segunda-feira, 7 de setembro de 2020

Opinião do dia – Fernando Henrique Cardoso*

"Devo reconhecer que historicamente foi um erro: se quatro anos são insuficientes e seis parecem ser muito tempo, em vez de pedir que no quarto ano o eleitorado dê um voto de tipo 'plebiscitário', seria preferível termos um mandato de cinco anos e ponto final.

Tinha em mente o que acontece nos Estados Unidos. Visto de hoje, entretanto, imaginar que os presidentes não farão o impossível para ganhar a reeleição é ingenuidade."

*Fernando Henrique Cardoso, sociólogo, ex-presidente da República. "Reeleição e crises", publicado nos jornais O Estado de S. Paulo e O Globo, 6/9/2020.

Marcus André Melo* - Carne, farinha e bacharéis

- Folha de S. Paulo

Nosso maior desafio é o estabelecimento do império da lei

Em "Sobrados e Mocambos" (1936), Gilberto Freyre menciona um senador do Império que propunha que se mandasse para o Pará "carne, farinha e bacharéis".

Freyre acrescentava que o imperador depositava mais confiança "nos bacharéis que administrassem juridicamente as províncias e distribuíssem corretamente a justiça do que em socorros de carne e farinha aos povos oprimidos". Os socorros eram "precários e efêmeros"; os bacharéis teriam efeito sustentável. Freyre —cujo nascimento ocorreu há exatos 120 anos— estava certo.

Freyre lembra também que o bacharel aparecera antes. Foram os jesuítas "que tinham dado à colônia ainda sombreada de mato grosso —a terra inteira por desbravar, índios nus quase dentro das igrejas, de olhos arregalados para os padres que diziam missas; cobras caindo do telhado por cima das camas ou enroscando-se nas botas dos colonos— os primeiros bacharéis".

Muitos estudavam na Europa e, ao voltar, formaram o que chamou "uma aristocracia da toga"; e isso em condições inusitadas: "à sombra de mangueiras de sítio e entre macacos amansados".

O bacharel traria consigo o Estado para onde este inexistia; instituições para o Estado da natureza; o antídoto contra a violência, o arbítrio e o mandonismo local.

Celso Rocha de Barros* - Bolsonaro desligou a Lava Jato

- Folha de S. Paulo

Direita é o cara que fugiu da cadeia enquanto liderava a luta contra a corrupção

Na semana passada, o STF concluiu o processo judicial mais longevo da história brasileira. Tratava-se de disputa entre, veja bem, a princesa Isabel e o governo brasileiro para saber quem é dono do Palácio Guanabara, onde trabalha seja lá quem a milícia tiver escolhido para ser governador do Rio de Janeiro. O processo durou 125 anos.

Mas a briga da princesa já tem concorrentes para o posto de processo que demorou mais e deu em menos na história brasileira. Afinal, as investigações de corrupção chegaram à direita.

Resultado: em menos de uma semana, o governador do Rio, que nomeia o procurador-geral, que investiga a família Bolsonaro, foi trocado por outro governador, aliado de Bolsonaro. E a força-tarefa da Lava Jato de São Paulo renunciou porque a procuradora indicada pelo PGR de Bolsonaro parecia disposta a melar as investigações.

Eu me lembro, jovens, da fúria santa que caracterizava o clima político quando as investigações eram contra a esquerda. Mas chegou à direita, e, agora, cai o governador para beneficiar o presidente, desmonta-se a Lava Jato na frente de todo mundo, e nada.

Ricardo Noblat - Vinte anos depois, Fernando Henrique Cardoso admite que errou

- Blog do Noblat | Veja

A reeleição foi um passo em falso

Vem tarde e dará em nada o “mea culpa” do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso por ter aceitado a aprovação pelo Congresso da emenda constitucional que permitiu sua reeleição. A emenda foi proposta por Mendonça Filho, um deputado pernambucano que à época estreava na Câmara. Ninguém deu bola para ela. Até que um dia se deu.

Disse Fernando Henrique, em artigo que alcançou larga repercussão no fim da última semana, que a emenda foi aprovada porque se temia a eleição de Lula, derrotado por ele em 1994, e, antes disso, por Fernando Collor de Mello em 1989. Houve denúncias de que a reeleição fora comprada. Ele nega seu envolvimento com a compra de votos. E mais não disse.

Não disse, por exemplo, que a proposta de reeleição presidencial só foi engolida pelo Congresso porque passou a abranger a reeleição para os governos de Estados e as prefeituras. Por dever de justiça, diga-se em seu socorro que ele era contra. Mas, e daí? Se ele podia, por que os outros não? Onde se abre uma brecha, a manada faminta avança em louca disparada.

Em seu ato de contrição, Fernando Henrique também omitiu que o presidente Itamar Franco, desconfiado, chamou-o para uma conversa reservada antes de indicá-lo à sua sucessão. Itamar queria saber se caso fosse eleito, Fernando Henrique se contentaria em governar por um mandato ou se passaria a flertar com a possibilidade da reeleição.

Itamar era tudo, menos bobo. Já ouvira falar a respeito. E pensava em ser candidato à sucessão de Fernando Henrique, pois se limitava a completar metade do mandato de Collor, derrubado por um pedido de impeachment. Fernando Henrique respondeu a Itamar que era contra a reeleição, que sempre fora e que seria. Itamar nunca o perdoou por causa disso.

Carlos Pereira - A Justiça como arma política

- O Estado de S.Paulo

A influência do Judiciário na política é fruto da escolha dos próprios políticos

Têm sido cada vez mais frequentes reclamações e críticas acerca da proeminência do Judiciário brasileiro, especialmente da sua Suprema Corte. Muitos afirmam que esta tem extrapolado a sua atuação, não apenas invadindo a seara de outros Poderes, mas também constrangendo de forma exacerbada a atuação dos políticos. Alegam também que a existência de decisões judiciais em direções opostas sobre temas semelhantes, não só proferidas pelo colegiado, mas especialmente de forma monocrática, tem supostamente acarretado insegurança jurídica.

A crescente influência do Judiciário na política não é um fenômeno brasileiro nem tampouco fruto de voluntarismos unilaterais de juízes ou mesmo de jacobinismos. Na realidade, é produto da escolha dos próprios políticos. Ou seja, o espaço que o Judiciário opera é definido politicamente.

De acordo com Ran Hirschl (The Political Origins of Judicial Empowerment Through Constitucionalization: Lessons from Four Constitutional Revolutions, 2000), essa influência é um fenômeno global. Em países cuja constituição garante direitos fundamentais e atribui ao Judiciário o poder de rever a constitucionalidade de atos de outros Poderes, verificou-se um aumento considerável da influência do Judiciário nas prerrogativas do Legislativo e do Executivo. Diante dos riscos de os interesses minoritários serem esmagados por uma maioria episódica, o empoderamento do Judiciário se tornou um imperativo.

O incremento na judicialização de políticas fez com que o jogo democrático dependesse cada vez mais da posição do Judiciário. A Justiça, na realidade, se transformou em uma espécie de arma política utilizada estrategicamente pelos próprios políticos.

José Maria Maravall (The Rule of Law as a Political Weapon, 2003) propõe três condições para que esse fenômeno ocorra. A primeira quando Executivos constitucionalmente fortes são majoritários no Legislativo ou conseguem formar coalizões. Nesse caso, o Parlamento teria poucas condições de responsabilizar e controlar o governo de plantão, tornando-se menos relevante. O confronto político seria assim transferido para o terreno do Judiciário. Haveria incentivos políticos para que a oposição minoritária embarcasse em uma estratégia de judicialização da política.

Bolívar Lamounier* - Alguém sabe para onde estamos indo?

- O Estado de S.Paulo

Mesmo vendo os riscos crescerem, nada faz crer que tenhamos clareza quanto ao rumo a seguir

Ao contrário da Argentina e de Portugal, o Brasil nunca viu seu passado como um período prolongado de decadência. Não tendo atrás de si nada que se assemelhe a uma idade de ouro, nunca experimentou sentimentos de declínio comparáveis aos vividos por aqueles países.

Os ciclos econômicos da cana-de-açúcar, do ouro e do café não levaram ao esperado enriquecimento, mas, em cada caso, o empobrecimento foi compensado pelo surgimento de atividades importantes noutras regiões. O primeiro grande baque econômico deveu-se à crise de 1929. Assim, foi só nas três últimas décadas do século 20 e agora, com os trancos brutais causados pelo governo Dilma e pela pandemia de covid-19, que começamos a refletir seriamente sobre as agruras sociais, as desigualdades, o crime organizado, o estado calamitoso da educação, as nossas catastróficas condições sanitárias e, naturalmente, o azedume generalizado da sociedade em relação à política. Ainda assim, a verdade é que não sabemos se essa terrível coleção de tragédias vai solapar ou inverter nosso otimismo futurista de “país novo”.

Não é difícil perceber como essa identidade otimista se formou, apesar da pobreza generalizada. Durante a primeira metade do século 20, até os anos 70, conseguimos sustentar um ritmo acelerado de industrialização. Essa foi a época em que o desenvolvimentismo se firmou como mística mundial, impulsionado pelo New Deal e pela prosperidade americana no segundo pós-guerra, pela reconstrução da Europa, pelo “milagre japonês” e até pelos arroubos retóricos de Kruchev a respeito dos avanços da URSS. No Brasil, em 1958, a vitória das chuteiras nacionais na Suécia, a suavização da velha música de dor de cotovelo e o sorriso de JK contribuíram poderosamente para melhorar nossa autoestima. Víamos tudo no País por uma ótica dual. Agricultura era arcaísmo, indústria era modernidade. Interior era atraso, cidade grande era progresso. Silêncio era tristeza, barulho era alegria, a tal ponto que a aconchegante tranquilidade dos pequenos municípios hoje compartilha o ruído infernal produzido por potentes aparelhos de som.

Fernando Gabeira - Dar uma chance ao Rio

O Globo

Se houver uma reação positiva na cidade, será possível estimular mudanças no nível do estado

Quando Raul Jungmann, então ministro da Segurança, descreveu o Rio como o coração das trevas, aludindo ao enlace do crime com a política, senti-me atingido por essa imagem do escritor Joseph Conrad.

Costumo descrever minha relação de adolescente com o Rio através de outra imagem: o deslumbramento com as luzes que vi da serra, o mesmo do personagem de Thomas Hardy em “Judas, o obscuro”, diante do esplendor noturno da cidade vista da colina.

Vim de Minas. Minha referência são os que chegaram antes, trazendo a carga maior de talento. Carlos Drummond de Andrade: “Nesta cidade vivo há 40 anos/ Há 40 anos vivo esta cidade/ A cidade me vive há 40 anos...”.

O poeta já era nostálgico quando escreveu a “Elegia carioca”. Num outro poema, sentia-se sozinho numa cidade de dois milhões de habitantes, havia crimes e muito conto do vigário.

Tantas coisas aconteceram, e o Rio hoje é um lugar parcialmente ocupado pelo tráfico e pelas milícias, tornou-se um estado meio artificial, em que a cabeça não conversa com o corpo.

O processo de corrupção tomou os palácios do governo, o Parlamento, com metástese no Judiciário. As ruas estão cheias de gente sem teto, a sujeira se acumula, enfim, os sinais da decadência são muito eloquentes.

Somos testemunhas e cúmplices. Não basta apenas levar a vida na esperança de que algo bom aconteça. É preciso olhar para que o Rio tem de bom e canalizar essa força positiva para a mudança. Nada de muito grandioso; alguns sonham com a normalidade do Espírito Santo, um estado próximo e um pouco apagado no Sudeste.

Cacá Diegues - Os guardiões do Estado

- O Globo

Será que vamos ter que começar tudo de novo?

Pelo jeito que a coisa anda, em 2022, os políticos vão nos obrigar a, mais uma vez, ter que escolher entre o autoritarismo populista de direita e o populismo autoritário de esquerda. Ou vice-versa, tanto faz. Nossa permanente e pobre alternativa eleitoral vai mais uma vez se impor, sem que possamos respirar um pouco.

Depois das eleições, eleito um dos dois lados, o outro dirá que, se estivesse lá, faria diferente e melhor, o que dará motivos e expectativas para as próximas disputas. A democracia só é boa quando justifica os erros de quem governa e dá esperança a quem pretende um dia governar. Podemos concluir que é esse o principal gatilho dela, o que a mantém acesa em nossos corações. Não podemos pensar em destruir o que seremos amanhã.

Mas é preciso também acreditar no rigor democrático, na Constituição e nas leis civis, bem como nas regras morais que não estão escritas, mas que governam as sociedades em que a democracia nasceu e floresceu. Sem esses limites, a democracia não sobrevive, as sociedades que ela pretende organizar se tornam uma selvagem e desumana experiência, em que o justo e o correto estarão sempre dependendo do bem-estar de quem se encontra no eventual poder.

Quando, depois de seu bem-sucedido primeiro mandato, em que deu a partida ao fim da Depressão, o presidente Franklin Roosevelt, eleito para um segundo termo por mais de 60% dos americanos, tentou mudar a composição da Suprema Corte do país, sofreu derrota clamorosa, comandada por representantes dos dois partidos, por políticos de todas as tendências, pela imprensa em geral e pelos eleitores que o haviam sufragado recentemente. E a alteração na Suprema Corte não aconteceu.

Demétrio Magnoli -Bispos, dinheiro e ‘africanidade’

- O Globo

Igreja Universal passou a ser vista, em Angola, como potencial ameaça

Há uma guerra em curso, em Angola, entre o poder terreno e o poder espiritual. Dias atrás, o governo angolano ordenou o fechamento de diversos templos da Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd), sob as acusações de evasão fiscal e lavagem de dinheiro. Atrás do véu das aparências, ocultam-se tensões políticas profundas, que envolvem o Brasil, além dos múltiplos usos do discurso da “africanidade”.

A Universal construiu um império com cerca de 300 templos, 500 mil fiéis e receitas anuais de US$ 80 milhões no país lusófono africano. No passado recente, a influência dos bispos de Edir Macedo não assustava o regime autoritário de José Eduardo dos Santos. A Iurd era aliada dos governos petistas — que, por sua vez, operavam como parceiros econômicos e diplomáticos do homem forte angolano, especialmente pela concessão de financiamentos do BNDES a obras da Odebrecht.

Mas tudo mudou, nos dois lados do Atlântico. Do lado de lá, João Lourenço tomou o lugar de José Eduardo dos Santos, deflagrando expurgos no MPLA, o partido dirigente, eliminando os dirigentes ligados ao antecessor. Do lado de cá, Bolsonaro substituiu o PT, rompendo a parceria com Angola. A única coisa que não mudou foi o “governismo de resultados” de Edir Macedo, que estabeleceu aliança com o presidente brasileiro de extrema-direita. Daí, a Iurd passou a ser vista, em Angola, como potencial ameaça ao sistema de poder de João Lourenço.

João Carlos Salles* - A maestria filosófica de Giannotti

- Folha de S. Paulo/ Ilustríssima

Aos 90 anos, José Arthur Giannotti, professor emérito de filosofia da USP, lança livro acerca das divergências entre dois dos maiores filósofos do século 20, Heidegger e Wittgenstein. Para o reitor da UFBA, a obra, que retoma temática da crise da razão, é repleta de elegância, argúcia e desafios.

O mais recente livro de José Arthur Giannotti, “Heidegger/Wittgenstein”, é o trabalho fascinante de um pensador que nos desafia com a tese da crise da razão. Seria insensato cifrar em poucas linhas o sentido de suas quase 500 páginas, cada qual merecedora de mergulho demorado, de elogios ou contrapontos.

Mais prudente é destacar aspectos da obra, o modo como arma um projeto de reflexão. Não trata de nos oferecer um comentário sobre Heidegger e Wittgenstein —simplesmente os dois maiores filósofos do século passado.

A textura do livro é, antes, a de um exercício singular de filosofia e serve como palco para um pensamento in fieri, que, entre outras coisas, com maldisfarçada imodéstia, procura “estudar o velório da lógica formal como reguladora das questões lógico-metafísicas”.

Um claro e belo trabalho de professor, pensador e literato. Comecemos pelo literato, pois Giannotti escreve muito bem. Já debocharam de seu estilo intrincado, de sua escrita difícil, que preferiria dizer o simples de maneira tortuosa. Todavia, não é fácil o trabalho do escritor/filósofo, caso tenha que afastar a neblina até da frase mais singela, como “o giz é branco”.

O escritor faz-nos ver aí mais que uma frase de manual, uma vez que o jogo da predicação condensa o núcleo mesmo do filosofar. Precisa então revolver o pó fenomenológico dessa aproximação à brancura, desse flerte de uma substância que se nos pro-põe ligada a um predicado, mostrando-se nele, armando nele seu salto, mas também revolvendo um jogo filosofante, carregado de modalidades (possibilidades, existências e necessidades).

E um jogo em aparência simples nos remete a Aristóteles e à reflexão sobre as condições de possibilidade de ligação entre palavra e real, estando exemplificada nessa com-juntação um lógos apofântico, que, todavia, como bem acusa Giannotti, estaria empobrecido nos manuais ou na lógica escolar.

Difícil a escrita porque a medida de sua clareza é a da exposição de algo como a remissão fenomenológica a um martelo que se dá como martelante. Não a um sujeito ou a um objeto, mas ao que se põe em uma trama pré-predicativa, lançando-se em um campo de possibilitações antes mesmo de realizar uma possibilidade.

Ou lhe cabe ainda expor um fato a ser representado, mas à condição de lançar-nos em um espaço lógico de variações, como a dispor uma forma comum a fato e proposição. Com sua força, o escritor dispõe em um universo conceitual comum discursos que habitariam universos paralelos —e isso tudo com imagens de bom literato, sem ornamentos ou floreios artificiais.

Giannotti descreve como opera, como se indagasse o rumo das perguntas e acompanhasse o leitor no trabalho de exibição de um pensamento. Não por acaso, prefere imagens de artesão, o labor de uma oficina, em descrições de um pensar que parece dar-se com as mãos, acompanhando as ranhuras que o olhar acaso traça no tecido de conceitos.

Por exemplo, “o caso da regra não é apenas a marca que ela deixa na matéria”; “o Dasein não está no mundo como um grão de areia na imensidade do deserto”, sendo afinal atravessado por estados de ânimo que “determinam o ser-aí inteiro, como o arco que faz vibrar tanto a corda como o violino”. O pensamento provoca na escrita pequenos choques, pois usa frases firmes em questões delicadas e frases delicadas, sutis, em questões que pareceriam triviais.

Heidegger afirma que “ensinar é mais difícil que aprender porque implica um fazer aprender”. Giannotti é, nesse sentido, um excelente professor. Nunca nos esconde como usar as ferramentas filosóficas. Sua familiaridade, ademais, com a história da filosofia é um modelo de refinamento e um guia para o ensino.

Convida-nos, pois, com intimidade, a tratar cada grande pensador como talvez devêssemos tratar colegas de departamento, caso estes tivessem disposição e fôlego para um debate autêntico. Abrindo-nos um caminho, Giannotti aviva seu pensamento e, ao operar, faz-nos ir e vir nos textos, ora indicando a primeira ocorrência de um conceito, ora apontando uma mudança antes insuspeitada.

Elias Thomé Saliba* - Livros mostram como o integralismo replicou o fascismo no Brasil

- O Estado de S. Paulo

Movimento criado por Plínio Salgado ainda conta com seguidores nos dias de hoje

Na história brasileira há momentos nos quais não apenas o anedótico se superpõe à realidade, mas também embaralha a memória: lembramos mais facilmente do que é divertido ou pitoresco e recalcamos o drama ou a tragédia. Nada mais humano. E sublime. O problema é que ao iluminar apenas o anedótico, a memória obscurece a história, deixando na sombra e, não raro, distorcendo ou omitindo acontecimentos. Isto ocorreu, em grande parte, com a história do integralismo brasileiro. 

Foi a partir da famosa batalha da Praça da Sé, em 7 de outubro de 1934, que deixou um saldo de sete mortos e dezenas de feridos – e na qual se enfrentaram antifascistas e integralistas, que estes últimos receberam o apelido de “galinhas verdes”. Não se sabe se foi Aparício Torelly (o Barão de Itararé) que o inventou, mas o apelido pegou e chegou até a ser dicionarizado. Tal associação marcou de tal maneira o movimento que, exceto por alguns estudos acadêmicos, o tema transformou-se numa das muitas lacunas da história brasileira.

Para cobrir tais lacunas, dois lançamentos recentes revisitam o integralismo: O Fascismo em Camisas Verdes, de Leandro Pereira Gonçalves e Odilon Caldeira Neto (Editora da FGV) e Fascismo à Brasileira, de Pedro Doria (Editora Planeta). Apoiados em sólidas pesquisas, os dois livros esmiúçam aquele que foi um dos maiores movimentos populares de direita da história brasileira. O primeiro livro estica a cronologia, indo além da morte de Plínio Salgado em 1975, percorrendo sua carreira como deputado em vários partidos e estendendo-se até os movimentos neointegralistas dos anos recentes, com os sites na internet. Já o livro de Pedro Doria, limita-se ao exame detalhadíssimo do período áureo da Ação Integralista Brasileira, desde as suas origens, no final da década de 1920, à fracassada tentativa de tomada do poder, em 1938 – incluindo um precioso bônus de exercício comparativo ao leitor: um capítulo inteiro abordando a história do fascismo italiano.

Porque tudo começa com o encontro entre Plínio Salgado e Mussolini, em Roma, em junho de 1930 – que se transformou, afinal, numa linha divisória na trajetória ideológica do brasileiro: ali nasceu a inspiração para o intelectual modernista (é bom não esquecer) o qual, da mesma maneira que outros escritores de sua geração, ansiava por uma transformação do país, rejeitando tanto o liberalismo carcomido da “República Velha”(termo inventado naquela época) quanto o “perigo vermelho”. O Manifesto Nhengaçu Verde Amarelo, assinado em 1929 por Salgado, Cassiano Ricardo e outros, já inventava até uma tradição para o nacionalismo integralista, na qual os judiados povos indígenas, através (sic) da “força centrípeta do elemento tupi” dariam o tom para o mito da mestiçagem integradora.

A continuidade da Lava Jato – Editorial | O Estado de S. Paulo

Como parte do Ministério Público, a operação não tem como função enfrentar as instituições, como se lhe coubesse um papel de oposição à ordem estabelecida

O procurador da República Deltan Dallagnol comunicou que deixará, por motivos familiares, a chefia da Operação Lava Jato. Nas redes sociais, Dallagnol disse que a operação “vai continuar firme, tem muito a fazer e precisa de suporte”. Horas depois do anúncio, foi divulgada decisão da subprocuradora Maria Caetana Cintra dos Santos, do Conselho Superior do Ministério Público Federal, prorrogando por mais um ano a operação, instaurada em março de 2014.

Ao longo desses seis anos, a Lava Jato realizou feitos realmente prodigiosos, tornando-se a maior ação coordenada de combate à corrupção da história do País. Além dos resultados concretos – em especial, a revelação de muitos esquemas de corrupção, a condenação de poderosos dos setores público e privado e a recuperação de milhões de reais desviados, tanto dos cofres públicos como de muitas empresas –, a operação resgatou a igualdade de todos perante a lei, princípio fundamental do Estado Democrático de Direito. Diante desse panorama, dificilmente se pode exagerar nos méritos da Lava Jato. A operação, de fato, começou a mudar o País.

PT no fundo do poço – Editorial | Folha de S. Paulo

Com Jilmar Tatto candidato a prefeito, partido pode ficar fora do segundo turno

Três vezes administrado pelo PT, o município de São Paulo sempre foi fundamental para as pretensões nacionais do partido. A vitória de Marta Suplicy em 2000, por exemplo, ajudou a pavimentar a eleição presidencial de Luiz Inácio Lula da Silva dois anos mais tarde.

É bastante simbólica da redução da força nacional do partido, portanto, a situação melancólica em que o PT se encontra atualmente na maior cidade do país.

Seu candidato a prefeito, o ex-deputado federal Jilmar Tatto, é conhecido mais por ser um representante da velha política clientelista, sobretudo em seu reduto da Capela do Socorro (zona sul), do que por ter ideias inovadoras para resolver os problemas da cidade.

Sua campanha, ao menos por enquanto, não inspira nem mesmo a audiência cativa petista. O partido sempre ganhou suas eleições na cidade partindo de uma base sólida entre o eleitorado de perfil progressista, que foi sendo ampliada aos poucos para atrair redutos da classe média.

Governo sem foco – Editorial | Folha de S. Paulo

Bolsonaro e Guedes desperdiçam boa vontade de Congresso com apetite reformista

Desde setembro de 2019, o Congresso aprovou a nova lei geral de telecomunicações, a reforma da Previdência e a lei do saneamento. Está à beira de passar mudanças na regulação do setor de gás e das falências. Os parlamentares também estão dando mais celeridade à reforma tributária do que Jair Bolsonaro (sem partido).

Para quem desdenha do Parlamento, nota-se que em pouco tempo se fizeram mudanças consideráveis em leis que regulam a vida econômica. Trata-se também de indício forte de que existe propensão reformista no Congresso.

O governo que se diz liberalizante, porém, não tira proveito dessa boa vontade. Ao contrário, não tem clareza de objetivos e retarda o envio de projetos relevantes. Quando o faz, deixa que peguem poeira nos escaninhos legislativos ou cria conflitos contraproducentes.

Bolsonaro põe em risco acordo entre Mercosul e EU – Editorial | O Globo

Desmatamento da Amazônia é empecilho incontornável à ratificação por França e Alemanha

Em julho do ano passado, Jair Bolsonaro celebrou a conclusão de duas décadas de negociações sobre um acordo de livre comércio entre Mercosul e União Europeia (UE). Fez o anúncio em Tóquio, com justa euforia, do potencial transformador que o tratado teria nas economias do Brasil e dos sócios regionais. Um ano depois, Bolsonaro vacila sobre o texto final. Corre o risco de perder a única obra diplomática que, até agora, pode ser considerada relevante na sua gestão.

O acordo Mercosul-UE já enfrentou a hesitação de vários governos, mas se consolidou, nas duas margens do Atlântico, em virtude do interesse comum de avançar num sistema de comércio lastreado em normas de consenso. Ganhou impulso na reta final pelas mãos dos ex-presidentes do Brasil, Michel Temer, e da Argentina, Mauricio Macri. Com apenas seis meses no poder, Bolsonaro surpreendeu pela agilidade na definição dos contornos finais.

Praias, festas e bares lotados dão falsa segurança de que pior passou – Editorial | O Globo

O vírus deu uma trégua, mas é um equívoco grave acreditar que a epidemia esteja controlada

Após seis meses de pandemia do novo coronavírus no Brasil, as estatísticas começam a dar certo fôlego. De acordo com os dados do consórcio de veículos de imprensa, nos últimos dias o país tem registrado média inferior a 900 mortes, o que não acontecia desde maio. No sábado, a média móvel de óbitos registrou queda pela primeira vez. Ao mesmo tempo, a taxa de transmissão da doença enfim caiu abaixo de 1, segundo a última estimativa do Imperial College de Londres. Quando fica nesse patamar, o número de infectados cai a cada dia, e o contágio definha naturalmente.

A trégua, acompanhada do alívio na ocupação dos leitos da rede pública, pode transmitir a falsa impressão de que a situação está sob controle. Não está. As 125 mil mortes ainda crescem ao ritmo absurdo de mais de 800 por dia, o equivalente à queda de dois aviões Jumbo.

Mesmo nos estados que registram estabilidade ou queda, a tragédia não para enquanto o vírus não desaparecer. São Paulo já soma mais de 30 mil mortes. No Rio, elas superam 16 mil. No Ceará estão acima de 8 mil. No Pará ultrapassam 6 mil. Todas, é bom lembrar, seriam evitadas se o vírus parasse de circular no habitat hospitaleiro que encontrou no país. Num cenário de imunidade incerta na população, as aglomerações contribuem para acelerar a transmissão e para que o Brasil continue a galgar degraus nessa escalada macabra.

Ferreira Gullar, que faria 90 anos, ganha livro de ilustrações inéditas e outras homenagens

Poeta, morto em 2016, será também alvo de debates e lives, enquanto o seu acervo é organizado e uma biografia entra em preparação

Roberta Pennafort | O Globo

RIO - Vivo fosse, Ferreira Gullar passaria com festa seus 90 anos, no próximo dia 10. Estaria inquieto com a turbulência do noticiário de 2020 e o confinamento imposto pelo coronavírus, e participaria de ‘lives’ expondo as muitas opiniões que cultivava – sobre arte, política, a existência humana. A conjectura é da viúva, a também poeta Cláudia Ahimsa, que, passados quase quatro anos, ainda elabora a ausência do marido. A melancolia trazida pela quarentena, ela conta, foi revertida com a entrega a um trabalho que lhe recuperou um pouco de Gullar: o livro “As muitas maneiras de dizer ‘eu te amo’”.

São 31 ilustrações do escritor (e também artista visual, crítico e et ceteras), sendo 30 naturezas-mortas em estilo pontilhado, e um retrato de Cláudia, a quem Gullar, aos 64 anos, já viúvo da atriz Thereza Aragão, conheceu com 29 anos, na condição de “poeta solta no mundo”, então vivendo e versando na Alemanha. O encontro foi na Feira de Frankfurt, em 1994, quando o Brasil era o país-tema do evento literário.

A acompanhar os desenhos, o livro, produzido artesanalmente pela editora portuguesa Urucum, traz um texto de Cláudia (“pequeno, porque dói”, diz um trecho). Uma breve narrativa de um grande amor.

– Eu estava lá em Frankfurt lançando meu segundo livro, e foi paixão à primeira vista, olho no olho, não admiração intelectual. Eu não era leitora dele – frisa Cláudia, que, a partir dali, passaria a se corresponder intensamente com Gullar (“tudo o que você pode imaginar acontecia naquelas cartas, a maioria é impublicável”, brinca). Só vencidos oito meses eles se reviram, já no Brasil. Na mala, de presente, Cláudia trouxe um caderno de desenho, canson, que cinco anos depois, voltaria para ela – as folhas todas preenchidas, e com a dedicatória que agora dá título ao livro.

Além da publicação, a ser vendida on-line a partir do dia 10 (pelo site www.urucum.com), as nove décadas desde o nascimento de José Ribamar Ferreira, maranhense feito Ferreira Gullar no Rio de Janeiro, motivam também homenagens virtuais, adequadas aos tempos pandêmicos.

A Academia Brasileira de Letras, instituição à qual Gullar nunca aspirou, mas em que acabou ingressando a apenas dois anos da morte, depois de muita insistência de amigos, está programando uma edição do podcast Efemérides Acadêmicas, com os membros Arno Wehling, Antonio Carlos Secchin e Antonio Cicero. Cicero tomará parte também no tributo da Companhia das Letras, editora onde está a obra poética de Gullar. Fará uma videoaula sobre o incontornável “Poema sujo” (1975).

O cineasta Silvio Tendler, autor do programa de TV sobre ele “Há muitas noites na noite” (2015) e do documentário “Arqueologia do poeta” (2019), vai conduzir uma ‘live’ no Facebook (no perfil da Caliban Cinema e Conteúdo, sua produtora), dia 10, às 19h, também para festejar Gullar. Como convidados, a filha dele Luciana Aragão Ferreira, a neta Juliana Aragão e o inseparável companheiro Zelito Viana.

Poesia | Ferreira Gullar - A poesia

Onde está
a poesia? Indaga-se
por toda parte. E a poesia
vai à esquina comprar jornal.

Cientistas esquartejam Puchkin e Baudelaire.
Exegetas desmontam a máquina da linguagem.
A poesia ri.

Baixa-se uma portaria: é proibido
misturar o poema com Ipanema.
O poeta depõe no inquérito:
Meu poema é puro, flor
Sem haste, juro!

Não tem passado nem futuro.
Não sabe a fel nem sabe a mel:
É de papel.

Não é como a açucena
Que efêmera
Passa.
E não está sujeito a traça
Pois tem a proteção do inseticida.
Creia,
O meu poema está infenso à vida.

Claro, a vida é suja, a vida é dura.
E sobretudo insegura:
“Suspeito de atividades subversivas foi detido ontem
o poeta Casimiro de Abreu.”
“A Fábrica de Fiação Camboa abriu falência e deixou
sem emprego uma centena de operários.”
“A adúltera Rosa Gonçalves, depondo na 3ª Vara de Família,
afirmou descaradamente: ‘Traí ele, sim. O amor acaba, seu juiz.’”

O anel que tu me deste
era vidro e se quebrou
o amor que tu me tinhas
era pouco e se acabou

Era pouco? Era muito?
Era uma fome azul e navalha
uma vertigem de cabelos dentes
cheiros que traspassam o metal
e me impedem de viver ainda
Era pouco? Era louco,
um mergulho
no fundo de tua seda aberta em flor embaixo
onde eu morria

Branca e verde
branca e verde
branca branca branca branca
E agora
recostada no divã da sala
depois de tudo
a poesia ri de mim

Ih, é preciso arrumar a casa
que André vai chegar
É preciso preparar o jantar
É preciso ir buscar o menino no colégio
lavar a roupa limpar a vidraça
O amor
(era muito? era pouco?
era calmo? era louco?)
passa
A infância
passa
a ambulância
passa
Só não passa, Ingrácia,
A tua grácia!

E pensar que nunca mais a terei
real e efêmera (na penumbra da tarde)
como a primavera.
E pensar
que ela também vai se juntar
ao esqueleto das noites estreladas
e dos perfumes
que dentro de mim gravitam
feito pó
(e um dia, claro,
ao acender um cigarro
talvez se deflagre com o fogo do fósforo
seu sorriso
entre meus dedos. E só).

Poesia – deter a vida com palavras?
Não – libertá-la,
fazê-la voz e fogo em nossa voz.
Poesia – falar
o dia
acendê-lo do pó
abri-lo
como carne em cada sílaba,
deflagrá-lo
como bala em cada não
como arma em cada mão

E súbito da calçada sobe
e explode
junto ao meu rosto o pássaro? O pás...?

Como chamá-lo? Pombo? Bomba? Prombo? Como?
Ele
bicava o chão há pouco
era um pombo mas
súbito explode
em ajas brulhos zules bulha zalas
e foge!
como chamá-lo? Pombo? Não:
poesia
paixão
revolução