domingo, 30 de agosto de 2020

Luiz Carlos Azedo - A derradeira estação

- Nas entrelinhas | Correio Braziliense

“A corrupção endêmica no Rio de Janeiro tem uma dimensão cultural que precisa ser levada em conta, por causa da glamurização da ética da malandragem”

Escrevo a coluna com o som na caixa. Chico Buarque canta Estação Derradeira, na qual glamuriza com afeto e poesia as mazelas do Rio de Janeiro: “Rio de ladeiras/ Civilização encruzilhada/ Cada ribanceira é uma nação”. A imagem de São Sebastião, o santo padroeiro da cidade, é invocada para sintetizar o sofrimento e a esperança, como nas paliçadas ao pé do Morro Cara de Cão, na Urca, na qual Estácio de Sá e os paulistas, com apoio do cacique Araribóia, em 1º de março de 1565, fundaram a cidade para expulsar os calvinistas franceses e seus aliados tamoios. Sobe o som: “São Sebastião crivado/ Nublai minha visão/ Na noite da grande/ Fogueira desvairada/ Quero ver a Mangueira/ Derradeira estação.”

A música não me saía da cabeça desde a notícia do afastamento do governador Wilson Witzel e a prisão de seus aliados por corrupção, entre eles o Pastor Everaldo, presidente do PSC. Não vou repetir o que já se sabe: mais um governo atolado no mangue da corrupção. Entretanto, para quem quiser saber como tudo isso começou, recomendo o romance de Manuel Antônio de Almeida, Memórias de um Sargento de Milícias, que retrata a vida do Rio de Janeiro no início do século XIX, com a chegada de D. João VI e sua Corte. A história foi publicada anonimamente, em folhetim, ou seja, em capítulos semanais, no Correio Mercantil, entre junho de 1852 e julho de 1853. O nome do autor foi revelado apenas na terceira edição em livro, póstuma, em 1863.

Personagens populares são os grandes protagonistas do romance, movidos por duas forças de tensão, a ordem e a desordem, características profundas da sociedade colonial da época, que se mantêm até hoje. O major Vidigal e sua comadre, dona Maria, pertencem ao lado da ordem, porém, nada têm de retidão, apenas estão em uma situação social mais estável. A desordem é representada pelo malandro Teotônio, o sacristão da Sé e Vidinha. Entretanto, todos transitam de um pólo para o outro, em momentos de acomodação.

Mas voltemos à crise do Rio de Janeiro, que muitos atribuem à transferência da capital para Brasília e/ou à fusão da antiga Guanabara com o Estado do Rio de Janeiro. Essa é uma visão nostálgica, embora tenha a ver com a crise estrutural do estado. De fato, a transferência da capital esvaziou política e economicamente a antiga Guanabara. Entretanto, a fusão dos dois estados foi feita exatamente para compensar essas perdas, pois o projeto do presidente Ernesto Geisel, no regime militar, era fazer do Rio de Janeiro a capital do setor produtivo estatal, que rivalizaria com São Paulo, pois concentrava as sedes da maioria das empresas estatais. O colapso do modelo de capitalismo de Estado dos militares, porém, pôs o Rio a perder. Era um erro de conceito, abatido pela crise do petróleo e pela falta de capacidade de financiamento do Estado brasileiro.

Merval Pereira - O julgamento

- O Globo

Ao ler que Cristiano Zanin, o advogado do ex-presidente Lula, está cobrando do Supremo Tribunal Federal (STF) uma decisão “o mais breve possível” sobre o habeas-corpus que pede a suspeição do ex-juiz Sérgio Moro nos julgamentos que condenaram Lula, sendo notório que a Segunda Turma está desfalcada do ministro Celso de Mello por questões de saúde, fiquei com a sensação de que o advogado está querendo aproveitar-se da circunstância para conseguir a anulação das condenações.

É sabido que dois ministros da Segunda Turma, Edson Fachin e Carmem Lucia, já votaram a favor de Moro, restando agora apenas mais dois votos, os de Gilmar Mendes e Lewandowski, que já deram indicações do que pensam ao anular um julgamento de anos atrás no processo do Banestado, considerando Moro parcial.

O frequente empate na Segunda Turma tem favorecido os réus, como manda a jurisprudência, e Zanin está disposto a aproveitar essa brecha para, enfim, conseguir anular as condenações de Lula, o que o tornaria novamente ficha-limpa, permitindo que se candidate à presidência em 2022.

Lembrei-me, então, de uma palestra que o escritor Deonísio da Silva fez num ciclo sobre Guimarães Rosa da Academia Brasileira de Letras (ABL) em 2018, sob o título “O julgamento de Zé Bebelo e a Lava-Jato”, sobre o romance “Grande Sertão, Veredas”. Deonísio Silva compara Lula a Zé Bebelo e Moro a Joca Ramiro:

Bernardo Mello Franco - Witzel, o Breve

- O Globo

Ao assumir o governo do Rio, Wilson Witzel anunciou que era “chegada a hora de libertar o estado da irresponsabilidade e da corrupção”. Um ano e oito meses depois, chegou a hora de o estado se libertar dele. O ex-juiz foi afastado do cargo, acusado de comandar uma organização criminosa no Palácio Guanabara.

A decisão do ministro Benedito Gonçalves, do Superior Tribunal de Justiça, situou Witzel no topo de uma quadrilha que embolsava verbas da saúde. Segundo o Ministério Público, “o grupo criminoso agiu e continua agindo, desviando e lavando recursos em plena pandemia”. O ex-secretário Edmar Santos, preso em julho, delatou o chefe e os comparsas.

Os investigadores afirmam que a quadrilha fraudou compras de respiradores e contratos com organizações sociais. Os resultados foram visíveis: o governo prometeu construir sete hospitais de campanha, mas só inaugurou dois. O Rio já perdeu 16 mil vidas para o coronavírus.

Eleito com discurso moralista, o ex-juiz foi acusado de replicar o esquema que levou Sérgio Cabral para a cadeia. O procurador Eduardo El Hage, que investigou os dois governadores, disse ter se sentido num “túnel do tempo”. O enredo se repetiu em detalhes, incluindo a lavagem de dinheiro no escritório de advocacia da primeira-dama.

Vera Magalhães - Corrida da toga

- O Estado de S.Paulo

Vale tudo em nome das cadeiras que vão vagar no Supremo Tribunal Federal

Com o protagonismo ainda maior adquirido pelo Supremo Tribunal Federal em tempos de revisão da Lava Jato e de freios nos arreganhos autoritários de Jair Bolsonaro, foi desencadeada uma bizarra corrida pelas duas cadeiras de ministros que vão vagar no intervalo de um ano. Vale tudo para demonstrar lealdade ao presidente e ser digno da canetada da sua Bic.

Pelo menos três atores têm sido pródigos em mostrar serviço na expectativa de serem premiados com a cobiçada toga. A briga pelos lugares dos “Mellos”, Celso e Marco Aurélio, tem produzido decisões em que o direito é torcido e retorcido, com graves consequências políticas e institucionais.

O procurador-geral da República, Augusto Aras, nomeado por Bolsonaro ao arrepio da lista tríplice e à revelia dos seus pares, é um deles. A última da PGR sob seu comando foi produzida pelo seu vice, Humberto Jacques de Medeiros: o parecer favorável ao foro privilegiado retroativo para Flávio Bolsonaro no caso Fabrício Queiroz.

Medeiros também tem expectativas com a “corrida da toga”: se for Aras o agraciado agora em novembro, são grandes as chances de Bolsonaro designá-lo para o seu lugar.

O fundamento para aliviar a barra de Flávio contrasta com o que o próprio Medeiros usou em outra recente decisão polêmica: a de que requisitar documentos da Lava Jato de Curitiba. Agora ele argumentou que Flávio pode ter seu caso levado para o TJ do Rio porque a decisão do STF em contrário não era vinculante. Na outra, pegou um precedente aleatório para justificar a requisição de dados, sem evocar a necessidade de “aderência”. Um direito para cada ocasião.

Eliane Cantanhêde - Legalidade sempre!

- O Estado de S.Paulo

Afastamento de Witzel por decisão monocrática e sem ouvi-lo acende luz amarela entre governadores

O Ministério Público acertou ao investigar e descobrir maracutaias justamente na área de saúde no Rio de Janeiro, mas o Superior Tribunal de Justiça (STJ) errou ao decidir monocraticamente o afastamento do governador Wilson Witzel por 180 dias, sem nem sequer ouvir o que ele tem a dizer sobre as acusações, feitas a partir de uma delação premiada. Combater a corrupção, sim, mas abrir um precedente perigoso contra governadores, não. Por isso, o julgamento de terça-feira no plenário do STJ é tão importante.

Desde sexta-feira, há intensa troca de telefonemas e mensagens entre governadores, para analisar a situação e a operação que pegou Witzel de jeito. Ninguém defende Witzel, até porque eles não viram o processo e não conhecem as provas, mas todos defendem ferrenhamente a legalidade. Que o MP investigue e faça o que tem de fazer e que a Justiça decida, julgue, puna. Mas um único ministro afastar um governador eleito? Sem dar a ele acesso às acusações? Sem ouvi-lo?

Se hoje é Witzel, amanhã pode ser qualquer um. Há motivos para a preocupação. Na fatídica reunião ministerial de 22 de abril, a ministra Damares Alves disse, em bom e alto som, que estava tudo pronto para pedir a prisão de governadores e prefeitos. A deputada bolsonarista Carla Zambelli, do PSL, sabia de véspera das primeiras buscas e apreensões contra Witzel. O senador Flávio Bolsonaro avisou com antecedência que o vice-governador assumiria. Witzel lembrou que a subprocuradora-geral Lindôra Araújo é bolsonarista e amiga de Flávio. Amigo do meu inimigo é meu inimigo?

Sergio Fausto* - A voz mansa de Djalma Marinho

- O Estado de S.Paulo

Suspeito que ele ficaria vexado pela proximidade política do neto com um político como Bolsonaro

O ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, é um político competente e estrela em ascensão no atual governo. Com dois mandatos de vereador em Natal e outros dois de deputado federal pelo Rio Grande do Norte, além de cargos importantes no Executivo estadual e federal, não lhe faltam experiência nem DNA: é neto de Djalma Marinho, político potiguar que se destacou na Câmara dos Deputados por mais de três décadas na segunda metade do século 20. O avô de Rogério Marinho não conseguiu se eleger governador de seu Estado, como agora pretende o neto, mas sua biografia revela um tipo de político cada vez mais raro no Brasil: um liberal-conservador culto e educado, que se manteve coerente com suas principais convicções ao longo de 40 anos de vida pública.

Filiado a um único partido entre 1945 e 1964, a UDN, aderiu à Arena quando da imposição do bipartidarismo. Embora membro do partido situacionista, não hesitou em levantar a sua voz mansa contra as piores arbitrariedades do regime autoritário.

Foi assim na conjuntura dramática que levaria à decretação do AI-5, em dezembro de 1968. Presidente da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, não se dobrou à pressão dos militares que pretendiam processar Márcio Moreira Alves por discurso supostamente afrontoso à honra das Forças Armadas. Com críticas ao governo pela repressão a manifestações estudantis, o parlamentar fluminense conclamara os pais a não autorizarem seus filhos a desfilar no 7 de Setembro e às moças, a não dançarem com os cadetes no baile da Independência.

Em audiência com o então presidente Costa e Silva, Djalma Marinho anunciou que a comissão negaria a licença solicitada pelo Ministério da Justiça para instaurar processo contra o deputado, que gozava de imunidade parlamentar para expressar livremente a sua opinião. Buscou encontrar alternativas para o impasse. Diante da intransigência do general-presidente, fez discurso corajoso da tribuna da Câmara em que se disse um “vassalo da ordem democrática”, recusando-se a cumprir “exigências absurdas”.

Elio Gaspari - A caótica fritura de Paulo Guedes

- Folha de S. Paulo / O Globo

Como superministro, ele foi uma invenção marqueteira

O “Posto Ipiranga” entrou num humilhante processo de fritura. Felizmente, essa figura nunca existiu. Se existisse, o perigo seria enorme, pois é impossível fritar um posto de gasolina. Pode-se explodi-lo, mas o quarteirão vai junto. Paulo Guedes como superministro foi uma invenção marqueteira, que jamais ficou em pé. O doutor acumulou poderes sem ter um projeto viável, acreditou na própria lenda, achou que estava chegando ao paraíso, confiou em velhos truques e em menos de dois anos deu-se conta de que é o presidente quem manda.

Quando Bolsonaro mandou ao lixo seu projeto para o Renda Brasil, deu-lhe uma lição: “Não posso tirar dos pobres para dar para paupérrimos”. Na mosca, pois era isso que Guedes propunha, tirar recursos do abono que beneficia 23 milhões de pessoas com renda inferior a dois salários mínimos, para quem não tem nem isso.

Essa foi a boa notícia. A má é que Paulo Guedes vem sendo perseguido por outro fantasma marqueteiro, chamado “Pró-Brasil”. Ele apareceu intitulando-se um “Plano Marshall” para o país. Era coisa de quem não sabia o que foi o plano de recuperação econômica da Europa depois da Segunda Guerra Mundial.

Piorando, é também coisa de quem não sabe o que quer, além do elementar avanço sobre a bolsa da Viúva. Nesse bloco brilha o ministro Rogério Marinho. Quando ele estava na ekipekonômica de Guedes, defendeu a taxação compulsória das pessoas que recebem auxílio-desemprego. Não se tratava de tirar do pobre para dar ao paupérrimo, mas de tirar de quem está sem trabalho para reforçar a caixa do governo.

Hélio Schwartsman - A arte de envenenar

- Folha de S. Paulo

Por aqui prefere-se a arma de fogo; na Rússia, o envenenamento

Aqui nas Américas, a gente nem pestaneja. Se você quer eliminar um desafeto, a etiqueta praticamente obriga ao uso de uma arma de fogo, mas outros povos têm outras preferências. Os russos, por exemplo, gostam de venenos. A vítima mais recente, o blogueiro oposicionista Alexei Navalni, que segue internado num hospital de Berlim, foi, ao que tudo indica, submetido a altas doses de um inibidor de colinesterase.

Qual tradição é melhor? Difícil dizer, mas, se você se interessa pelo assunto, uma boa pedida é "The Royal Art of Poison" (a real arte de envenenar), de Eleanor Herman. Durante a maior parte da história da Europa, sempre que um membro de família real ou da elite política morria jovem, a suspeita de envenenamento se impunha. Algumas vezes, a morte era mesmo obra de um rival. Os italianos eram proverbialmente bons nisso. Florença e Veneza tinham fábricas estatais para desenvolver venenos e antídotos, que testavam em prisioneiros.

Janio de Freitas - A Folha no Erramos

- Folha de S. Paulo

Relações entre jornais e leitores são repletas de equívocos, de parte a parte

O jornalismo das últimas décadas, entre nós, vem fechando olhos e ouvidos para o leitor, cada vez mais. Com a consequência automática de tiragens em permanente queda livre e apelo ilusório à soma das versões impressas e digital, para socorrer os slogans. Na própria soma, está uma prova do descaso, que lhe deu o preguiçoso nome de audiência, referente a nada mais do que audição, captação de sons.

Da parte dos leitores, os equívocos vêm, em grande parte, de insatisfações e indignações que se retroalimentam porque, aqui, o jornalismo não se ocupa da imprensa como notícia normal. Um caso exemplar se tornou, na Folha, tabu que assumo a responsabilidade de romper, como outros que este jornal no passado me permitiu desrespeitar.

Trata-se do empréstimo, não sei se apenas episódico, de veículos da Folha à repressão na ditadura. Desde a redemocratização, essa colaboração substantiva e indigna é uma tinta pegajosa e indelével lançada contra a Folha, com justos motivos. Como sentença moral restaurada a cada atitude reprovável por determinados segmentos leitores.

À Folha não falta soberba, mas não vem daí a falta de explicação satisfatória para o erro. A impessoalidade do jornal e o seu silêncio levaram o ônus aos dois controladores da empresa, Octavio Frias e Carlos Caldeira Filho.

O primeiro, incumbindo-se sobretudo da atividade editorial; o outro, voltado mais para setores administrativos. A Caldeira credita-se a criação e comando de um modelar serviço de transporte e entrega de jornais, incomparável na imprensa brasileira da época, pela modernidade e dimensão da frota. Da qual saíram os veículos para o serviço sórdido.

Ricardo Noblat - A inteligente jogada de Bolsonaro de concluir obras dos outros

- Blog do Noblat | Veja

Para chamá-las de suas

Um pouco por toda parte, mas aqui com toda certeza, está para nascer o político que reconheça os méritos e exalte as obras legadas pelos que o antecederam no cargo.

Getúlio Vargas, o estadista, foi o que mais fez pelo país ao seu tempo. Mas como foi também um ditador, e não existe ditador bonzinho, pega mal elogiá-lo.

Juscelino Kubistchek, o rei da simpatia, redescobriu parte do país esquecido e o seu governo coincidiu com o tempo em que o brasileiro sentiu orgulho – da música ao futebol, Brasília incluída.

Mas Jânio Quadros, que sucedeu a Juscelino, não esperou acabar o dia de sua posse para criticá-lo duramente. Foi um fenômeno eleitoral que vivia de porre e não aguentou governar seis meses.

À falta de obras para chamar de suas porque lhe falta um projeto para o país, Bolsonaro pretende inaugurar ainda este ano 33 obras, a maioria começada em governos passados.

Das 33, 25 planejadas por Lula e Dilma, duas por Temer e seis da atual administração, mas que ainda mal se arrastam. Claro, para que isso seja possível, precisa combinar com o dinheiro escasso.

Dirão os adversários de Bolsonaro, e com razão: ele vai se apropriar de coisas dos outros, e sequer dirá que procede assim. De fato, essa é a ideia dele, inteligente por sinal. Mas, e daí?

Se não concluísse as obras só porque elas tiveram início em governos anteriores, dele se diria que é um político mesquinho, irresponsável, que preferiu pará-las a tocá-las em frente.

O país só tem a ganhar com a continuidade de obras desde que vitais para seu desenvolvimento. Não importa o que esconda a verdadeira intenção de Bolsonaro com isso.

Dorrit Harazim - Trump coroado

- O Globo

O país real ficou de fora do seu discurso e do Jardim da Casa Branca

Leonard Cohen fez bem em morrer na véspera da eleição de Donald Trump em 2016. Deixou um vasto tesouro feito de palavras e música, entre elas a sublime “Aleluia”, canção-reflexão sobre amor e perda, espiritualidade e empatia. Muito da força desse hino à humanidade está no que ele deixa em aberto para interpretações múltiplas do que é ser, do que é viver. Difícil imaginar que Trump tenha sido fã do compositor canadense. Mais difícil ainda cogitar que Cohen algum dia se resignaria ao triunfo trumpista. Daí a vilania da rasteira post-mortem dada no artista por ocasião do festão de quinta-feira na Casa Branca: “Aleluia” foi entoada duas vezes, sem autorização dos herdeiros, na coroação do presidente-candidato à reeleição em novembro próximo. Nada transcendental, apenas um detalhe da grosseria em tudo o que leva a logomarca Trump.

Na cerimônia de encerramento da Convenção Republicana faltou apenas rebatizar o partido para Trump Party. De resto —da apropriação da Casa Branca como imobiliário do ocupante aos fogos de artifício proclamando “Trump 2020” sobre o Monumento a Washington —, o evento todo foi de adulação personalista. Nos jardins da “casa do povo americano” haviam sido plantadas 1.500 cadeiras para familiares e servidores públicos, não por servirem ao Estado, mas por serem servos de Trump. E, ao final de quatro dias de elegias, coube ao entronizado apresentar a sua versão fantasia de si mesmo. 

Foi um discurso de 70 minutos que arrebatou a plateia. Mesclando fatos e ficção, o presidente proclamou-se predestinado guardião da Constituição e acenou com um futuro de grandeza nacional. Sobretudo, Trump incitou medo, recurso de eficácia comprovada em tantas eleições mundo afora. Richard Nixon disse o essencial em 1968 ao conquistar a Casa Branca: “As pessoas reagem a medo, não a amor. Ninguém aprende essas coisas em aula de catecismo, mas a verdade é essa.”

Affonso Celso Pastore* - EUA, Europa e Brasil

- O Estado de S. Paulo

Há muitas razões para que os brasileiros analisem atentamente o comportamento da economia norte-americana

Há muitas razões para que os brasileiros analisem atentamente o comportamento da economia norte-americana. Ciclos econômicos nos EUA afetam a economia mundial; a guerra comercial contra a China iniciada por Trump interfere com o Brasil devido às relações comerciais que mantemos com ambos; e, acima de tudo, o mercado financeiro centrado em Nova York, interage intensamente com a economia brasileira, afetando direta e indiretamente o seu comportamento. De um modo geral, temos muito a aprender com os EUA, mas não com a sua reação à pandemia e às suas consequências na política monetária. Neste caso, ganharíamos muito mais se prestássemos a devida atenção ao que vem ocorrendo na Europa.

Enquanto o governo dos EUA optou pela negação da pandemia, os vários governos europeus impuseram desde logo um rígido lockdown, que derrubou o contágio e permitiu o início mais rápido de uma cuidadosa reabertura, que favoreceu o bem estar de suas populações.

Como o PIB é uma medida imperfeita de bem-estar, não reflete o ganho devido ao já quase pleno retorno à livre movimentação dos europeus. Porém, acima de tudo, a boa reação europeia no campo sanitário levou a uma utilização bem menos intensa de estímulos monetários. De fato, o BCE vem gerando uma expansão de seu ativo significativamente menor do que a do Fed, e a maior preocupação dos governos europeus é com o “futuro do euro”, para cuja consolidação, na última reunião do Conselho Europeu, foi aprovado um fundo de recuperação de € 750 bilhões, com € 390 bilhões na forma de subvenções e € 360 bilhões em empréstimos. Os europeus reagiram racionalmente à pandemia; foram prudentes na política monetária, e apesar da oposição dos países “frugais” procuraram exorcizar o fantasma de uma nova versão do Brexit, defendendo a moeda única e a cooperação entre os países do bloco.

Míriam Leitão - Escolhas trágicas na economia

- O Globo

O tumulto da sexta-feira com o afastamento do governador Wilson Witzel ajudou a afastar a atenção da área econômica, que vivia o constrangimento de um ultimato dado pelo presidente para ter em mãos o novo Renda Brasil. Foi mais uma semana ruim para o ministro Paulo Guedes. No mercado, a dúvida sobre a sua permanência; no Ministério, a corrida atrás do dinheiro para cumprir outra ordem do presidente: ter recursos para as obras dos ministros Tarcísio Freitas e Rogério Marinho. Por isso a verba do combate ao desmatamento e aos incêndios quase foi usada para outros fins.

A pasta do Meio Ambiente, como se sabe, é ocupada por um inimigo do meio ambiente. É do seu feitio sabotar as ações dos órgãos de fiscalização, ou não dar os meios para que as missões se realizem. O Ministério da Economia conseguiu fazer Ricardo Salles parecer um ambientalista. Na sexta-feira, o MMA comunicou que estava suspendendo 100% das ações porque o dinheiro do Ministério fora congelado. Com o susto, o orçamento foi descongelado, e restou ao vice-presidente dizer que Salles havia se precipitado.

Os dias têm sido pesados na área ambiental. Estudos mostram o avanço do desmatamento, e o efeito da queimada na saúde humana. O movimento das empresas e bancos contra essa deterioração tem crescido. No exterior, as notícias confirmam os temores dos investidores. O vice-presidente Hamilton Mourão vinha ouvindo com atenção os empresários, executivos, banqueiros e administradores de fundos. Mas mostrou na quinta-feira que, se ouviu, não entendeu. Segundo ele, os 24 mil focos de incêndio em um mês na Amazônia são “agulha no palheiro”. A notícia de que o Brasil tiraria a verba do combate ao desmatamento e incêndio seria arrasadora.

Vinicius Torres Freire – Brasil, o buracão do futuro

- Folha de S. Paulo

Brasil vai cair no buracão, pois verba de investimento míngua a cada ano; dinheiro para obra nova praticamente não há

O vice-presidente Hamilton Mourão disse, em outras palavras, que o ministro Ricardo Salles (Meio Ambiente) mente ou é incapaz de ler uma planilha do governo. É mais um sintoma da baderna do governo e um exemplo da mixórdia orçamentária, que vão levando o país para o buraco.

Na sexta-feira (28), Salles anunciara o cancelamento dos trabalhos restantes de combate à destruição da Amazônia. Teria sido informado pelo Ministério da Economia de que os ministros-generais do Planalto haviam decidido que ele perdera a verba para apagar incêndios. Mourão disse que não era nada disso, que o ministro criara caso à toa e que mandara Salles pensar no que havia feito, não se sabe se ajoelhando no milho.

Essa turumbamba se deve a uma disputa por R$ 60,7 milhões, a verba que, sabe-se lá, teria sido tirada do Meio Ambiente. Esse dinheiro equivale a 0,004% do Orçamento de R$ 1,48 trilhão do governo federal (excluídos os gastos extraordinários com a pandemia).

Salles foi uma brasinha soprada pelo esquecido Geraldo Alckmin, ex-governador de São Paulo. Um dia expoente do Partido Novo, o ministro espalhou-se como um incêndio no Ambiente de Jair Bolsonaro. Generais do Planalto e Mourão, que tutela Salles desde janeiro, querem apagar o fogo dele.

Arminio Fraga* - Fim do teto: não se, mas como

- Folha de S. Paulo

Limite sinalizou entendimento contra o crescimento ininterrupto dos gastos a partir dos anos 1990

A emenda constitucional nº 95 de dezembro de 2016 instituiu o teto de gastos públicos, que congelou em termos reais os gastos do governo federal. O teto sinalizou um bem-vindo entendimento quanto à necessidade de se lidar com o crescimento ininterrupto dos gastos a partir dos anos 1990.

Foi parte de uma guinada na gestão macroeconômica do país em resposta ao colapso fiscal que ocorreu a partir de 2014. A partir da guinada, as taxas de juros entraram em trajetória de queda, chegando aos inéditos níveis que prevalecem hoje.

Parecia claro desde o primeiro momento que a manutenção do teto por mais do que alguns anos seria difícil sem que se encarasse de frente a absoluta rigidez dos gastos obrigatórios. Um exemplo pode ajudar aqui. Sob as regras da EC 95, se o PIB crescesse a 2,5% por dez anos, o gasto federal cairia de 19% para 15% do PIB. Se todos os gastos públicos ficassem congelados, em termos reais, teríamos uma queda de 35% para 27%. Não faz muito sentido.

Havia esperança de que reformas mais profundas ocorreriam, o que permitiria em algum momento uma flexibilização do teto, sem grandes estresses. Mas não foi o caso. Algo se fez, como a reforma da Previdência aprovada no ano passado, mas não foi o suficiente: o espaço para cortes nos gastos correntes discricionários praticamente se esgotou e o investimento público está próximo de zero, o que é política e economicamente insustentável.

Não surpreende, portanto, que um exame mais detalhado dos fatos sugira que não se exagere o impacto causal do teto sobre as taxas de juros: a Selic (a taxa de curto prazo fixada pelo BC) está em 2% e a taxa dos títulos do Tesouro de dez anos em torno de 7,5%.

Ambas caíram bastante desde 2016. Parece razoável atribuir parte relevante da queda na Selic à enorme recessão que nos assola há sete anos. As taxas de longo prazo embutidas na curva de juros estão em torno de 9%.

A armadilha da renda baixa – Editorial | O Estado de S. Paulo

Sem os investimentos adequados, governo pode aprisionar toda uma geração na renda básica e deixá-la sem perspectiva de progresso

O Brasil é um dos países mais desiguais do mundo. Com a pandemia, ficará mais desigual, mais pobre e com menos mobilidade social.

Um estudo da Tendências Consultoria sobre a distribuição de renda nacional mostra projeções devastadoras. Em 2020, 3,8 milhões de famílias (cerca de 15 milhões de brasileiros) devem engrossar as classes D e E. A pressão maior será justamente nas regiões mais pobres: o Norte e o Nordeste.

O auxílio emergencial mitigou o impacto do apagão econômico entre os pobres e miseráveis, mas não impediu a forte deterioração dos rendimentos na classe média. Na classe C, a renda é tipicamente variável, já que apenas parte dos rendimentos costuma vir de um trabalho fixo no regime CLT, enquanto o resto vem de fontes instáveis. Em 2020, a classe média deve perder cerca de 1,8 milhão de famílias.

O grande fator de empobrecimento será o desemprego dos menos escolarizados. A previsão é de queda de 3,5% da população ocupada ante 2019. Só no segundo trimestre, o desemprego cresceu 20,9% e alcançou 12,2 milhões de pessoas. Norte e Nordeste são especialmente vulneráveis, por causa da alta taxa de informalidade. Grande parte dos ocupados trabalha por conta própria ou em empresas de pequeno porte.

Nos últimos anos, a informalidade cresceu por todo o País, atingindo a média de quase 40%. Entre as famílias das classes D e E a informalidade nacional chega a 57,6%. Mas no Nordeste este índice é de 65,1%, enquanto no Norte já bate em 70%. A extrema pobreza também cresceu em todo o País entre 2014 e 2019, mas no Nordeste a piora foi mais intensa.

Cores da violência – Editorial | Folha de S. Paulo

Desigualdade se reflete nos homicídios, concentrados em negros, pobres e jovens

Registrou-se, no ano de 2018, uma mais que bem-vinda queda do vergonhoso número de homicídios no Brasil, repetida com maior vigor no ano passado. O detalhamento dos números, no entanto, revela desigualdades cruéis nessa melhora.

Foram assassinados 58 mil brasileiros em 2018, o que correspondeu a uma taxa de 27,8 por 100 mil habitantes. Do total de mortos, nada menos de 75,7% eram negros (pretos e pardos), segundo o recém-divulgado Atlas da Violência 2020, elaborado pelo Ipea e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Uma década antes, em 2008, a participação dos negros no total de vítimas de homicídio se mostrava significativamente menor, 65,5%. Dito de outro modo, a violência fatal aumentou no período para os pretos e pardos, enquanto caía para os demais grupos.

Não se pode afirmar que são sempre brancos a matar negros —inexistem dados a respeito dos homicidas. Mas resta evidente a deprimente vulnerabilidade dos segundos —que há dois anos perfaziam 55,8% da população e 75% dos miseráveis— ao morticínio.

Queda de homicídios não reduz tragédia da violência no país – Editorial | O Globo

No Rio, terror espalhado pela guerra entre facções mostra que problema está longe de ser resolvido

‘Fique em casa.’ A recomendação tantas vezes repetida nestes seis meses de pandemia foi dita nos últimos dias aos cariocas, desta vez motivada por outra epidemia, a da violência. O protocolo se justificava diante do terror que tomou conta de bairros da Zona Sul e regiões centrais do Rio, acossados por uma guerra — mais uma — entre facções pelo controle dos pontos de venda de droga. A retomada do conflito entre quadrilhas, traduzida em mortes, tiros a esmo, sequestro de moradores e terror, revela quão distantes estamos de resolver o problema. A pandemia parecia ter trazido certo alívio aos indicadores, mas o tráfico aproveita o momento para se reorganizar. A decisão do STF que proibiu operações policiais nas comunidades do Rio contribuiu para reduzir a violência policial, mas, ao mesmo tempo, dificulta ações necessárias para reprimir as organizações criminosas.

É flagrante a falha de inteligência que permitiu que as ruas do Rio se transformassem em campos de batalha, expondo inocentes. Para não falar no problema crônico da corrupção policial, que agrava o quadro, na medida em que dificulta o combate às quadrilhas.

A situação do Rio não é diferente do resto do país, onde impera a guerra entre facções. Isso fica patente no Atlas da Violência 2020, divulgado quinta-feira. A redução de 12% nos homicídios em 2018 tinha tudo para ser uma boa notícia, não fossem os outros dados do estudo do Ipea e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. O número de mortes por causas indeterminadas, não esclarecidas, aumentou 25,6%. Parte dos homicídios pode, portanto, ter entrado nessa conta.

Estados e municípios precisam ser ágeis para socorrer a cultura – Editorial | O Globo

Lei Aldir Blanc, que prevê ajuda de R$ 3 bilhões para o setor, levou dois meses para ser regulamentada

Na maior parte dos planos de flexibilização, após as quarentenas determinadas por governadores e prefeitos para conter o novo coronavírus, o setor cultural costuma ocupar as últimas fileiras na retomada. Em que pesem os esforços da classe artística para transformar em palco o ambiente virtual, brindando o público com transmissões ao vivo de shows e peças, trabalhadores e empresários da área estão com a corda no pescoço, depois de meses de casas fechadas e faturamento zero. Em muitos lugares, como no Rio, ainda sem nenhuma perspectiva de reabertura.

A bem-vinda Lei Aldir Blanc, que prevê ajuda emergencial de RS 3 bilhões ao setor, foi aprovada por unanimidade no Senado em 4 de junho, mas só foi regulamentada pelo presidente Jair Bolsonaro mais de dois meses depois, em 18 de agosto. A previsão é que o dinheiro seja repassado aos estados em setembro. Ainda deverá tardar a chegar a artistas e centros culturais, já que a celeridade não parece fazer parte do roteiro traçado pelo governo. Depois de cumprir uma série de exigências, prefeituras e estados terão de dois a quatro meses para distribuir a ajuda.

O pouco caso com a cultura é cena recorrente no governo Bolsonaro, que enxerga o setor como um bunker da esquerda, alvo tido como legítimo na guerra ideológica do bolsonarismo. Não à toa, a gestão da cultura tem sido marcada por uma coletânea de equívocos. Em janeiro, o então secretário Roberto Alvim, ao anunciar o Prêmio Nacional das Artes, copiou discurso de Joseph Goebbels, ministro de propaganda da Alemanha nazista, chocando o país. Diante da encenação patética e inaceitável, Alvim foi substituído pela atriz Regina Duarte. Em menos de três meses, ela deu lugar ao ator Mário Frias, o quinto em menos de dois anos.

Poesia | Fernando Pessoa - Uns, com os olhos postos no passado

Uns, com os olhos postos no passado,
Vêem o que não vêem; outros, fitos
Os mesmos olhos no futuro, vêem
O que não pode ver-se.

Porque tão longe ir pôr o que está perto —
A segurança nossa? Este é o dia,
Esta é a hora, este o momento, isto
É quem somos, e é tudo.

Perene flui a interminável hora
Que nos confessa nulos. No mesmo hausto
Em que vivemos, morreremos. Colhe
O dia, porque és ele.