apressada conclusão da imprensa. Depois de ver uma celebração do golpe de 1964 como recuo de Bolsonaro na disputa com o ministro Mandetta, agora o chamado jornalismo político propaga transferência de poder real, “a caneta”, de Bolsonaro para a tropa de generais palacianos. No caso representada por Braga Netto, general da Casa Civil.

Assim sendo, ou Bolsonaro se expõe contra a segurança presidencial incumbida aos militares, e portanto seu poder sobre os generais não se alterou; ou os generais concordam com a exposição demagógica, como têm concordado passivamente com todos os atos tresloucados de Bolsonaro e do trio filial. Aí incluídos, para o pasmo interno e internacional, os desatinos contra a Constituição e contra os interesses do país.

Hélio Schwartsman - Bolsonaro é burro mesmo

- Folha de S. Paulo

O presidente está cavando sua própria sepultura política, atitude incompatível com inteligência

Em 31 de maio de 2019, quando o mundo era outro, publiquei a primeira coluna em que perguntava se Bolsonaro era um sujeito inteligente, que se vale de estratégias mais ou menos elaboradas para alcançar seus objetivos, ou apenas um oportunista que teve duas ou três intuições corretas e muita sorte. À época, admitia que as duas leituras eram possíveis.

Penso que hoje já é possível responder à questão de forma mais assertiva e concluir, quase definitivamente, que Bolsonaro é burro mesmo. Uma guerra ou pandemia (os efeitos políticos são parecidos) é o sonho de consumo de líderes em dificuldades. Elas oferecem o pretexto ideal para o governante evocar o discurso da união nacional e surfar na subsequente onda de popularidade.

Não é uma coincidência que regimes moribundos frequentemente provoquem um conflito armado para tentar legitimar-se pela guerra, como fizeram os generais argentinos nas Malvinas em 1982. Não deu certo porque perderam no teatro militar, mas praticamente toda a oposição cerrou fileiras com os ditadores.

Bruno Boghossian – Fiapo de autoridade

- Folha de S. Paulo

Presidente busca satisfação pessoal ao desafiar medidas de distanciamento

Quando o país registrou a primeira morte provocada pelo coronavírus, há quase um mês, Jair Bolsonaro ameaçou dar um passeio no metrô de São Paulo. “É uma demonstração de que estou com o povo. É um risco que um chefe de Estado deve correr”, declarou.

O presidente queria exibir grandeza, mas a maluquice cogitada ali não tinha nada a ver com o papel de um líder. Com o poder limitado, ele decidiu buscar satisfação pessoal numa série de desafios infantis às medidas de isolamento e orientações das autoridades de saúde.

Bolsonaro não realizou o plano de entrar num vagão lotado, mas gastou parte dos últimos dias em campanha para encorajar os brasileiros a ignorarem o distanciamento social.

Na quinta (9), posou para fotos e incentivou uma aglomeração durante uma ida a uma padaria, devidamente gravada para as redes sociais. No dia seguinte, foi a uma drogaria e cumprimentou apoiadores depois de ter coçado o nariz com a mão.

Ruy Castro* - Ilhas desertas

- Folha de S. Paulo

Hora de levar para elas os seus livros, discos e filmes favoritos

Está fora de moda há anos, mas, no passado, os jornais adoravam perguntar aos artistas e intelectuais que livros, discos e filmes eles levariam para uma ilha deserta. E todos adoravam responder. Minha resposta favorita é a do jornalista José Lino Grünewald, que, ao escolher seus livros indispensáveis, incluiu —rindo, mas a sério— o “Philosophie der Symbolischen Formen”, de Ernst Cassirer, em três volumes. A dita ilha, ainda que provida de uísque, poltrona e luz elétrica, era só uma metáfora, claro, para as tradicionais listas de dez melhores livros, discos ou filmes de cada um.

De repente, com a quarentena imposta pela Covid-19, a ilha deserta deixou de ser metáfora. Tornou-se, para tantos de nós, dura realidade e por tempo não sabido. Agora, sim, é hora de fazer as tais listas. Por isso, resolvi produzir as minhas. Como esta, só de discos de música brasileira, torcendo para que, como meu equipamento é antigo, a ilha ainda não tenha sido corrompida pela tomada de três pinos.

Elio Gaspari - Mandetta pegou o vírus do holofote

- O Globo / Folha de S. Paulo

Ministro perdeu uma oportunidade de ficar calado quando disse que “a saúde dialoga, sim, com o tráfico, com a milícia"

O ministro Luís Henrique Mandetta perdeu uma oportunidade de ficar calado quando disse que “a saúde dialoga, sim, com o tráfico, com a milícia, porque eles também são seres humanos e também precisam colaborar, ajudar, participar.”

Para um ministro da Saúde que construiu sua reputação falando no valor do conhecimento, só se pode atribuir essa declaração à síndrome do holofote. Dialogar com as milícias e com o tráfico é coisa que o poder público do Rio de Janeiro pratica há décadas. O próprio Mandetta já viu a promiscuidade suprapartidária que dialoga com a contravenção em Mato Grosso do Sul.

A essência da fala do ministro é um truísmo. Em diversas áreas o poder público precisa dialogar com a bandidagem para trabalhar em paz. O que ela não precisa é legitimá-lo, coisa que Mandetta fez. Essa legitimação não funciona apenas como um gesto simbólico. Ela ampara organizações criminosas. Além disso, tanto os traficantes como as milícias dividem-se em facções. Como se faria esse diálogo: numa assembleia?

O ministro da Saúde poderia se informar sobre as consequências de sua fala com o ministro da Justiça, mas faz tempo que o doutor Sergio Moro entrou numa quarentena. Além dele, poderia também recorrer ao acervo de conhecimentos da família Bolsonaro com milicianos. Ninguém deve se meter com decisões profissionais dos médicos, mas eles também não devem ir além delas, atropelando as leis.

Numa guerra, o poder público pode precisar de algum tipo de entendimento com o crime organizado, mas não pode legitimá-lo. Em 1941, o governo americano entendeu-se com a máfia do porto de Nova York para que ela não atrapalhasse seus embarques militares. Mais: em 1943, quando a tropa do general George Patton desembarcou na Sicília, cultivou a simpatia da máfia. O “capo” Don Calogero Vizzini tornou-se prefeito da cidade de Villalba e coronel honorário da exército americano. O preço desse diálogo seria um problema dos italianos.

O general Patton nunca assumiu publicamente a ajuda da Máfia.

Dorrit Harazim - Julgamento da História

- O Globo

Tempos de crise aguda costumam representar o teste supremo para qualquer líder mundial

Verão de 2005 na Calota Norte. Quinze anos atrás os Estados Unidos estavam atolados em duas guerras das quais não se desvencilharam por completo até hoje — uma no Afeganistão, a outra no Iraque. O ataque terrorista islâmico do 11 de Setembro de 2001, que pulverizara as Torres Gêmeas de Nova York e humilhara a superpotência econômica e militar, ainda dominava a psiquê mundial. Ainda assim, de férias em seu rancho texano de Crawford, o presidente George W. Bush não largava a cópia de um livro sobre a pandemia da gripe de 1918.

Segundo relato do jornalista Matthew Mosk, da ABC News, Bush retornou à Casa Branca no fim daquele verão de 2005 obcecado com “A Grande Gripe”, do historiador John M. Barry. Tão obcecado que ordenou a criação do mais ambicioso e abrangente plano nacional de prevenção/combate a pandemias de que se tem notícia. Seus assessores de segurança interna tiveram de elaborar diagramas globais, criar sistemas de alerta precoce de um novo vírus, garantir o abastecimento federal em equipamentos hospitalares, financiar o desenvolvimento de uma vacina segura em velocidade máxima.

Em palestra para especialistas e pesquisadores do Instituto Nacional de Saúde naquele ano, Bush descreveu com presciência como uma pandemia se alastraria no país. E alertou: “Se esperarmos até o surgimento da pandemia, será tarde demais para nos prepararmos. Muitas vidas serão perdidas sem necessidade apenas porque falhamos em agir hoje”. Na plateia estava o mesmo dr. Anthony Fauci que hoje atua como voz da razão científica na cacofonia do governo Donald Trump.

Fauci sabe o altíssimo custo que os EUA pagam hoje por terem engavetado em delongas burocráticas e alternâncias políticas o plano de 15 anos atrás. Outras prioridades surgiram e foram sugando os US$ 7 bilhões que haviam sido alocados ao plano da época — uma ninharia se comparada à injeção de US$ 2 trilhões já liberada em 2020 para fazer frente aos estragos econômicos da atual pandemia. Sem falar no preço ainda mais alto e irrecuperável em vidas.

Míriam Leitão - Erros e acertos no espelho da história

- O Globo

O que a democracia fez nos ajuda nessa pandemia, o que o país deixou de fazer está cobrando a conta e ela pode ser alta demais

O que fizemos certo como país e o que não fizemos aparecem agora diante de nós. O coronavírus trouxe um enorme espelho onde vemos com lucidez aguda os acertos e os erros. A democracia criou o SUS, formulou programas de transferência de renda e fez um cadastro dos mais pobres. Isso é a base para o trabalho de proteção dos brasileiros. A desigualdade, a falta de moradia decente, os esgotos não tratados e a má distribuição da água ameaçam transformar essa pandemia numa enorme tragédia social. E são os pobres e os negros os mais ameaçados. Como sempre.

O Brasil tem feito a si mesmo perguntas profundas neste tempo extremo. Uma delas é: onde estão os invisíveis? O país sempre conviveu com um fosso social imenso que divide os incluídos dos excluídos. Os com e os sem. No mercado de trabalho sempre houve os com carteira e os sem carteira. Dentro e fora das leis trabalhistas. Os sem carteira se dividem em vários grupos: trabalhadores informais, os que trabalham por conta própria, os empregadores sem CNPJ, os desempregados, os desalentados, os nem nem, os subutilizados. É uma multidão. São, evitando dupla contagem, 64,8 milhões. É a soma de toda a população da Argentina, de Portugal e da Áustria. Eles de alguma forma iam vivendo e gerando sua própria renda. O choque de realidade que a pandemia provocou trouxe todos eles para a cena principal. Quem são, onde estão, como fazer um caminho para entregar a eles os recursos públicos? Dúvidas do tempo presente.

Tudo o que foi feito nos governos democráticos nesses últimos 35 anos ajuda muito. É o que temos. Não é suficiente. O governo Sarney começou com o programa do leite, evoluiu para cestas básicas. Betinho avisou que a fome de outro brasileiro era inaceitável e nos ensinou a solidariedade. Cidades testaram a transferência de renda vinculada à presença da criança na escola, o Bolsa Escola. Para isso foi necessário fazer a ficha dos beneficiários. Campinas, Distrito Federal, Belo Horizonte passaram a criar cadastros. Outras cidades as seguiram. Depois veio o Bolsa Escola Federal, no governo Fernando Henrique, que fez o primeiro cadastro geral. Em seguida o Bolsa Família, no governo Lula, que unificou programas federais, ampliou a transferência e incluiu mais brasileiros no que se chamou de Cadastro Único. É incompleto, mas é a base que está sendo usada agora no auxílio emergencial.

Vinicius Torres Freire - Beijo, abraço, aperto de mão e o vírus

- Folha de S. Paulo

Não haverá um dia seguinte social e econômico até que se saiba o tamanho da epidemia

No dia depois do amanhã da epidemia, o aperto de mão deveria ser extinto, que dirá um beijo e um abraço, disse Anthony Fauci, o grande imunologista, consultor da Casa Branca para assuntos de Covid-19. Nos EUA, já é uma campanha.

Como vamos nos cumprimentar seria até um problema simpático para o dia seguinte, o dia da vitória contra o coronavírus. Mas não haverá um dia seguinte, a julgar pelo que dizem cientistas, mas arrastados meses de guerrilha contra o inimigo.

Um grande problema é que nem sabemos onde está o inimigo, pois ainda não há ideia de quantas pessoas já foram de fato infectadas. Assim, também não sabemos dos amigos, do risco de namorar, de crianças brincarem com os avós, de trabalharmos ao lado dos colegas e de nos juntarmos para qualquer atividade.

Por terrível que seja, o HIV pode ser contido por um pingo de juízo e um pedaço de borracha, mas uma conversa ingênua pode espalhar o corona. É um predador que pode nos esperar até na maçaneta, na maçã, na barra do ônibus ou no papel do pão.

Rolf Kuntz* - No menosprezo à vida e à ciência Bolsonaro é coerente

- O Estado de S.Paulo

Defendendo armas e combatendo radares, ele já desprezou a vida

Rainha da Inglaterra? Nada disso. Bolsonaro é muito diferente. Elizabeth II fala corretamente seu idioma, é informada, tem compostura e respeita os limites constitucionais. Nunca menosprezou a cultura, nem a ciência, nem a vida de seus súditos. O presidente brasileiro foi comparado à rainha, impropriamente, porque o ministro da Saúde tem dado pouca atenção a seus palpites.

Além disso, milhões de cidadãos apoiam o isolamento social, contrariando a orientação do assim chamado chefe de governo. Nem no Executivo suas palavras são levadas a sério, como nos primeiros tempos. No entanto, o capitão é a mesma figura, coerente no despreparo, na pobreza intelectual, no menosprezo à vida de seus concidadãos e no desprezo à ciência.

“Infelizmente algumas mortes terão”, disse o presidente, em seu dialeto, no dia 27 de março. “Paciência, acontece, vamos tocar o barco”, acrescentou. Segundo ele, as consequências do esfriamento econômico seriam “mais danosas do que o próprio vírus”. Traduzidas para o português corrente, essas palavras só podem significar: as mortes de alguns milhares de pessoas, nesta altura, são preferíveis às perdas de produto e renda, à quebra de algumas empresas e ao provável aumento do desemprego. Que as perdas econômicas sejam superáveis, ao contrário das perdas de vidas, parece ter pouca ou nenhuma importância para sua excelência.

Esse menosprezo à vida alheia foi novamente exibido, em Brasília, dois dias depois. “Vamos enfrentar o vírus com a realidade”, propôs o presidente. “É a vida. Todos nós iremos morrer um dia”, continuou. E então? Se todos morrerão um dia, será isso um motivo para atravessar a rua sem cuidado ou para jogar bituca de cigarro num posto de gasolina? Ele falou, enfim, como se a certeza da morte como destino final de cada um tornasse a vida um traste sem valor. Detalhe interessante: esses comentários foram feitos durante um passeio em Brasília, no meio de um ajuntamento, situação propícia ao contágio, à multiplicação de doentes e, portanto, ao risco de morte para muitas pessoas.

Pedro S. Malan* - Espinhosa travessia

- O Estado de S.Paulo

O desafio histórico para verdadeiros líderes é gerir a crise enquanto constroem o futuro

A crise em que se veem o Brasil e o mundo é a um só tempo sanitária, econômica e social. Para enfrentá-la precisamos, mais que nunca, de serena combinação de humildade e confiança da parte de suas lideranças. Humildade para reconhecer o alto grau de incerteza e riscos presentes, confiança em que teremos capacidade para nos erguermos à altura dos desafios. É preciso também reduzir conflitos - com o Congresso, governadores, comunidade científica, mídia profissional, parcela expressiva da opinião pública e até mesmo com os fatos.

Marcus André Mello recorre a Maquiavel na abertura de seu belo artigo na Folha desta semana: “Os príncipes devem transferir decisões importunas para outrem, deixando as agradáveis para si”. O autor mostra quão complexos podem ser os mecanismos de “reivindicação de crédito e de transferências de culpas por decisões impopulares”. E conclui: “Na atual pandemia, são três as lições a tirar para Trump, Johnson e Bolsonaro: ter começado mal importará pouco; transferir responsabilidades não funcionará. (...) E mais importante, a crise revelará sua real capacidade de liderança, não há como escapar”.

A velocidade de contágio do vírus atesta de forma dramática as interações necessárias do mundo da política nacional, regional e internacional. Em artigo recente, Henry Kissinger afirma que nenhum país poderá superar de forma isolada um problema que é global, e cujas consequências econômicas e políticas estarão conosco por gerações. Para o experiente analista, impõe-se aos EUA um grande esforço em três áreas: contribuir para aumentar a resiliência global a doenças infecciosas; fazer mais do que foi feito em 2008/09, porque a situação agora é muito mais complexa; e lembrar as razões que levaram os EUA a cooperar com outros países nos arranjos internacionais que marcaram o mundo do pós-guerra. O desafio histórico para verdadeiros líderes é administrar a crise enquanto constroem o futuro.

Com efeito, lideranças nacionais serão inevitavelmente avaliadas não só pela opinião pública doméstica, como também pela percepção dos outros países. Importa como nos vemos, mas importa também como somos vistos por outros. Afinal, 2020 será marcado por uma brutal recessão na economia mundial e no comércio internacional, muito mais intensa que a de 2008/09. A magnitude dos efeitos sobre oferta, cadeia de suprimentos, demanda e, portanto, sobre emprego e renda não permitirá uma recuperação rápida em 2021. Pesa, ademais, o receio de uma segunda onda da covid-19 ainda em 2020.

Affonso Celso Pastore* - Precisamos de ousadia e responsabilidade

- O Estado de S.Paulo

Na ausência de vacina e de remédio eficaz, só o distanciamento social consegue reduzir o contágio e o número de mortes provocadas pela Covid-19. Tal estratégia leva a forte queda da produção, como ocorre em uma guerra convencional, com a diferença de que neste caso o inimigo destrói fábricas e cidades, e as mortes chegam a muitos milhões. Há uma destruição de capital físico, cuja reconstrução exige um “Plano Marshall”, e uma destruição de capital humano, que somente será reposto a longo prazo com os investimentos na educação dos nascidos após o final da guerra.

Embora haja queda temporária da produção e da demanda, o distanciamento social evita a destruição dos capitais físico e humano, preservando o PIB potencial. Os governos elevam significativamente os gastos em saúde e em transferências aos menos favorecidos, e a forte expansão de crédito em escala sem precedentes deve impedir (ou reduzir) a quebra de empresas. Parte do crédito é dirigido ao pagamento dos salários, incentivando as empresas a manter os empregos e a renda dos funcionários. Se fosse uma recessão convencional disparada pela queda de demanda, esta teria que ser imediatamente estimulada. Porém, quando ocorre uma queda simultânea de demanda e oferta, com esta última temporariamente incapacitada de reagir, não há como o multiplicador keynesiano possa funcionar, o que somente ocorrerá quando o freio à oferta for aliviado.

Com as fábricas paradas e as lojas de portas fechadas, não é possível que a oferta responda aos estímulos da demanda. O colapso da receitas das empresas implode os lucros e adia os investimentos, contraindo a demanda, e ainda que o financiamento lhes permita manter o emprego, há uma queda de renda das famílias, contraindo o consumo. Para que a economia se recupere é preciso que a oferta responda à demanda, o que não acontece enquanto persistir o choque de oferta.

The Economist- Jair Bolsonaro se isola, no sentido errado

- O Estado de S. Paulo

Imprudência do presidente brasileiro diante da covid-19 voltará para assombrá-lo

Um a um, os negacionistas fizeram as pazes com a ciência médica. Apenas quatro governantes do mundo continuam negando a ameaça à saúde pública que a covid-19 representa. Dois são de destroços da antiga União Soviética, os déspotas da Bielorrússia e do Turquemenistão. O terceiro é Daniel Ortega, ditador tropical da Nicarágua. O outro é o presidente eleito de uma grande - ainda que combalida - democracia. O esforço de Jair Bolsonaro para minar as iniciativas de seu próprio governo no combate ao vírus pode marcar o início do fim de sua presidência.

Desde que o novo coronavírus foi detectado pela primeira vez no Brasil, no final de fevereiro, Bolsonaro, um ex-capitão do exército que tem adoração pelos governantes militares, fez pouco caso da doença. Menosprezando seus efeitos como “só uma gripezinha”, ele disse que era preciso "enfrentar o vírus como homem, pô, não como moleque”. E acrescentou, num tom bastante consolador: “todos nós vamos morrer um dia”. Nos quinze meses desde sua chegada à presidência, os brasileiros se acostumaram às suas bravatas de machão e à sua ignorância em questões que vão desde a preservação da floresta amazônica até educação e policiamento. Mas, desta vez, o dano é imediato e óbvio: Bolsonaro juntou a retórica truculenta à sabotagem ativa da saúde pública.

Ele diz acreditar no “isolamento vertical”, na quarentena apenas para os brasileiros com mais de 60 anos, com o objetivo de limitar os danos à economia. Existem dois problemas nesse raciocínio. Os jovens também morrem de covid-19 (10% das vítimas no Brasil têm menos de 60 anos), e a imposição de uma quarentena desse tipo seria impossível.

Os governadores dos estados mais importantes do Brasil tomaram a frente e impuseram isolamento social utilizando seus próprios poderes. Bolsonaro encorajou os brasileiros a ignorá-los. Homem que teme traições e sente uma perpétua necessidade de provocar, ele recebeu com abraços e selfies seguidores que faziam uma manifestação contra o Congresso, em 15 de março. O presidente também lançou uma campanha incentivando as empresas a reabrirem as portas e pediu “jejum e manifestações” nas igrejas em 5 de abril. Ele cogitou decretar, ilegalmente, o fim do isolamento. E, por duas vezes, chegou perto de demitir seu próprio ministro da saúde, Luiz Henrique Mandetta, um médico conservador que se opôs publicamente ao clamor do presidente para afrouxar as restrições.

Marco Aurélio Nogueira* - Cineasta João Batista de Andrade explora vingança em novo livro

- O Estado de S. Paulo / Aliás 

Trama se passa na periferia e demonstra que uma literatura engajada só se completa se tiver valor artístico

A relação entre cinema e literatura integra a história da cultura moderna. Já foi cantada e decantada, seja na consideração das contribuições recíprocas entre as duas grandes artes, seja naquilo que cineastas incorporam, em suas trajetórias, da ficção literária.

Há, também, a direção oposta, a do cineasta que transfere sua experiência fílmica para a literatura. A pulsão de filmar e a pulsão de escrever se entrelaçam, fazendo com que palavras se transformem em imagens e cenários pungentes, que envolvem, mobilizam e emocionam.

João Batista de Andrade tem uma biografia artística concentrada no cinema. É um dos importantes cineastas brasileiros, autor de filmes que marcaram época, como Doramundo (1977), o premiadíssimo O Homem que Virou Suco (1981), A Próxima Vítima (1983), O País dos Tenentes (1987), O Cego que Gritava Luz (1996). Seus filmes contam histórias de violência, centradas na experiência das classes trabalhadoras. Valem-se bastante do documentário e do telejornalismo, apurados no trabalho que desenvolveu na Hora da Notícia da TV Cultura e no Globo Repórter. Em Vlado: 30 Anos Depois (2005), Batista mostrou todo seu talento documentarista. A busca de intervenção e a crítica política compuseram-se com a preocupação de fazer cinema para construir valores na sociedade e disseminar uma visão crítica da realidade brasileira.

Ivan Alves Filho* – Rica contribuição

O velho Partido Comunista Brasileiro (PCB) nunca esteve no poder central. Mas encarnou, como nenhuma outra agremiação, a meu juízo, os interesses do nosso povo.

Sob essa ótica, convém recordar sua atuação na formação da Aliança Nacional Libertadora, praticamente o primeiro partido de massas do Brasil, nos anos 30.

De outra parte, fez uma defesa constante da reforma agrária, e isso desde o início da década de 20.

Deu ainda um apoio decisivo à memorável campanha do Petróleo é Nosso.
Não podemos esquecer, tampouco, sua ação na defesa das terras indígenas, sobretudo durante a criação do Parque do Xingu.

Travou uma luta obstinada pela democracia, contra todas as ditaduras que enlutaram nosso país.

Mais: como abordar a cultura brasileira sem o PCB? E o mesmo diríamos das lutas sindicais. Os comunistas nunca se envolveram com a corrupção ou o desvio de recursos públicos.

No momento em que o Brasil atravessa uma fase tão adversa, precisamos recordar outra batalha vitoriosa do PCB, inscrita na Constituição de 1988: a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), graças em boa tarde ao empenho do deputado e médico sanitarista Sérgio Arouca, meu amigo, a quem reverencio aqui. Aliás, a própria ideia do SUS partiu do Arouca.

O PCB nunca esteve no poder central, é verdade. Mas fez muito mais do que isso: sempre esteve ao lado do povo e das lutas pela cidadania. Foi da sociedade para o Estado. Esse o seu ponto de partida. Outros grupos estiveram no Estado e pouco fizeram pela sociedade, apesar de se valerem de toda uma retórica. A trajetória do PCB nos lembra que hegemonia é condução de processo.

*Historiador, autor de mais de uma dezena de livros em que se destacam "O Memorial de
Palmares" e "O caminho do alferes Tiradentes"

O que a mídia pensa - Editoriais

• Pagar pela guerra – Editorial | Folha de S. Paulo

Gasto público deve subir com critério; depois, conta deve poupar os mais pobres

Como se observa em todo o mundo, as imperativas restrições à movimentação de pessoas para conter a Covid-19 provocam impacto econômico dramático. A retração da atividade e as perdas de renda e empregos podem ter dimensões raramente vistas por um século.

Não são descabidas estimativas que apontam contrações de até 10% do Produto Interno Bruto de muitos países, inclusive entre os desenvolvidos. O custo social dessa pane é tremendo e exige ação imediata dos governos para evitar que famílias mergulhem na pobreza.

No Brasil não é diferente. A coletânea de medidas anunciadas até agora pelo poder público, apesar da coordenação deficiente do Executivo federal, segue a direção correta.

O pagamento de R$ 600 mensais por um trimestre a trabalhadores de baixa renda, regras que permitem flexibilizar temporariamente contratos de trabalho mediante compensação com dinheiro público, prazo maior para o pagamento de impostos e outras iniciativas contribuem para minorar o efeito do inevitável declínio da economia.

Poesia | Frederico García Lorca - Cantos novos

Diz a tarde: “Tenho sede de sombra!”
Diz a lua: “Eu, sede de luzeiros.”
A fonte cristalina pede lábios
e suspira o vento.

Eu tenho sede de aromas e de sorrisos,
sede de cantares novos
sem luas e sem lírios,
e sem amores mortos.

Um cantar de manhã que estremeça
os remansos quietos
do porvir. E encha de esperança
suas ondas e seus lodaçais.

Um cantar luminoso e repousado
cheio de pensamento,
virginal de tristezas e de angústias
e virginal de sonhos.

Cantar sem carne lírica que encha
de risos o silêncio
(um bando de pombas cegas
lançadas ao mistério).

Cantar que vá à alma das coisas
e à alma dos ventos
e que descanse por fim na alegria
do coração eterno.