Está
faltando clareza, equilíbrio e autocrítica entre os atacantes e os defensores
da Lava-Jato
Em português claro, o que o procurador-geral Augusto Aras quer é
controlar o Ministério Público. Nisso difere de antecessores apenas quanto à
estridência da exposição do propósito. O desejo de controle é inerente à
designação de “chefe”. No caso do MP, são muitas as atribuições da chefia,
entre as quais, como sabemos, não se inclui a ingerência sobre o trabalho dos
procuradores, cuja autonomia está garantida na Constituição.
Portanto, a menos que Augusto Aras se dispusesse à empreitada de
mudar a lei para tornar os procuradores subordinados ao chefe, trata-se de uma
aspiração de realização impossível. Talvez hoje uma ideia dessa natureza até
encontrasse respaldo no Congresso, mas não passaria pelo crivo da sociedade, em
nome de quem o Ministério Público exerce defesa.
Tanto o procurador-geral tem perfeita noção de quanto os
cidadãos já incorporaram esse valor que, a exemplo do homem que pode tornar
realidade seu desejo (este, sim, exequível) de vir a integrar o Supremo
Tribunal Federal, deu uma baixada no tom da agressividade com que vinha se
relacionando com seus pares. Pegou mal a explosão de temperamento numa reunião virtual
com procuradores, em contraposição à camaradagem exibida dias antes em situação
semelhante, só que com advogados que dela saíram dizendo-se “de alma lavada”.
Aras amenizou, mas não desligou o lança-chamas com o qual partiu
para cima dos colegas, usando como alvo a operação Lava-Jato. Hábil na
administração de relações, desde a utilitária com Jair Bolsonaro até a
fraternidade de raiz petista com o senador e ex-governador de sua Bahia natal,
Jaques Wagner, o procurador certamente notou que, em reação a suas ações, houve
um recuo nas críticas à Lava-Jato. Defensores da operação saíram da toca e até
detratores mais amenos reivindicaram reconhecimento aos benfeitos originados em
Curitiba.
Passo atrás reforçado pela decisão do ministro Edson Fachin de
revogar o compartilhamento de dados permitido por Dias Toffoli durante o
plantão do recesso judicial. Embora o clima não favoreça otimismos, o bom senso
seria bem atendido se não prevalecesse a lógica de torcidas num caso bastante
complexo como esse. Há razões de parte a parte e devem ser vistas sob a óptica
fria da parcimônia.
Isso a fim de que não se termine por reduzir Augusto Aras a um
agente do ódio petista por Sergio Moro e companhia, a serviço temporário dos
interesses de Bolsonaro, nem se caminhe para “cancelar” (nos sentidos judicial
e das regras das redes sociais) o extraordinário desmonte do esquema de
corrupção na Petrobras e adjacências.
Gente que conhece bem o MP porque já fez parte dele e até a
altura do quarto ano de funcionamento da Lava-Jato era entusiasta “dos meninos”
parte do princípio de que o atrito tem um lado positivo: expõe à luz as
internas de uma instituição devedora de contas à sociedade. Até mais que
outras, por ser sua defensora.
Isto posto, registre-se a existência indubitável de excessos
decorrentes do acúmulo de poder, em larga medida sustentado no apoio
praticamente unânime da população. Daí resultaram evidentes vedetismos, a
partir dos quais a operação abriu flancos para questionamentos. Dos pontos
fracos aproveitaram-se os atingidos pela mudança de meios e modos no trato da
corrupção (iniciada lá atrás, no processo do mensalão), mas não só.
Suscitaram também questões pertinentes relativas à extensão dos
trabalhos, aos métodos de investigação, à observância de limites legais e à concentração
de todas as atenções no combate à corrupção, como se fosse essa a única
atribuição do Ministério Público. Isso tudo leva a um ponto crucial:
cometeram-se injustiças, há inocentes condenados? Sofreu grave agressão do
estado de direito?
Augusto Aras não contribui para esses esclarecimentos quando
lança suspeição sobre a Lava-Jato sem dizer exatamente a que se refere. É de
acreditar que tenha provas, pois sem um trunfo substantivo não se lançaria ao
combate com tanta força. Os procuradores tampouco colaboram quando se limitam a
reagir como meras vítimas de ofensiva malsã, recusando-se a admitir que possam
ter ocorrido impropriedades e até irregularidades.
Se, como diz, o procurador-geral quer “corrigir rumos”, que seja
claro ou mantenha reserva se ainda não tem condições de pôr à mesa as cartas
que porventura tenha. Agindo como está, atua no mesmo diapasão que condena de
aniquilamento de reputações. Além de dar a impressão de que reage, acossado, a
uma corporação que não o reconhece como líder e muito menos como chefe.
Publicado em VEJA de 12 de agosto de 2020, edição nº 2699