segunda-feira, 20 de abril de 2020

Opinião do dia – Luiz Sérgio Henriques*

A perspectiva internacionalista - sendo a mais razoável e a mais adequada à ideia de que o gênero humano, afinal, é um só - não está isenta de problemas. Não desaparecerão num passe de mágica as complicações geopolíticas e os desígnios hegemônicos, ou, mais precisamente, os desígnios de dominação nem sempre assentados em consenso. O poder que ora se retrai abdica das suas responsabilidades na gestão da ordem global e não esconde a intenção de solapar as instituições que ajudou a criar, como se vê agora por suas atitudes em face da Organização Mundial da Saúde (OMS); o poder emergente, por seu turno, é uma singular mistura de economia de mercado e autoritarismo político, cuja universalização não é desejável e só se concretizaria à custa da perda de valores inestimáveis da tradição ocidental.

O atribulado romance do nosso tempo está, assim, rigorosamente em aberto. Não há autoria individual possível nem se pode discernir, como outrora, o espírito do mundo encarnado numa figura de herói. Sabe-se só que a melhor perspectiva exige a permanência e o aprofundamento dos processos de democratização em cada nação e, por conseguinte, na comunidade de todas as nações.

* Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das ‘Obras’ de Gramsci no Brasil. “O romance (em aberto) do nosso tempo”, O Estado de S. Paulo, 19/4/2020.

Fernando Gabeira - Viver na incerteza

- O Globo

O que nos favorece é a grande capacidade humana de se adaptar

Simone de Beauvoir escreveu no célebre livro “O segundo sexo” que era difícil se sentir uma princesa, em tempos de menstruação, com um incômodo pano entre as pernas.

É difícil se sentir o rei da cocada preta fechado em casa, com um medo de uma invisível partícula proteica que mata as pessoas e devasta a economia planetária. Sobretudo, é difícil sentir-se dono de grandes certezas, num mundo em que a normalidade foi para o espaço.

Edgard Morin merece admiração por isso. É quase centenário, e seu pensamento ao longo dos anos evoluiu para enfatizar a complexidade e a incerteza.

Apesar de ter escrito muitas vezes sobre segurança biológica e ter detectado o impacto desse vírus nos seus primórdios, confesso que, como quase todos os outros, o subestimei.

Ao sair de Fernando de Noronha, em 16 de março, ainda tinha esperanças de seguir viajando pelo Brasil, na presunção de que o vírus não chegaria aos lugares onde vou.

De fato, tenho tido contato permanente com pontos remotos do Brasil e, à exceção de Fernando de Noronha e grandes cidades, o vírus ainda não chegou lá.

Esqueci-me das estradas, dos postos de gasolina, dos restaurantes e hotéis no caminho, dos perigosos aeroportos e aviões. E esqueci que estava bem próximo dos 80 anos.

Bernardo Mello Franco - No QG do Exército, Bolsonaro saúda manifestação golpista

- O Globo

O presidente Jair Bolsonaro tirou a tarde de domingo para saudar uma manifestação de caráter golpista, com faixas que pediam o fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal.

Os manifestantes se aglomeraram em frente ao Quartel-General do Exército, em Brasília. Antes disso, fizeram uma carreata contra as medidas de isolamento para combater o coronavírus.

Bolsonaro chegou em carro oficial, cercado por seguranças da Presidência. Saudado aos gritos de "Mito", ele desfilou sem máscara diante dos manifestantes, boa parte com camisas da seleção e com bandeiras do Brasil.

Em primeiro plano, faixas exibiam mensagens como "Intervenção militar já com Bolsonaro no poder" e "Intervenção militar, fechem o STF e o CN".

O presidente subiu na caçamba de uma camionete e elogiou os apoiadores. "Eu estou aqui porque acredito em vocês. Vocês estão aqui porque acreditam no Brasil", disse.

Em seguida, enviou novo recado ao Congresso: "Nós não queremos negociar nada. Nós queremos é ação pelo Brasil". Em outra passagem, afirmou: "Acabou a época da patifaria, agora é o povo no poder".

Depois de falar por dois minutos, Bolsonaro teve um acesso de tosse. Interrompeu o discurso e se despediu com o slogan de sua campanha eleitoral em 2018.

As cenas foram filmadas por um assessor do presidente e transmitidas ao vivo nas redes sociais do presidente.

Ricardo Noblat - A peleja entre Bolsonaro e o coronavírus

- Blog do Noblat | Veja

Quem fará mais estragos ao Brasil?

O cenário era sugestivo. De um lado, a imponente sede do Quartel-General do Exército, no Setor Militar Urbano de Brasília, uma monumental obra do arquiteto comunista Oscar Niemeyer. Do outro, cerca de 200 a 300 pessoas, a maioria vestida de verde e amarelo carregando faixas e cartazes onde pediam a volta do AI-5, o ato mais brutal da ditadura militar de 64, a censura à imprensa e o fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal.

No meio, em cima da caçamba de uma camionete, sob a proteção da Polícia do Exército, o presidente Jair Bolsonaro tossiu, tossiu, tossiu, balançou um pouco, mas não caiu, e durante cinco minutos, sem máscara, expelindo perdigotos, disse que estava ali porque acreditava nos manifestantes que clamavam por uma nova intervenção militar. Mais de uma vez afirmou que o povo, agora, estava no poder e que poderia contar com ele.

Corte! Recuemos 10 ou 14 anos. O presidente da República chama-se Luiz Inácio Lula da Silva. Com dificuldades para governar, ele autoriza militantes do PT a irem às ruas em seu socorro. No dia marcado, um grupo numeroso de militantes, empunhando bandeiras vermelhas e vociferando contra o Congresso e a Justiça, se concentra diante do Quartel-General do Exército, em Brasília. Lula aparece, discursa e prega a ascensão do povo ao poder.

Como reagiriam os militares? Soltariam uma nota condenando o ato de natureza claramente golpista? Pelo menos uma nota para garantirem que nada tiveram a ver com o que assistiram tão de perto? Renovariam seu compromisso em respeitar a Constituição? Ou nada fariam, recolhendo-se ao silêncio? O “povo no poder” dito por Lula soaria à provocação, coisa de esquerdista? O de Bolsonaro, um extremista de direita, como coisa normal?

Cacá Diegues - O delito maior

- O Globo

Numa hora em que precisamos nos livrar da peste planetária, o ministro foi vítima de suas virtudes

E lá se vai o Mandetta embora. Numa hora em que mais de 2 milhões de pessoas, no mundo inteiro, estão infectadas pela Covid-19, e por volta de 150 mil já morreram. Numa hora em que precisamos nos livrar da peste planetária, o ministro foi vítima de suas virtudes. Como a defesa intransigente do distanciamento social, um dos motivos pelo qual, neste momento, se tornou o homem público mais amado do Brasil (76% de aprovação popular). Na quinta-feira passada, dia de sua demissão, três discursos nos contaram o que estava acontecendo.

No primeiro depoimento, um ministro, virtualmente demitido há muito tempo, sorria glorioso, satisfeito com tudo o que propusera, inclusive a política que havia provocado a sua demissão. Esperei ouvir, a qualquer momento, o célebre pensamento do padre Antonio Vieira, que entendia dessas coisas: “Nessa terra, não há delito maior do que ser o melhor”. Mandetta convocava seus auxiliares, sobretudo os mais fiéis, a cooperarem entusiasticamente com o nomeado, os incentivava a colaborar com o novo ministro. No outro, o novo ministro improvisava uma fala técnica, um pouco convencional, justificável pelo pouco prazo da decisão. Nelson Teich expôs um programa muito pouco dessemelhante ao do exonerado. E completava com uma declaração de “alinhamento” que, por contraste com o que dissera, só podia ser para acalmar o ego excitado do chefe.

Demétrio Magnoli - Depois do vírus, Kant ou Hobbes?

- O Globo

China triunfou sobre os EUA no teste da pandemia

Volta à normalidade? A ideia sedutora do tempo circular, do retorno ao ponto de partida, não ajuda a decifrar a paisagem pós-pandemia.

Os analistas que apostam numa ordem global mais kantiana — isto é, mais integrada e cooperativa — erram tanto sobre a partida quanto sobre a chegada. Os pratos da balança inclinaram-se ao nacionalismo antes da pandemia e suas consequências acelerarão o curso do fechamento. Na “Foreign Policy” de 20 de março, Stephen Walt opinou que a pandemia “reforçará o Estado e o nacionalismo”, provocará um “retrocesso na globalização” e “criará um mundo menos aberto, menos próspero e menos livre”. Hobbes, não Kant.

Henry Kissinger, em artigo recente, chamou os EUA a rememorar os motivos que o levaram a erguer a arquitetura de cooperação internacional do pós-guerra. A suspensão do financiamento americano da OMS evidencia que Trump escolheu o caminho oposto.

O G7 só produziu palavras vazias. Os EUA isolaram-se na sua crise sanitária interna, que revelou ao planeta o despreparo governamental e os assombrosos níveis de exclusão social da superpotência. Na mesma “Foreign Policy”, Kori Schake prevê que os EUA “não mais serão vistos como líder internacional” pois “falhou no teste da liderança”. Como resultado do fracasso americano, a China ganhou a guerra da Covid, apesar do ocultamento inicial da epidemia e da fabricação de estatísticas altamente suspeitas.

No pós-guerra, o rival era a URSS, uma potência fechada no casulo geopolítico e econômico do bloco socialista. O rival de hoje, a China, pelo contrário, é uma potência conectada às redes da globalização. O triunfo chinês sobre os EUA no teste da pandemia não só amplia sua influência internacional como delineia uma aura de eficiência em torno de seu modelo autoritário de capitalismo de Estado. O conceito nacionalista de Trump sai fortalecido da emergência mundial. Mas, ironicamente, a vitória doutrinária é de Pirro: representa uma derrota estratégica para os EUA.

Marcus André Melo* - A bazuca neoliberal

- Folha de S. Paulo

As consequências políticas dos pacotes de estímulo fiscal poderão surpreender

A reação ao pacote de estímulo fiscal de Trump (US$ 2,2 trilhões) e ao brasileiro (8% do PIB) tem sido que “generosidade fiscal em governo liberal é um oximoro”. A bazuca fiscal dos governos “de direita” que ascenderam ao poder na última década reacende o debate sobre preferências de política econômica. O que acontece quando tais governos alimentam o Leviatã? Eleitorados conservadores preferem políticas econômicas “de direita”? Qual impacto dos 150 milhões de corona cheques nos EUA?

O suposto de identidade universal entre conservadorismo e a agenda de Estado mínimo não é suportado por evidências. Só está presente nos EUA e outros poucos países e mesmo assim restringe-se às elites políticas, e não às crenças da massa. A caracterização bidimensional de preferências segundo um eixo comportamental/costumes e outro econômico capta parte do problema, mas só recentemente o tema foi objeto de pesquisas rigorosas.

A base de dados reúne 326 mil observações sobre preferências individuais em temas comportamentais (religião, comportamento sexual, minorias etc) e intervenção do Estado (propriedade de empresas, tributação, redistribuição etc.).

A conclusão do estudo é que valores conservadores na esfera dos costumes não mantêm correlação com políticas econômicas “de direita” (Estado mínimo/austeridade fiscal)”.

Celso Rocha de Barros* - Bolsonaro, comorbidade brasileira

- Folha de S. Paulo

Nova onda de ataques ao Congresso e ao STF cria pesadelo institucional

Nas últimas semanas esta coluna defendeu a estratégia de isolar Bolsonaro até o final da crise.

O presidente da República sabotava abertamente o esforço dos governadores contra a epidemia. Não havia tempo para impeachment. Um Bolsonaro que ao menos não atrapalhasse parecia ser o melhor cenário possível. Um dia nos perguntaremos como foi que isso virou o melhor cenário possível e quem bloqueou os outros cenários.

Quando, 15 dias atrás, Bolsonaro foi impedido de demitir o então ministro da Saúde Henrique Mandetta, pareceu que a estratégia daria certo. E talvez ela tenha nos garantido semanas importantes, em que o combate dos governadores pode ter feito diferença.

Mas parou de dar certo, ou está dando bem menos certo. Nem tanto pela substituição do ministro —ainda não estão claras as posições de Nelson Teich— mas pelo desastre que é ter Bolsonaro e seu ódio à ciência de volta à conversa em uma hora dessas.

Mandetta foi demitido porque os militares no governo o abandonaram. Os generais haviam sido decisivos para que não fosse demitido 15 dias antes. Diz-se que a mudança de posição dos militares se deu pela entrevista do agora ex-ministro ao Fantástico, que teria caracterizado "quebra de hierarquia".

O argumento é ridículo. A hierarquia foi quebrada porque o topo da hierarquia enlouqueceu.

Em tempos normais, a entrevista de Mandetta talvez justificasse a demissão. Mas não são tempos normais.

Leandro Colon – Paranoico e primitivo

- Folha de S. Paulo

Presidente age como estivesse em um ringue contra supostos inimigos em rounds imaginários

“Chega da velha política”, disse Jair Bolsonaro na caçamba de uma caminhonete a um grupelho aglomerado em um ato anti-isolamento e pró-intervenção militar.

A frase partiu do presidente que nos últimos dias acenou ao centrão, bloco dos partidos apetitosos por cargos e verbas federais.

“É agora o povo no poder. Todos têm que entender que estão submissos à vontade do povo brasileiro”, ele afirmou neste domingo (19).

Um sinal da vontade das ruas está no mais recente Datafolha. Segundo a pesquisa, 79% dos brasileiros defendem punição a quem viole as regras de cumprimento da quarentena no combate ao coronavírus.

Por duas vezes no fim de semana, Bolsonaro, do grupo da faixa etária de risco, saiu sem máscara, aglomerou pessoas desprotegidas e discursou e tossiu cercado de seguranças.

O povo citado pelo presidente é o mesmo que, além de votar nele em 2018, escolheu também os 513 deputados e dois terços dos senadores.

Portanto tão legítima quanto a eleição à Presidência foi a votação para a composição do Congresso.

Vinicius Mota – Foi Péssimo

- Folha de S. Paulo

Segundo técnicos do governo à época, houve 1.300 óbitos a cada 100 mil paulistanos

“O estado sanitário foi péssimo”, relatava o boletim do governo paulista acerca da saúde na capital no último trimestre de 1918. Uma epidemia de gripe eclodira em meados de outubro, “estendendo-se por toda a cidade com extraordinária rapidez e violência, acometendo quase duas terças partes da população em pouco mais de um mês”.

O informe acusa a notificação de 5.331 mortes por influenza no município, mas os técnicos desconfiam da cifra. Debitando os registros por gripe do total de falecimentos naquele quarto de ano, ainda restava um volume anormal de óbitos na comparação com períodos imediatos em que não houve infecção.

Em 1919 —mesmo ano em que Ronald Fisher, na Inglaterra, começou a lançar bases da estatística moderna—, os técnicos sanitários paulistas praticaram rudimentos de um gênero de estimação hoje altamente desenvolvido. Do cotejo com as médias fica um excesso de mortes que só pode ser decorrente, supõem, da própria gripe. Concluem então que o número verdadeiro de vítimas fatais da epidemia na capital foi de 6.861.

Ruy Castro* - Eu me lembro

- Folha de S. Paulo

Os muitos tipos de confinamento de que o cinema já tratou

Um jovem poeta desiludido tem a ideia de se isolar do mundo numa loja de departamentos —aquelas tipo Sears, que ocupavam um prédio inteiro e vendiam de tudo. O plano do rapaz é entrar, esperar que ela feche e passar a viver lá, escondendo-se durante o dia. Faz isso e, para sua surpresa, descobre que outros já tiveram essa ideia e formam uma pequena comunidade oculta. É um conto de 1940 do escritor inglês John Collier (1901-1980), “Evening Primrose”. Stephen Sondheim fez dele um musical em 1966, de que saiu a canção “I remember”.

E de que, depois de algum tempo, eles se lembram? Do céu, chuva, vento, ruas, árvores, folhas, dias —dos dias, que eram diferentes uns dos outros. É como muitos de nós estamos nos sentindo.

Mas eu me lembro também dos muitos tipos de confinamento de que o cinema tratou, desde o de uma cela de prisão, em “O Homem de Alcatraz” (1962), de John Frankenheimer, até o do túnel que se escava para fugir, no francês “A Um Passo da Liberdade” (1960), de Jacques Becker. Do confinamento espontâneo e doentio de “Repulsa ao Sexo” (1965), de Roman Polanski, ao imposto por um desabamento, em “A Montanha dos Sete Abutres” (1951), de Billy Wilder, e ao infligido por alguém a uma vítima indefesa, como o de “O Colecionador” (1965), de William Wyler.

Carlos Pereira - Isolamento social é coisa de rico?

- O Estado de S.Paulo

O 'medo da morte' relativiza as preocupações com as potenciais perdas econômicas

Tem ganhado força a interpretação de que a política de isolamento social, preconizada pela Organização Mundial da Saúde e implementada pelos governadores dos estados, estaria sendo primordialmente apoiada por aquelas pessoas que teriam recursos financeiros para se manter confortavelmente em quarentena. A pressuposição, inclusive reverberada pelo presidente Bolsonaro, é a de que seria mais fácil para o grupo social de maior renda priorizar os cuidados com a saúde e relegar os problemas econômicos gerados pela pandemia para segundo plano.

Por outro lado, as famílias com rendimentos mais baixos, que dependem de rendas do trabalho e/ou de transferências governamentais, seriam mais vulneráveis e, portanto, necessitariam voltar mais cedo às suas atividades profissionais e apresentariam assim maior resistência a manutenção do isolamento social. Na realidade, as famílias menos abastadas já estariam sendo atingidas pela crise.

Muitos não teriam recursos para alimentação, aluguel, remédios etc. Sabem que seus empregos, casas, negócios, estariam em risco iminente, especialmente o setor de serviços, onde as famílias mais pobres e de menor qualificação estão mais empregadas. Por isso, prefeririam enfrentar o risco de serem contaminados pelo vírus e voltar ao trabalho.

Jose Goldemberg* - Ciência em tempos de crise

- O Estado de S. Paulo

Grandes líderes do século 20 sempre se cercaram de cientistas do mais alto nível

A crise mundial causada pelo coronavírus está fazendo muitas vítimas, mas provavelmente vai passar à História como uma crise que contribuiu para a recuperação da credibilidade da ciência.

A ascensão de governos populistas nas últimas décadas em vários países, sobretudo no Brasil e nos Estados Unidos, estava nos levando para um novo “período de trevas”, como na Idade Média, em que a evidência científica era aceita ou negada dependendo do interesse de grupos sociais, religiosos ou políticos, em prejuízo do conjunto da sociedade.

Foram necessários cientistas como Nicolau Copérnico e Galileu Galilei, há cinco séculos, para comprovar que a Terra não é plana e também não é o centro do universo, o que abalou profundamente o poder da Igreja Católica e abriu caminho para o descobrimento da América.

Foi preciso, também, um Charles Darwin, no século 19, para demonstrar, de maneira clara, que os seres vivos evoluem e não foram criados todos ao mesmo tempo, há 5 mil anos.

A descoberta da existência do código genético, por James Watson e Francis Crick, abriu caminho para a “revolução verde” na agricultura, que eliminou a fome no mundo.

Os trabalhos de Louis Pasteur e o desenvolvimento de vacinas praticamente eliminaram o sarampo, a poliomielite e diversas outras doenças devastadoras.

Ainda assim, existem políticos e grupos religiosos que negam a realidade desses avanços, inventando teorias conspiratórias ou fazendo uma leitura incorreta das Escrituras, que foram escritas há milhares de anos, refletindo uma realidade social que não é a realidade de hoje numa sociedade altamente tecnológica.

Nestas sociedades é indispensável uma divisão de tarefas e de respeito pelo conhecimento técnico de especialistas baseada na melhor ciência disponível em todas as áreas. Líderes populistas sistematicamente desprezam a evidência apresentada por esses especialistas quando ela se choca com seus interesses ou suas próprias visões, já que muitos deles vivem num “universo paralelo”.

Sérgio Augusto - Tudo esquisito num mundo em confinamento

- O Estado de S.Paulo / Aliás

Ministros que citam Platão, filósofos de esquerda negacionistas, o que resta ainda para nos surpreender?

Um ministro do Boçalnistão que cita Platão no meio de uma coletiva, religiosos inseguros questionando a Teodiceia de Leibniz, youtuber recomendando a resiliência moral e espiritual dos estoicos, um filósofo italiano de ideias sólidas dando a impressão (mas só a impressão) de concordar com os negacionistas da pandemia. E como se toda essa filosofância não bastasse, eis que o ‘enfant terrible’ esloveno Slavoj Zizek, entusiasmado com o surto de solidariedade humana deflagrado pela pandemia mundo afora e a concomitante desmoralização do ultraliberalismo econômico, reapareceu para celebrar o surgimento de um espírito comunitário há muito perdido e, num arremate hiperbólico bem ao seu feitio, antecipar a aurora socialista. O que mais falta acontecer? Filosófica e sanitariamente falando, a internação manicomial do Rasputin do boçalnarismo, Aiatolavo de Carvalho. Na ala dos horoscopistas.

Também me aturdi com a alusão do ex-ministro Mandetta ao Mito da Caverna. Como esperar que um integrante do governo mais agressivamente ignorante e obscurantista da história do Brasil, ademais ministro da Saúde, não da Cultura, tirasse do bolso do jaleco a República de Platão enquanto conversava com a imprensa?

Bruno Carazza* - Não existem mocinhos e bandidos

- Valor Econômico

Votação sobre o Carf ilustra jogo de interesses

Reducionismos são muito perigosos, principalmente em tempos de crise. Por trás de expressões bonitas como “interesse público”, “bem comum”, “proteção social”, “eficiência e produtividade” podem estar escondidas perigosas armadilhas. Em meio à comoção coletiva e com o noticiário dominado pelo mono assunto da covid-19, é preciso atenção redobrada. Os oportunistas estão à espreita.

Outro risco é acreditar em estereótipos e rotulagens. Frequentemente caímos no conto do mocinho versus bandido, do bem contra o mal. Relações sociais em geral são desiguais, e a maioria dos países busca aprovar legislações para evitar abusos contra o lado mais frágil, como empregados, tomadores de empréstimos e locatários. Quando erramos a mão na tentativa de regular a vida em sociedade, ocorrem distorções com consequências severas - imóveis vazios num país de enorme déficit habitacional, crédito caro e escasso, 40 milhões de trabalhadores informais. Mas isso é assunto para outras colunas.

O pior dos mundos acontece quando grupos de interesses muito bem articulados se valem de simplificações maliciosas e de um falso discurso de boas intenções para impor grandes prejuízos para a sociedade. A história aconteceu nas últimas semanas, e quando percebemos o leite já havia sido derramado.

Crise pode jogar 15 milhões na pobreza extrema no país

Ampliação de programas sociais determinará cenário, diz Banco Mundial

Por Bruno Villas Bôas | Valor Econômico

RIO - Com o período de confinamento afetando emprego e renda, o novo coronavírus pode empurrar mais 5,7 milhões de brasileiros para a pobreza extrema caso o governo não consiga efetivamente ampliar seus programas sociais e não consiga apoiar as empresas a manter empregos.

Isso representaria elevação de 60% na pobreza extrema no país, para 15 milhões de pessoas vivendo com menos de US$ 1,90 per capita por dia, segundo cálculos do Banco Mundial obtidos pelo Valor. Essa é a linha de pobreza usada para países de renda média como o Brasil. Dessa forma, a taxa de pobreza extrema (proporção em relação ao total da população) cresceria de 4,4% no ano passado para 7% neste ano.

O Banco Mundial também estimou o potencial aumento de uma linha de pobreza mais “branda”, de US$ 5,50 per capita por dia. Por esse recorte, a taxa de pobreza cresceria de 19,5% em 2019 para 22,4% em 2020. Seriam 6,2 milhões a mais de brasileiros pobres por esse recorte.

Francisco Ferreira, pesquisador sênior e coordenador do Programa de Pesquisa em Pobreza e Desigualdade do Banco Mundial, afirma que os cálculos estão baseados no cenário de queda de 5% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2020, atual projeção da entidade para o Brasil.

“Não se pode menosprezar o tamanho do desafio. Uma queda de produto e renda de 5% obviamente é um choque colossal, principalmente porque não tínhamos sequer recuperado o que perdemos em 2015-16”, diz Ferreira, economista que fica sediado em Washington.

Ele explica que esse impacto econômico da crise do novo coronavírus afeta mais o trabalhador informal, principalmente no setor de serviços. Sem trabalho e sem receber seguro-desemprego, esse trabalhador e sua família estão numa situação de altíssimo risco, afirma o economista.

Bolsonaro ultrapassa limites e desafia o estado de direito – Editorial | O Globo


Contrário ao isolamento social, presidente vai a manifestação em que é defendido golpe militar

O presidente Bolsonaro tem feito jus à biografia de um político radical que construiu a carreira na bancada do baixo clero na Câmara sem nunca ter se preocupado em se distanciar do lado mais escuro da ditadura militar. Eleito legitimamente presidente da República, Jair Bolsonaro tem sido coerente com seu passado e, à medida que se sente legalmente tolhido a praticar um enfrentamento sem base científica da epidemia da Covid-19, radicaliza, tendo chegado a um ponto perigoso ontem, ao participar de manifestação em Brasília em que se pregou golpe militar.

Bolsonaro foi além do desrespeito a indicações dos especialistas para se evitar a propagação do vírus, o que tem feito com sistemática há semanas, contra a posição do então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, e agora do seu substituto, Nelson Teich, que acertadamente tenta montar um sistema de aferição da evolução da epidemia, para que sejam tomadas decisões bem fundamentadas, e não como deseja Bolsonaro, preocupado apenas com seu futuro político, e não com a saúde da população. Aboletado numa caminhonete, o presidente fez um pronunciamento no estilo do populismo mais tosco: “(...)vocês estão aqui porque acredito em vocês. Vocês estão aqui porque acreditam no Brasil. Nós não queremos negociar nada. Nós queremos é ação pelo Brasil (...). Acabou a época da patifaria. É agora o povo no poder (...) Todos no Brasil têm que entender que estão submissos à vontade do povo brasileiro (...)”. Este discurso, na boca de um presidente, representa uma agressão ao estado democrático de direito.

Militares reprovam participação de Bolsonaro em ato antidemocrático

Oficiais-generais ouvidos pelo 'Estado' dizem que Forças Armadas são instituições permanentes, que servem ao Estado brasileiro, e não ao governo

Tânia Monteiro | O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA - A presença do presidente Jair Bolsonaro na manifestação em frente ao Quartel General do Exército contra o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF), na tarde deste domingo, provocou um "enorme desconforto" na cúpula militar. Ao Estado, oficiais-generais destacaram que não se cansam de repetir que as Forças Armadas são instituições permanentes, que servem ao Estado Brasileiro e não ao governo.

Na avaliação dos generais ouvidos pelo Estado, o protesto que chegou a pedir intervenção militar não poderia ter ocorrido em lugar pior. “Se a manifestação tivesse sido na Esplanada, na Praça dos Três Poderes ou em qualquer outro lugar seria mais do mesmo”, observou um deles. “Mas em frente ao QG, no dia do Exército, tem uma simbologia dupla muito forte. Não foi bom porque as Forças Armadas estão cuidando apenas das suas missões constitucionais, sem interferir em questões políticas.”

Eles observaram que a presença de Bolsonaro em frente ao QG teve outra gravidade simbólica. Pela Constituição, o presidente da República é também o comandante em chefe das Forças Armadas. Mesmo com cuidados para evitar críticas diretas, os generais ressaltaram que o gesto foi uma “provocação”, “desnecessária” e “fora de hora”.

À reportagem, os generais não esconderam o mal-estar. Afinal, Bolsonaro os deixou em “saia justa”. Chefes militares não podem se pronunciar. O Estado ouviu sete oficiais-generais, sendo cinco do Exército, um da Aeronáutica e um da Marinha. Eles lembraram que o País tem uma “verdadeira guerra” a ser vencida e que não é possível gastar energia com alvos diferentes. Houve quem observasse que o presidente enfrenta “resistências”, inclusive do Congresso, mas todos avaliam que a presença dele na manifestação provocou ainda mais a ira dos representantes do Executivo e do Judiciário.

Governadores e ministros do STF reagem a manifestações apoiadas por Bolsonaro

Presidente confraternizou com manifestantes contra o Congresso, em frente ao Quartel General do Exército

Por Andrea Jubé e Fabio Murakawa | Valor Econômico

BRASÍLIA - Causou repúdio entre ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), governadores, parlamentares e ex-presidentes da República a participação do presidente Jair Bolsonaro ontem em ato de ataques ao Congresso Nacional e a favor da intervenção militar. No Dia do Exército, apoiadores do presidente se aglomeraram no Quartel-General (QG) - sem máscaras e expostos ao coronavírus - para gritar palavras de ordem contra o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e pela edição de um novo AI-5.

Em um discurso inflamado, Bolsonaro avisou que não tem mais espaço para diálogo. “Não queremos negociar nada, queremos é ação pelo Brasil", afirmou, do alto de uma viatura da Polícia Militar. Tossindo muito, com a voz falhando em alguns momentos, o presidente chamou o povo para a briga ao seu lado. "Acabou a época da patifaria, agora é o povo no poder, lutem com o seu presidente".
Sem citar governadores ou prefeitos, que têm mantido o comércio fechado como política para conter a expansão do coronavírus, ele afirmou que fará o que for necessário "para que possamos manter a nossa democracia e garantir o que há de mais sagrado, que é a nossa liberdade".

Discurso de Bolsonaro 'incentiva desobediência' e é 'escalada antidemocrática', dizem políticos

Parlamentares, presidentes de partidos e governadores criticaram discurso feito pelo presidente da República em ato que pedia fechamento do Congresso e intervenção militar

Pedro Venceslau | O Estado de S.Paulo

Lideranças políticas criticaram, neste domingo, 19, o discurso do presidente Jair Bolsonaro em uma manifestação que pedia o fechamento do Congresso e intervenção militar em Brasília. Os políticos classificaram como "grave", "incentivo à desobediência" e "escalada antidemocrática" a atitude de Bolsonaro de ir a um protesto antidemocrático e de incentivar a aglomeração de pessoas.

Na tarde deste domingo, o presidente voltou a descumprir as medidas de isolamento social, provocou aglomeração em frente ao Quartel General do Exército, na capital federal, e se dirigiu aos manifestantes do alto de uma caminhonete. "Eu estou aqui porque acredito em vocês, vocês estão aqui porque acreditam no Brasil. Nós não iremos negociar nada", disse, enquanto a multidão pedia o fechamento do Congresso Nacional, a volta do AI-5 e as Forças Armadas nas ruas.

Líder do Podemos no Senado, o senador Álvaro Dias afirmou que a atitude de Bolsonaro é um "estímulo à desobediência". "Fica difícil aceitar essa transferência de responsabilidade para o Congresso do fracasso do governo federal", afirmou o senador. "A atitude de Bolsonaro hoje (com manifestantes) foi grave. É um estímulo à desobediência. O presidente age como se estivesse em um parque de diversões."

O ex-ministro Bruno Araújo, presidente do PSDB, afirmou que Bolsonaro coloca em risco a democracia e desmoraliza a Presidência: " O presidente jurou obedecer à Constituição brasileira. Ao apoiar abertamente um movimento golpista, ele coloca em risco a democracia e desmoraliza o cargo que ocupa. O povo e as instituições brasileiras não aceitarão".

Roberto Freire, presidente do Cidadania, classificou a atitude de Bolsonaro como uma "escalada antidemocrática". "O STF e o Congresso devem ficar em posição de alerta. O presidente está se aproveitando da pandemia para articular uma escalada anti-democrática. Além de um ato criminoso contra a saúde pública, foi um cirme de responsabilidade apoiar um ato que prega a volta do AI-5 e contra o Congresso e STF".

'Não queremos negociar', diz Bolsonaro em ato pró-golpe

Não queremos negociar nada, diz Bolsonaro em ato pró-intervenção militar diante do QG do Exército

Presidente discursou para apoiadores aglomerados e com bandeiras contra o Congresso e gritos de ataques ao Supremo

Ricardo Della Coletta / Renato Onofre – Folha de S. Paulo

BRASÍLIA - Em cima da caçamba de uma caminhonete, diante do quartel-general do Exército e se dirigindo a uma aglomeração de apoiadores pró-intervenção militar no Brasil, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) afirmou neste domingo (19) que "acabou a época da patifaria" e gritou palavras de ordem como "agora é o povo no poder" e "não queremos negociar nada".

"Nós não queremos negociar nada. Nós queremos ação pelo Brasil", declarou o presidente, que participou pelo segundo dia seguido de manifestação em Brasília, provocando aglomerações em meio à pandemia do coronavírus. "Chega da velha política. Agora é Brasil acima de tudo e Deus acima de todos."

"Todos têm que ser patriotas, acreditar e fazer sua parte para colocar o Brasil no lugar de destaque que ele merece. Acabou a época da patifaria. É agora o povo no poder. Mais que direito, vocês têm a obrigação de lutar pelo país de vocês", afirmou Bolsonaro, que tossiu e levou a mão à boca ao final do discurso.

"O que tinha de velho ficou para trás. Nós temos um novo Brasil pela frente. Todos no Brasil têm que entender que estão submissos à vontade do povo brasileiro", disse. "Contem com o seu presidente para fazer tudo aquilo que for necessário para manter a democracia e garantir o que há de mais sagrado, a nossa liberdade", completou o presidente.

A aglomeração diante do quartel-general do Exército foi o ato final de uma carreata em Brasília, feita pelos apoiadores do presidente e com pedidos de intervenção militar, gritos contra o Congresso e o Supremo Tribunal Federal, e pressão pelo fim do isolamento social recomendado pela OMS contra a pandemia.

A fala de Bolsonaro e sua participação nesse ato em Brasília, no Dia do Exército, provocaram fortes reações no mundo jurídico e político.

O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), disse ser uma “crueldade imperdoável com as famílias das vítimas” pregar uma ruptura democrática em meio às mortes da pandemia da covid-19.

“O mundo inteiro está unido contra o coronavírus. No Brasil, temos de lutar contra o corona e o vírus do autoritarismo. É mais trabalhoso, mas venceremos”, escreveu Maia. “Em nome da Câmara dos Deputados, repudio todo e qualquer ato que defenda a ditadura, atentando contra a Constituição.”

“Não temos tempo a perder com retóricas golpistas. É urgente continuar ajudando os mais pobres, os que estão doentes esperando tratamento em UTIs e trabalhar para manter os empregos. Não há caminho fora da democracia”, afirmou.

O governador João Doria (PSDB) disse ser "lamentável" que o presidente "apoie um ato antidemocrático, que afronta a democracia e exalta o AI-5". O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) também chamou de "lamentável" a participação de Bolsonaro. "É hora de união ao redor da Constituição contra toda ameaça à democracia."

Bolsonaro faz apelo golpista e coloca Forças Armadas em saia justa

Governadores veem ensaio de golpe sem apoio pelo presidente, isolado na crise do coronavírus

Igor Gielow – Folha de S. Paulo

SÃO PAULO - A demonstração de apoio do presidente Jair Bolsonaro a uma manifestação que pedia intervenção militar e "um AI-5" na frente do quartel-general do Exército fez a crise política inserida na pandemia do coronavírus subir de patamar.

Como se isso fosse possível, notou um governador de populoso estado ainda no princípio do embate com a Covid-19. A agressividade estava na conta, mas Bolsonaro ainda consegue chocar alguns, a começar por integrantes da cúpula militar da ativa que trocaram mensagens durante o domingo (19).

A escolha minuciosa do local e da data, o Dia do Exército, colocou as Forças Armadas ante um impasse que juravam querer evitar desde que pactuaram apoio tácito ao pleito presidencial de Bolsonaro no segundo turno de 2018. Agora, os fardados terão de se posicionar sobre as intenções de seu comandante nominal.

Bolsonaro foi claro em sua fala: quer uma ruptura ao estilo Hugo Chávez, de "povo no poder", desde que, claro, o poder seja exercido por ele. Olimpicamente isolado dos outros Poderes, seus instrumentos para tal missão são parcos.

Congresso, apesar dos planos mirabolantes de atração do centrão decantados, está fora de alcance. O Supremo Tribunal Federal, que não engole a família Bolsonaro direito desde que o filho Eduardo chutou a necessidade de um "cabo e um soldado" para fechá-lo, idem.

Fritar de forma desastrada Luiz Henrique Mandetta no Ministério da Saúde só levou a outros titulares da Esplanada a certeza de que o próximo poderá ser um deles ou delas.

Logo, nada mais natural que dobrar seu apelo aos militares que, aos poucos, aceitaram serem abduzidos para dentro de seu governo na crença de que poderiam ditar os rumos de um capitão que saiu pelas portas dos fundos do Exército no fim dos anos 1980, insubordinado nato que era.

Para um general ouvido, o presidente apenas quis tensionar o ambiente em um momento de fragilidade, conforme seu estilo. Para o oficial, da cúpula da ativa, as Forças Armadas não farão nada que fira seu papel constitucional.

STF, Congresso e governadores repudiam Bolsonaro

Presidente esteve em ato no qual apoiadores pediam afrouxamento de medidas contra a Covid-19, o fechamento do Congresso e do Supremo e um novo AI-5; ex-presidente Fernando Henrique Cardoso classifica atitude como 'lamentável'

João Paulo Saconi e Natália Portinari | O Globo

RIO e BRASÍLIA - A presença do presidente JairBolsonaro em um protesto em frente ao Quartel General do Exército, em Brasília, gerou reações de autoridades ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e parlamentares . No ato, os manifestantes utilizaram cartazes e gritos de ordem para expressar demanda inconstitucionais, como uma intervenção militar, o fechamento do Congresso e do STF e um novo AI-5, ato que marcou o início da fase mais violenta da ditadura militar. Entre os principais pedidos estava também a retomada de atividades econômicas não-essenciais, interrompidas por prefeitos e governadores como forma de combater o avanço do novo coronavírus.

O incômodo com o episódio ficou evidente em mensagens publicadas nas redes sociais pelos ministros do Supremo Marco Aurélio Mello e Luis Roberto Barroso, recém-eleito para presidir o Superior Tribunal Eleitoral (TSE). Também se manifestaram o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e o governador João Doria (SP). Houve ainda falas de senadores — incluindo Randolfe Rodrigues (REDE-AC), líder da oposição no Senado — e deputados. O PSDB, partido de FH e Doria, se expressou por meio de nota assinada pelo presidente da sigla, Bruno Araújo.

Além de ter se encontrado com os manifestantes, que estavam aglomerados e contrariavam recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) e do próprio Ministério da Saúde, Bolsonaro discursou para eles e depois reproduziu imagens da reunião nas redes sociais.

O ministro Marco Aurélio disse ao GLOBO que o ato é uma atitude de "saudosistas inoportunos":

— Tempos estranhos! Não há espaço para retrocesso. Os ares são democráticos e assim continuarão. Visão totalitária merece a excomunhão maior. Saudosistas inoportunos. As instituições estão funcionando.

Barroso publicou duas mensagens no Twitter nas quais classificou o traço autoritário do movimento como "assustador" e afirmou que "pessoas de bem e que amam o Brasil" não desejam o retorno do estado de exceção vivido entre as décadas de 1960 e 1980.

"É assustador ver manifestações pela volta do regime militar, após 30 anos de democracia. Defender a Constituição e as instituições democráticas faz parte do meu papel e do meu dever. Pior do que o grito dos maus é o silêncio dos bons (Martin Luther King). Só pode desejar intervenção militar quem perdeu a fé no futuro e sonha com um passado que nunca houve. Ditaduras vêm com violência contra os adversários, censura e intolerância. Pessoas de bem e que amam o Brasil não desejam isso", escreveu Barroso.

O que a mídia pensa - Editoriais

• Bolsonaro ultrapassa limites e desafia o estado de direito – Editorial | O Globo

Contrário ao isolamento social, presidente vai a manifestação em que é defendido golpe militar

O presidente Bolsonaro tem feito jus à biografia de um político radical que construiu a carreira na bancada do baixo clero na Câmara sem nunca ter se preocupado em se distanciar do lado mais escuro da ditadura militar. Eleito legitimamente presidente da República, Jair Bolsonaro tem sido coerente com seu passado e, à medida que se sente legalmente tolhido a praticar um enfrentamento sem base científica da epidemia da Covid-19, radicaliza, tendo chegado a um ponto perigoso ontem, ao participar de manifestação em Brasília em que se pregou golpe militar.

Bolsonaro foi além do desrespeito a indicações dos especialistas para se evitar a propagação do vírus, o que tem feito com sistemática há semanas, contra a posição do então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, e agora do seu substituto, Nelson Teich, que acertadamente tenta montar um sistema de aferição da evolução da epidemia, para que sejam tomadas decisões bem fundamentadas, e não como deseja Bolsonaro, preocupado apenas com seu futuro político, e não com a saúde da população.

Poesia | Pablo Neruda - O teu riso

Tira-me o pão, se quiseres,
tira-me o ar, mas não
me tires o teu riso.

Não me tires a rosa,
a lança que desfolhas,
a água que de súbito
brota da tua alegria,
a repentina onda
de prata que em ti nasce.

A minha luta é dura e regresso
com os olhos cansados
às vezes por ver
que a terra não muda,
mas ao entrar teu riso
sobe ao céu a procurar-me
e abre-me todas
as portas da vida.

Meu amor, nos momentos
mais escuros solta
o teu riso e se de súbito
vires que o meu sangue mancha
as pedras da rua,
ri, porque o teu riso
será para as minhas mãos
como uma espada fresca.

À beira do mar, no outono,
teu riso deve erguer
sua cascata de espuma,
e na primavera , amor,
quero teu riso como
a flor que esperava,
a flor azul, a rosa
da minha pátria sonora.

Ri-te da noite,
do dia, da lua,
ri-te das ruas
tortas da ilha,
ri-te deste grosseiro
rapaz que te ama,
mas quando abro
os olhos e os fecho,
quando meus passos vão,
quando voltam meus passos,
nega-me o pão, o ar,
a luz, a primavera,
mas nunca o teu riso,
porque então morreria.