quinta-feira, 10 de setembro de 2020

Merval Pereira - Formas de ignorância

- O Globo

Entre nós, brasileiros, é brutal o efeito colateral da revelação do jornalista Bob Woodward de que o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, já sabia da gravidade da Covid-19 e dos riscos à população no início de fevereiro, quando ainda havia poucos casos da doença no país, e resolveu minimizá-los para “não causar pânico”.

Trump deu uma entrevista gravada a Woodward, que se celebrizou com a reportagem do escândalo do Watergate, e sua voz admitindo a gravidade da situação deve ter deixado seus seguidores no mínimo envergonhados, especialmente os Bolsonaro, que se dizem tão próximos de Trump e não tinham ideia de que tudo aquilo que era dito não passava de uma maquinação política de um líder irresponsável que sabia exatamente o que estava acontecendo.

"É um [vírus] muito problemático. É muito delicado. É mais mortal até do que as gripes mais duras", admitiu Trump a Woodward em fevereiro. Aqui, no Brasil, em março, Bolsonaro saiu-se com essa: “Depois da facada, não vai ser uma gripezinha que vai me derrubar”.

Trump admitiu na entrevista que já sabia que a Covid-19 não matava apenas idosos: "E agora está se mostrando que não são apenas as pessoas mais velhas [que morrem], Bob. Jovens também, muitos jovens".

Nosso “Trump dos trópicos”, acreditando nas declarações oficiais de seu ídolo, garantia por aqui: “Vão morrer alguns [idosos e pessoas mais vulneráveis] pelo vírus? Sim, vão morrer. Se tiver um com deficiência, pegou no contrapé, eu lamento".

O presidente dos Estados Unidos, em sua campanha para esconder a gravidade do problema, soltou no twitter certa noite uma advertência: "Não podemos deixar a cura ser pior que o problema". No mesmo dia à tarde, Bolsonaro disse a seus seguidores: "Brigar para que não venha desemprego como efeito colateral. Aí vai complicar mais ainda, a cura vai ficar pior que a doença em si."

O afrouxamento das medidas de distanciamento social foi outro ponto coincidente entre nosso presidente, que ignorava os fatos, e Trump que, para não causar pânico, levava adiante medidas temerárias: “Nossa meta é afrouxar as diretrizes e abrir grandes partes do país enquanto nos aproximamos do final desta histórica batalha contra o inimigo invisível”.

Carlos Alberto Sardenberg - O melhor presidente

- O Globo

Com FH, ficamos com uma moeda de verdade

Em artigo recente no GLOBO, Fernando Henrique Cardoso fez um mea-culpa pela introdução do sistema de reeleição. Foi uma reflexão clara e corajosa. Disse que estava pensando no modelo americano, mas: “visto de hoje, imaginar que os presidentes não farão o impossível para ganhar a reeleição é ingenuidade”.

Ressalvou: “Eu procurei me conter. Apesar disso, fui acusado de ‘haver comprado’ votos favoráveis à tese da reeleição no Congresso. De pouco vale desmentir e dizer que a maioria da população e do Congresso era favorável à minha reeleição: temiam a vitória... do Lula. Devo reconhecer que historicamente foi um erro: se quatro anos são insuficientes e seis parecem ser muito tempo, em vez de pedir que no quarto ano o eleitorado dê um voto de tipo ‘plebiscitário’, seria preferível termos um mandato de cinco anos e ponto final”.

O mea-culpa teve óbvia repercussão. Alguns lembraram o episódio da desvalorização cambial, feita em janeiro de 1999, logo após sua reeleição. Um estelionato, dizem.

Tendo acompanhado bem de perto todos esses acontecimentos, quero deixar minha opinião sobre o conjunto da obra de FHC. Primeiro, é verdade que a maioria queria a reeleição, tanto que FHC foi reeleito no primeiro turno.

Luiz Carlos Azedo - A carestia de volta

- Nas entrelinhas | Correio Braziliense

“Quanto tudo parecia dominado na política, o presidente Jair Bolsonaro sentiu o bafo quente do dragão da inflação, com a alta generalizada dos preços dos alimentos”

Poderia intitular a coluna com a frase famosa de James Carville, o marqueteiro do ex-presidente dos Estados Unidos Bill Clinton. Em 1991, após vencer a Guerra do Golfo e resgatar a autoestima dos americanos depois da dolorosa derrotar no Vietnã, o presidente George Bush era o favorito absoluto nas eleições de 1992, ao enfrentar o desconhecido governador de Arkansas, Bill Clinton. Carville apostou que Bush não era invencível com o país em recessão e cunhou a frase que virou case de marketing eleitoral: “É a economia, estúpido!” Deu Clinton!

Quanto tudo parecia dominado na política, o presidente Jair Bolsonaro sentiu o bafo quente do dragão da inflação, com a alta generalizada dos preços dos alimentos, atribuída aos efeitos da pandemia na economia e ao câmbio, com o dólar cotado a R$ 5,31. Sua reação foi a de quase todos os governantes que subestimam a importância do equilíbrio fiscal e acreditam que podem controlar a alta dos preços com a mão pesada do Estado. Mandou o ministro da Justiça, André Mendonça, tomar medidas contra os supermercados. Deveria ouvir mais as ponderações da equipe econômica quanto aos gastos do governo, em vez de fritar em fogo alto o ministro da Economia, Paulo Guedes, que está virando um zumbi na Esplanada dos Ministérios e, agora, quer aumentar os salários dos ministros em plena crise fiscal. R$ 39 mil, fora as mordomias, considera muito baixo.

Ontem, Guedes disse que não vai mais negociar as reformas administrativa e tributária com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), porque o eixo da negociação agora é político, se referindo ao general Luiz Ramos, ministro da Secretaria de Governo, e aos líderes do Centrão, que compõem o dispositivo parlamentar de Bolsonaro. A frase tem até certa dose de ironia, diante da notícia de que a Secretaria Nacional do Consumidor, vinculada ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, notificou representantes de supermercados e produtores de alimentos para pedir explicações sobre o aumento no preço dos alimentos da cesta básica.

Bruno Boghossian – Mentiras que matam

- Folha de S. Paulo

Se depender de políticos e juízes de Brasília, presidente brasileiro já pode admitir que enganou o país

Donald Trump mentiu. Em 26 de fevereiro, o presidente americano declarou que, em pouco tempo, o país veria “cair para próximo de zero” o número de novos casos de contaminação por coronavírus.

É claro que nada disso aconteceu, e Trump sabia que era balela. Duas semanas antes, ele dissera numa conversa privada com o jornalista Bob Woodward que a doença era “muito complicada” e que o vírus se espalhava pelo ar. Depois, o presidente admitiu que havia escondido esses fatos. “Eu ainda prefiro minimizar, porque não quero criar pânico”, afirmou ao repórter, em março.

Naquela época, o americano explorava o coronavírus como plataforma política e atacava governadores que aplicavam regras de distanciamento físico para conter a pandemia. Ele só mudou o discurso no fim do mês. Especialistas acreditam que a implantação dessas medidas mais cedo poderia ter poupado dezenas de milhares de vidas.

Jair Bolsonaro também mentiu. O brasileiro disse no fim de março que o pânico era “uma doença mais grave” do que a Covid-19. “O povo foi enganado esse tempo todo”, afirmou.

Maria Hermínia Tavares* - Caos e sombras

- Folha de S. Paulo

Percorrer o twitter do ministro das Relações Exteriores é como entrar nos espaços retratados nas gravuras da série Cárceres do veneziano Giovanni Piranesi

Percorrer o twitter do ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araujo, é como entrar nos espaços retratados nas gravuras da série “Cárceres” do veneziano Giovanni Piranesi (1720-1778). Pouca luz, ruínas, objetos estranhos pendurados no teto, escadas labirínticas que não levam a parte alguma. Em suma, caos e sombras.

De alguns tuítes emana um fartum conspiratório: “Infelizmente, eles não vão parar. Felizmente, nós também não.” Outros são tão presunçosos quanto vazios: “Uma sociedade não pode renunciar à ordem do espírito sem destruir-se a si mesma”. Entre uma que outra adulação ao chefe Bolsonaro, o tedioso registro de reuniões protocolares rivaliza com a rejeição de um dos pilares da ordem internacional contemporânea: “No mundo pós-Covid, precisamos de ações de cada país mais do que de ‘multilateralismo’”.

Ele não, mas de há muito os observadores conhecem a crescente importância de problemas que, por ultrapassar as fronteiras nacionais, não podem ser tratados apenas dentro de seus limites: intensificação do comércio e dos fluxos financeiros entre países; cadeias de produção regionalmente dispersas; ondas migratórias; aquecimento global; contrabando; tráfico de armas, drogas e pessoas —e, por fim, as pandemias. Sua existência explica a multiplicação dos instrumentos multilaterais, criados, lá atrás, para assegurar a paz. Sua complexidade e os conflitos entre desigualdade de poder das nações e regras da cooperação internacional dão conta da crise presente do multilateralismo.

Fernando Schüler* - Reforma é do país, não do governo

- Folha de S. Paulo

Cabe ao Congresso fazer os ajustes que o projeto requer

A reforma administrativa demanda uma análise ponderada. É evidente que o projeto apresentado pelo governo exige ajustes e deve ser aperfeiçoado. É exatamente para isso que existe o Congresso e o debate em curso na sociedade.

Há itens que me parecem insustentáveis na proposta. Um deles é uma quase unanimidade. O presidente não pode decidir sozinho se extingue uma autarquia ou fundação pública criada por lei, no Congresso. É certo que a máquina pública brasileira precisa de um processo de revisão e enxugamento. Mas precisa fazer isso com os instrumentos da República, discussão e decisão no Parlamento.

Outro ponto é a exclusão da possibilidade de redução de jornada e vencimentos em carreiras de Estado. Por que cargas d’água isso deveria valer para um médico, mas não para um diplomata? Há um problema elementar de equidade aí, e não percebo como plausível uma reforma desatenta a estas coisas.

Há muitos pontos. O projeto explicita a autorização para que setor público e privado cooperem na execução de serviços públicos, determinando que isso seja regulamentado por lei. O ponto é que já existem diversos instrumentos nesta direção, em especial o marco regulatório da sociedade civil (lei 13.019/14), hoje em plena utilização país afora.

Ascânio Seleme - Doze atributos

- O Globo

Bolsonaro tiraria 3,5. Um nível que não o distinguiria como pessoa acima da média

O escritor e paramédico Spencer Sekulin publicou no site Mind Cafe um artigo muito bom sobre o que chamou de “12 atributos das pessoas acima da média, segundo a filosofia”. Ele parte do princípio de que não existem truques para viver uma vida feliz e de sucesso. Nem mágica. As boas lições que podemos aplicar em nossas vidas já foram descobertas e debatidas pela filosofia muitas e muitas vezes e por anos e anos. E então ele lista uma dúzia destas lições. Cada um pode usar a lista para analisar sua própria vida, ver se está bem posicionado diante do inexorável. Vale também para checar pessoas públicas. Vamos ver Bolsonaro.

Ponto a ponto.

1 — “Respeitam e controlam suas reações.” Bolsonaro não atende a este ponto. Estridente e reacionário, sempre se excede e perde seguidamente o controle.

2 — “Veem a felicidade como uma decisão, não como um objetivo.” O presidente é um homem enfezado e pouco feliz, que parece se divertir mais com a desgraça alheia do que com o próprio prazer.

3 — “Ouvem mais do que falam.” Este não é o caso de Bolsonaro. Inseguro por razões óbvias, o presidente do Brasil fala muito mais do que ouve. Quer provar a si próprio que é o mandachuva. Tem gente que diz que não ouve ninguém porque nada entende.

4 — “Têm claros objetivo e direção para a vida.” Neste ponto, o capitão passa com nota máxima. Não há como negar que ele sabe para onde quer ir e como pretende chegar lá.

5 — “São verdadeiramente gentis.” Absolutamente este não é um atributo que se possa conferir a Bolsonaro.

Bernardo Mello Franco - Fux terá que escolher

- O Globo

A despedida de Dias Toffoli resumiu bem sua gestão à frente do Supremo. Enquanto os ministros da Corte faziam os salamaleques de praxe, Jair Bolsonaro adentrou o plenário cercado de aliados. Sem aviso e sem cerimônia, o capitão se refestelou numa poltrona e passou a acompanhar os discursos.

Não foi o único momento constrangedor da tarde. Indicado por Bolsonaro, o procurador Augusto Aras comparou o presidente do Supremo às flores do Cerrado. “No auge da seca, os ipês nos dão o melhor de si, embelezando a relva ressequida”, filosofou. Em nome da OAB, o advogado Marcus Vinicius Furtado Coêlho disse que a coragem é a “característica central” de Toffoli. Essa ninguém poderia imaginar.

Mais cedo, em visita ao Congresso, Toffoli já havia recebido uma curiosa homenagem do presidente do Superior Tribunal de Justiça. “Todo poder emana do povo. E o Toffoli é povo, o Toffoli é poder”, afirmou o ministro Humberto Martins. O senador Davi Alcolumbre identificou no presidente do Supremo a “coragem dos grandes líderes”. Imodesto, Toffoli concordou com tudo e descreveu sua própria gestão com as palavras “independência” e “altivez”.

Ricardo Noblat - Quando um presidente mente e um jornalista guarda informação

- Blog do Noblat | Veja

Tudo para se reeleger e vender mais livros

Um presidente pode mentir aos cidadãos e depois alegar que o fez para não criar pânico? E um jornalista? Pode guardar em segredo durante seis meses uma informação capaz de mudar o destino do seu país? Foi o que fizeram nos Estados Unidos Donald Trump e Bob Woodward, editor do jornal Washington Post.

Em fevereiro último, Trump declarou a Woodward, em conversa gravada, que o coronavírus era um problema grave – o contrário do que dizia em público. Famoso desde o escândalo que derrubou nos anos 60 o presidente Richard Nixon, o jornalista guardou a notícia para só publicá-la em livro a ser lançado na próxima semana.

“É um vírus problemático. É muito delicado. É mais mortal do que as gripes mais duras”, admitiu Trump. “E agora está se mostrando que não são apenas as pessoas mais velhas que morrem, Bob. Morrem também muitos jovens”. Foram 18 entrevistas concedidas por Trump ao jornalista entre dezembro e julho passados.

William Waack - Acomodados

- O Estado de S.Paulo

Nossa sociedade se acostumou a acomodar interesses pendurando a conta nos cofres públicos

É difícil e pode causar indisposição, mas, se for possível ignorar aspectos morais quando se registra o perdão de dívidas concedido pelos deputados a igrejas, percebe-se que o ocorrido nada tem de anormal. Ao contrário: é o jeitão característico da nossa sociedade, acostumada a acomodar interesses setoriais pendurando a conta nos cofres públicos, quer dizer, em quem paga impostos.

As igrejas compõem um desses “interesses setoriais” e constituíram-se nas últimas quatro décadas num lucrativo negócio graças a uma profunda transformação cultural (associada à perda de valores tradicionais e ao recuo da Igreja Católica, mas este não é o objeto deste texto). Desenvolveram-se também como importantes fatores da política, não apenas pela capilaridade (base de seu poder econômico), mas, principalmente, por terem se tornado muito relevantes na “guerra cultural”, que é uma luta política.

É bastante óbvio que o poder político e econômico explica a maior ou menor capacidade de “interesses setoriais” de obter a acomodação que pretendem. Excelente exemplo está no debate sobre a reforma tributária, um verdadeiro tratado antropológico sobre a realidade brasileira, na qual o privado tem predominância sobre o público. Existe uma espécie de consenso social segundo o qual esse estado de coisas, do ponto de vista moral inclusive, surge como perfeitamente adequado.

Maria Cristina Fernandes - O tatame minado de Fux

- Valor Econômico

Operação expõe teia de relações entre escritórios e tribunais

O Ministério Público Federal estendeu um grande tatame para a posse de Luiz Fux na presidência do Supremo Tribunal Federal. A operação de ontem é a maior a envolver as relações entre escritórios de advocacia e gabinetes de tribunais superiores em Brasília. A denúncia desfia tráfico de influência e exploração de prestígio, ferramentas com as quais, há décadas, se desmonta o combate à corrupção.

Derivada da delação do ex-presidente da Fecomercio, a denúncia, que envolve 26 advogados, expõe como essa teia operou a favor da manutenção do cartório do Sistema S por meio de triangulações montadas pelo ex-governador Sérgio Cabral.

Faixa vermelha e preta de jiu-jitsu, Luiz Fux já foi feito de refém num assalto a seu apartamento de Copacabana em 2003, quando ainda estava no STJ. A partir de hoje, é esta teia de interesses que tentará fazer do ministro, prisioneiro.

A presença do advogado do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva na mesma operação que também alvejou o ex-advogado do presidente Jair Bolsonaro sugere que a esquerda montou na cavalgada anti-Lava-Jato sem olhar os dentes. O bom discurso de Lula no dia da pátria não rima com uma retaguarda jurídica que mora no mesmo prédio dos maiores doleiros de São Paulo.

Entre a defesa de Lula e Bolsonaro estende-se uma lista de advogados, entre os quais, filhos de ministros e ex-ministros que ascenderam ao STJ e ao TCU com o apoio de lideranças que, desde o governo José Sarney, personificam, em revezamento, o Centrão.

José Serra* - Pôr as cidades nos trilhos

- O Estado de S.Paulo

A crise fiscal, agravada pela pandemia, exige a revisão de paradigmas obsoletos

As políticas voltadas para a superação da pobreza e a redução da desigualdade social tendem a promover transferências de renda ou programas setoriais, como os de educação e saúde. Tenho dedicado grande parte da minha vida pública ao fortalecimento das políticas e instituições de saúde. Mas o bem-estar das pessoas não depende apenas disso. A qualidade de vida propiciada pela cidade é igualmente importante.

Na escala do bairro, um espaço bem organizado permite o acesso a pé ou por bicicleta a equipamentos públicos, como praças, escolas, postos de saúde, quadras esportivas e teatros, além de serviços e comércio, que asseguram consumo e empregos próximos à moradia.

Na escala da cidade, a infraestrutura fundamental é a de transporte coletivo, que garante ao cidadão acesso a empregos mais distantes e a equipamentos de maior porte, como hospitais, universidades, estádios de futebol e parques.

É por isso que atualmente se procura, no mundo todo, promover um desenvolvimento urbano mais compacto, em que bairros densos e diversificados se conectam entre si por redes de mobilidade de alta capacidade, como metrôs, trens de superfície, veículos leves sobre trilhos (VLT) e ônibus de trânsito rápido (BRT, de bus rapid transit).

Eugênio Bucci - 70 anos na semana que vem

- O Estado de S.Paulo

No 70.º aniversário da TV brasileira a carranca do arbítrio ainda rosna

Falarão de Hebe Camargo. Quando foi ao ar o primeiro programa da primeira estação de televisão brasileira, a TV Tupi, na noite de 18 de setembro de 1950, Hebe estava lá, na companhia de Lima Duarte e Lolita Rodrigues. Falarão dos festivais da Record, que no final dos anos 1960 redesenharam as feições do cancioneiro popular. Falarão da estreia do Jornal Nacional, em 1969, e da Copa do Mundo de 1970.

Talvez alguns festejem (deveriam festejar) a novela Gabriela, da Rede Globo, que nos trouxe cores mais verdadeiramente intensas do que aquelas que a gente via nas calçadas, nas beiras de rio, nas tardes compridas do verão da Alta Mogiana. (A TV em cores chegou como uma luz mais que solar: realizou a façanha de empalidecer a natureza.) Encarnada por Sônia Braga, a coloridíssima Gabriela subia no telhado de vestido curtinho, azul e branco, para recuperar uma pipa (raia) e fazer despencar o queixo alheio: do Seu Nacib, de toda a cidade cenográfica e dos pais de família do Brasil de ponta a ponta.

Na semana que vem, quando a televisão brasileira comemorar seu 70.º aniversário, lembranças afetivas e afetuosas encherão as telas eletrônicas. Vai ser bom de (re)ver, desde que não abusem demais das pieguices.

Vai ser bom, mas também vai ser ruim. Dificilmente nós veremos o que nunca vimos na televisão, quer dizer, dificilmente veremos aquilo que a exuberância imagética dos monitores pátrios sempre encobriu. No correr dos primeiros anos da década de 1970, quando este jornal aqui penava sob censura estúpida, a televisão brasileira contornava diplomaticamente os contratempos com a tesoura federal e brilhava solta, via Embratel, envolvendo com seu arco-íris subserviente o bueiro moral e institucional da ditadura militar. Sobre isso não nos falarão em demasia.

A televisão brasileira deu unidade imaginária, festiva e deslumbrada a uma nação desgrenhada pela corrupção dos costumes cívicos, pelo desvio de poder, pelo enriquecimento subterrâneo dos apaniguados, pela ignorância oficializada, pela prática diuturna da tortura política, pelo assassinato de dissidentes e, finalmente, pela ocultação sistemática, disciplinada e industrializada de cadáveres. Isso não vai ser tão realçado na festa da semana que vem. Talvez um ou outro entrevistado faça menção, mas sem alarde. Quando os videoteipes de estimação cintilarem na tela, nós não assistiremos a explicações a respeito do lado triste da história. O que a TV sonegava sonegado seguirá.

Vinicius Torres Freire - Entenda os fatos da revolta do arroz

- Folha de S. Paulo

País já teve carestia maior de alimentos desde 1999, mas empobreceu muito

O Brasil já passou por carestias maiores dos preços dos alimentos. Qual o motivo da revolta com a inflação do arroz? Na média, os brasileiros não éramos tão pobres desde 2008, o desemprego é imenso, provavelmente o maior em décadas; mesmo com o auxílio emergencial, o medo e o sofrimento devem estar nos picos da nossa curva de misérias.

A inflação da comida está entre as 20% maiores desde 1999, quando o país adotou câmbio flutuante e metas de inflação. O preço dos alimentos subiu mais em meses de 2003, 2008, 2013 e 2016. Para os cereais, 2001 e 2012 também foram anos ruins. A inflação geral, porém, é a quinta menor desde 1999 (no acumulado em 12 meses).

O dólar caro determina a variação do preço dos alimentos e dos cereais ou do arroz em particular? Um tanto. Uma estatística com dados precários indica que, bidu, consumo mundial e safras também fazem o preço. Por exclusão, nota-se que o consumo doméstico deve ter algum efeito. Mas não há dados detalhados sobre a variação do consumo no país.

A Associação Brasileira da Indústria do Arroz diz que não tem tais informações. Algumas das maiores indústrias produtoras preferem não divulgar os números das suas vendas. Segundo dados da Secretaria de Política Agrícola do Ministério da Agricultura, o Brasil produziria 11,17 milhões de toneladas de arroz na safra 2019/2020, consumiria parte disso (10,8 milhões) e começaria o período com um estoque de 554 mil toneladas.

Ribamar Oliveira - Para furar o teto, só com restos a pagar

- Valor Econômico

Questão é saber se há disposição política de seguir um caminho que tem riscos jurídicos envolvidos

Neste momento, senadores e deputados discutem alternativas que possibilitem a criação de um programa de renda básica para vigorar a partir de janeiro do próximo ano, a ampliação dos investimentos públicos, o fortalecimento necessário do SUS após a pandemia e a manutenção da desoneração da folha de salários para 17 setores da economia. Como acomodar tudo isso no Orçamento de 2021, mantendo o teto de gastos da União? A resposta simples seria cortando outras despesas. Esse caminho, no entanto, é considerado por muitos como politicamente difícil e esbarra em obstáculos constitucionais e legais.

Os parlamentares ficaram interessados em um artigo publicado na “Folha de S.Paulo”, no domingo passado. Nele, os economistas Felipe Salto, Daniel Couri, Paulo Bijos, Pedro Nery e a professora Cristiane Coelho, do IDP, sugerem que uma saída, ao menos temporária, é romper o teto de gastos, ou seja, colocar no Orçamento do próximo ano despesas em valor superior ao limite permitido, o que acionaria os gatilhos previstos na própria regra do teto, definida pela Emenda Constitucional 95. O texto foi exaustivamente lido por deputados, senadores e seus assessores nesta semana.

Toda a discussão gira em torno de dois parágrafos do artigo 107, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT). Um deles diz que a proposta orçamentária elaborada pelo governo precisa demonstrar o cumprimento do limite da despesa fixado para o ano. O outro estabelece que as despesas autorizadas na lei orçamentária aprovada pelo Congresso Nacional não poderão exceder os valores máximos estabelecidos pela regra do teto.

Em linguagem mais simples: o governo não pode enviar para apreciação de senadores e deputados uma proposta orçamentária que fure o teto de gastos e eles, por sua vez, não podem autorizar despesas que excedam os limites estipulados pela EC 95. Outro parágrafo proíbe a abertura de crédito suplementar ou especial que amplie o montante total de despesa autorizado.

Celso Ming - Inflação real e inflação percebida

- O Estado de S.Paulo

Nada indica disparada dos preços que levante preocupações especiais com eventual erosão do poder aquisitivo da população

A inflação de agosto medida pelo IPCA foi de apenas 0,24%, mais baixa do que o 0,36% de julho e, no entanto, a sensação de alta de preços provocou inesperada tensão política que lembrou os velhos tempos da hiperinflação.

Os dirigentes dos supermercados pediram providências urgentes do governo para conter os preços dos produtos da cesta básica. Em resposta, o presidente Bolsonaro, às vésperas das comemorações de 7 de Setembro, fez apelos ao patriotismo dos empresários para que segurassem as remarcações.

Esses apelos sugeriram que o principal instrumento de controle dos preços teria mais a ver com o comportamento humano e com a moralidade do que com os imperativos da lei da oferta e da procura.

De todo modo, nada indica uma disparada dos preços que levante preocupações especiais com eventual erosão do poder aquisitivo da população. A alta acumulada no ano até agosto foi de apenas 0,7%, e os analistas de economia consultados pelo Banco Central para o Boletim Focus apontam, para todo o ano de 2020, uma inflação de 1,78%. Por que, afinal, a apreensão?

Por trás dela há algumas distorções. A primeira tem a ver com uma alta real de itens importantes da cesta básica. Os preços do arroz, por exemplo, acumularam avanço de 19,2% nestes primeiros oito meses do ano. E os do óleo de soja, o mais consumido pela população, alta de 18,6%.

Míriam Leitão - Governo pega a estrada velha

- O Globo

O Brasil já conhece os passos dessa estrada, sabe que não vai dar em nada. Sabe de cor os desvios, desvãos, delírios que podem levar à ideia de que algum ente governamental possa intervir em formação de preços de supermercados. Não dá para acreditar que o ministro Paulo Guedes não tenha tido força para explicar o básico ao governo Bolsonaro. A notícia de que o Ministério da Justiça notificou os supermercados pela alta dos alimentos seria cômica se não fosse séria. A inflação está baixa, não há uma elevação generalizada do índice. E, mesmo que houvesse, o Brasil sabe há 30 anos que não é por aí.

Na economia nada há de mais obsoleto do que isso que nos assombrou na segunda metade dos anos 1980, a tentativa de controle de preços e a acusação a supermercados. Depois de várias tentativas que sempre deram errado, o Plano Real escolheu um outro caminho, novo e elegante, que enfim derrotou a hiperinflação no Brasil. Houve derrapagens no meio do caminho, como o congelamento da gasolina no governo Dilma e a intervenção na energia. Deu errado. Na sucessão de retrocessos que nos atinge no governo Bolsonaro, só faltava mesmo essa, o Ministério da Justiça dar prazo para supermercado explicar o preço do arroz porque o presidente da República reclamou. Eu até lembraria que o ministro da Economia é liberal, mas isso nem importa a esta altura. Não se trata de incoerência em relação a uma escola econômica. É uma questão de bom senso e saber — palidamente que seja — a história do Brasil.

Alternância do poder no Congresso – Editorial | O Estado de S. Paulo

Que a Constituição seja protegida e respeitada, proibindo o casuísmo da reeleição dos presidentes da Câmara e do Senado. A alternância do poder é necessária

Muitas vezes, o texto da Constituição de 1988 é criticado por ser amplo demais, o que daria margem a interpretações conflitantes. Ao mesmo tempo, é de reconhecer que, em muitas passagens, o legislador constituinte foi claro, sem possibilidade de leituras divergentes. É o que se vê, por exemplo, em relação à proibição de reeleição dos presidentes da Câmara e do Senado. “Cada uma das Casas reunir-se-á em sessões preparatórias, a partir de 1.º de fevereiro, no primeiro ano da legislatura, para a posse de seus membros e eleição das respectivas Mesas, para mandato de dois anos, vedada a recondução para o mesmo cargo na eleição imediatamente subsequente”, diz o art. 57, § 4.º da Constituição.

No entanto, a despeito da clareza do texto constitucional, há algum tempo se observam tentativas para autorizar a reeleição dos presidentes da Câmara e do Senado na mesma legislatura. Ainda no ano passado, diante da notícia dessas movimentações, o presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ), desautorizou qualquer ação para mantê-lo no cargo. “Se ele (Alcolumbre) vai tratar desse tema no Senado, vai depois colocar um problema na Câmara”, disse Maia ao Estado. “Eu não sou candidato à reeleição em hipótese nenhuma.”

No mês passado, em Ação Direta de Inconstitucionalidade proposta pelo PTB, o Senado, por meio de sua assessoria técnica, emitiu um parecer heterodoxo, defendendo, a despeito dos termos do art. 57 da Constituição, a possibilidade de reeleição dos presidentes da Câmara e do Senado.

O sequestro do Brasil – Editorial | O Estado de S. Paulo

País continua refém da disputa retórica entre o ruim e o pior, isto é, petismo e bolsonarismo

O Brasil continua refém de uma disputa retórica entre o ruim e o pior, que nada tem a ver com a construção de um país democrático e moderno. O presidente Jair Bolsonaro e seu antípoda, o petista Lula da Silva, aproveitaram o Dia da Independência para terçar as conhecidas armas do autoritarismo e do atraso, reiterando a miséria ideológica produzida pelo lulopetismo e pelo bolsonarismo.

“No momento em que celebramos essa data tão especial, reitero, como presidente da República, meu amor à Pátria e meu compromisso com a Constituição e com a preservação da soberania, democracia e liberdade”, discursou Bolsonaro em rede de rádio e TV. Ora, o respeito à Constituição e à democracia é obrigação precípua de todas as autoridades do País, aliás de todo e qualquer brasileiro, e não deveria ser necessário o presidente da República vir a público para confirmar sua disposição de cumpri-la. No caso de Bolsonaro, contudo, é mais que necessário, pois seu histórico de ataques às instituições republicanas, de apoio a movimentos golpistas e de agressão sistemática ao decoro indica profundo desrespeito à Constituição e à democracia.

Assim, o anunciado compromisso de Bolsonaro com a democracia e a Constituição foi bem recebido em parte do meio político – seria mais uma prova de sua disposição de abandonar a truculência que lhe é característica. Mas, como tudo no bolsonarismo, um movimento de natureza intrinsecamente autoritária, as palavras “democracia” e “liberdade” ganham significado bastante diverso daquele consagrado no léxico democrático.

No discurso, Bolsonaro disse que “o sangue dos brasileiros sempre foi derramado por liberdade”. Citou, como exemplos desse heroísmo, a Guerra do Paraguai, a ação da FEB na 2.ª Guerra e, pasme o leitor, o golpe militar de 1964. Ou seja, o presidente equiparou a mobilização militar do País contra inimigos externos à instalação de um regime de força no Brasil para combater inimigos internos – a “sombra do comunismo”, em suas palavras. Isso é o bolsonarismo em seu estado puro: a “liberdade” e a “democracia” que o presidente diz defender são restritas aos brasileiros que andam na linha – os demais, como Bolsonaro mesmo já disse em outros tempos, deveriam ser “fuzilados”.

Discrição é força – Editorial | Folha de S. Paulo

Saliência política foi aspecto mais criticável da presidência Toffoli no STF

O Supremo Tribunal Federal tem passado por sucessivas provas de fogo. Em parte pelo modo como a Carta de 1988 definiu a corte, árbitro final de um feixe monumental de conflitos sociais, em parte pela forma como o agir dos ministros a foi moldando ao longo do tempo, ela não passaria pelo vendaval que se abate sobre o país desde 2013 sem solavancos nem críticas.

Nesse quadro se insere a passagem de Dias Toffoli pela presidência do colegiado de 11 juízes, no biênio que se encerra. No que pôde conferir de marcas pessoais a um processo que, em boa medida, transcende a individualidade do coordenador dos trabalhos do STF, ele lega uma condenável saliência, de um lado, e a valorização elogiável de processos que dão mais efetividade e transparência à corte.

A pauta de atividades do colegiado ganhou previsibilidade com o assentamento de agendas semestrais, divulgadas de antemão. O impulso aos julgamentos virtuais, nos quais algumas classes de ação têm apreciação célere, conferiu dinamismo e retirou do presidente um pedaço do poder pessoal de ditar o andamento dos julgados.

Populismo não reduz pressão inflacionária – Editorial | O Globo

Bolsonaro fala no ‘patriotismo’ dos supermercados, como se isso houvesse funcionado alguma vez

Não é a primeira vez nem será a última que os alimentos encarecem por um aumento de demanda, interna e externa, como o que acontece nos últimos meses. Não deve causar espanto, trata-se de uma lição prática do funcionamento da lei da oferta e da procura. A inflação como um todo continua baixa. O IPCA de agosto, divulgado ontem pelo IBGE, foi de 0,24%, acumulando alta de 2,44% em 12 meses, ainda abaixo da meta de 4%, estabelecida para este ano, inferior mesmo ao limite mínimo de 2,5%.

É preciso consultar a composição do índice para constatar que há nos alimentos alguma pressão inflacionária. Muito à frente dos 2,44% da inflação anualizada, o conjunto de alimentos encareceu 8,83% no período. Entre eles, há casos extravagantes: nos 12 meses encerrados em julho, as carnes aumentaram 75,9%; o feijão carioca, 47,6%; o arroz, 18,3%; o açúcar, 13,1%; e o óleo de soja, 10,7%. É automático o aperto no orçamento das famílias. A situação piora com recessão e desemprego.

Governo busca dividendos com aumentos dos alimentos – Editorial | Valor Econômico

Bolsonaro costuma dizer que não entende de Economia - o momento é oportuno para que ele deixe a questão a cargo dos especialistas

Um alinhamento incomum de fatores produziu a disparada de preços de vários alimentos. As causas dos aumentos são bem conhecidas, mas o presidente Jair Bolsonaro, em campanha eleitoral, resolveu obter ganhos políticos com a carestia setorial. Chamou os donos de supermercados para uma conversa, depois sugeriu a eles que operassem com margem perto de zero e convidou youtubers mirins para sabatiná-lo e à ministra da Agricultura, Tereza Cristina, sobre os preços da comida.

Os atos tiveram sequência ontem, com a notificação da Secretaria Nacional do Consumidor, ligada ao Ministério da Justiça, André Mendonça - candidato a uma vaga no STF e faz-tudo do presidente - para que empresas ligadas à produção e distribuição de alimentos expliquem os aumentos. A palavra mágica “preços abusivos”, até então não usada por ninguém, nem pelo presidente, surgiu na declaração de Juliana Domingues, titular da secretaria, que pretende “avaliar toda a cadeia de produção e as oscilações decorrentes da pandemia”.

Na prática, os supermercados deverão comprovar suas respostas com notas fiscais, indicando quais produtos da cesta básica tiveram maior variação no último mês, os três principais fornecedores deles e o preço médio que colocaram. A suspeita pula à frente dos fatos, que estão em todos os jornais, com as devidas explicações. Conversar com a equipe dos Ministérios da Agricultura e da Economia, a poucos passos de distância, seria mais produtivo e esclarecedor. Mas trata-se de ajudar o presidente a manter sua imagem em alta.

Esperança cega na vacina ignora percalços inerentes à ciência – Editorial | O Globo

Suspensão de testes mostra que não há milagre: o caminho até a vitória contra a Covid promete ser longo

A corrida pela vacina contra o novo coronavírus tem quebrado todos os recordes científicos e tecnológicos. A perspectiva de que as primeiras candidatas vençam todas as fases de pesquisa em um ano — vacinas anteriores levaram no mínimo cinco — enche a humanidade de esperança. A vacina é vista como um milagre ou passe de mágica, capaz de fazer a vida voltar ao normal. Políticos se aproveitam disso. Nos Estados Unidos, Donald Trump planeja começar a vacinar a população antes da eleição de novembro. No Brasil, o general-ministro interino Eduardo Pazuello diz que o governo terá a vacina em janeiro. Mas, hoje, nem Trump, nem Pazuello, nem ninguém pode prometer nada.

Não que a esperança seja de todo infundada. Das 180 candidatas, nove estão na terceira e última fase de pesquisa, quatro delas em testes no Brasil. Quanto mais tentativas, maior a chance de alguma dar certo. Só que a realidade está sujeita a percalços. É na fase três, quando testes atingem dezenas de milhares, que aparecem os efeitos menos prováveis. É o que demonstra a suspensão, anunciada anteontem, dos testes da vacina desenvolvida pela anglo-sueca AstraZeneca em parceria com a Universidade de Oxford, em virtude da reação adversa num paciente.

Trata-se de um alerta: pesquisas mais velozes também acarretam riscos maiores. É essencial não acelerar a aprovação, para evitar repetir fracassos trágicos, como a vacina contra um vírus respiratório associada à morte de duas crianças em 1966, ou uma vacina contra o rotavírus recolhida em 1999, 14 meses depois de aprovada, por ampliar o risco de uma rara condição intestinal.

Ferreira Gullar, que faria 90 anos, é homenageado com lives e novos livros

Poeta trabalhou no 'Estadão' e praticava sua poesia em laudas; leia poema inédito de Ferreira Gullar

Ubiratan Brasil | O Estado de S.Paulo

Em 1962, quando já era reconhecido como um poeta e crítico de artes plásticas de importância, Ferreira Gullar foi admitido como redator da sucursal do Rio de Janeiro do Estadão. “Sou copidesque, isto é, reescrevo o que os outros escrevem”, explicou ele essa função para Clarice Lispector, que o entrevistou em 1977, logo depois de seu retorno do exílio. Seu vínculo com o jornal fora mantido no período em que foi obrigado a viver fora e, na redação, entre uma matéria e outra, Gullar praticava sua poesia em laudas, como era conhecida a folha de papel na qual os jornalistas datilografavam seus textos, em máquinas de escrever.

Em uma dessas laudas, Gullar escreveu O Sentido da Vida, poema inédito (veja abaixo), escrito entre os anos 1960 e 70, e que sua filha, Luciana Aragão Ferreira, descobriu no arquivo deixado pelo escritor, em seu apartamento no Rio, e que deverá figurar em uma publicação, uma das diversas iniciativas já elaboradas para festejar a obra do poeta, cujos 90 anos de nascimento são lembrados nesta quinta-feira, 10 – ele morreu em dezembro de 2016, em decorrência de uma pneumonia.

Gullar (pseudônimo adotado depois de mudar a grafia do sobrenome da mãe, Goulart) transitou com regularidade e eficiência na ficção, na crônica, na pintura e na crítica (especialmente das artes plásticas), mas encontrou na poesia sua mais expressiva forma artística. Era no verso que o maranhense José Ribamar Ferreira se sentia realmente um homem livre. Basta observar sua obra mais conhecida e divulgada, Poema Sujo. Considerada por muitos como uma das principais realizações poéticas do século passado, foi escrita em 1975, quando o poeta ainda vivia forçosamente exilado em Buenos Aires. Uma rápida leitura e a constatação de que o poema é um doloroso canto em favor da liberdade.

Escrito entre maio e outubro daquele ano, durante o período em que o poeta viveu exilado (e isolado) em Buenos Aires, o Poema Sujo foi gravado por Gullar na época, a pedido de Vinicius de Moraes, que o encontrou na Argentina. Trazida clandestinamente para o Rio, a fita cassete foi ouvida em audições entre amigos e, logo, trechos foram transcritos e distribuídos pela cidade, tornando-se um clássico instantâneo.

Tal história figura no livro Rabo de Foguete, memórias sobre o período exilado, que Gullar publicou em 1998, e deverá constar também na biografia que o jornalista Miguel Conde prepara sobre o escritor, a ser publicada pela Companhia das Letras no ano que vem.

Já a organização da obra de Gullar, especialmente o material inédito, vem sendo feita pela editora Maria Amélia Mello, que manteve um contato muito próximo do poeta ao longo de sua vida, e por Celeste Aragão Ferreira, neta do escritor que acompanhou a rotina de trabalho do avô em seus últimos quatro anos. As duas vão cuidar especialmente dos diários que o poeta iniciou em 1950. “São muitos cadernos e vamos iniciar o trabalho logo após a pandemia amenizar – Celeste, no momento, está lendo todo o material”, informa Maria Amélia.

Poesia | Ferreira Gullar - Evocação de silêncios

O silêncio habitava
o corredor de entrada
de uma meia morada
na rua das Hortas
o silêncio era frio
no chão de ladrilhos
e branco de cal
nas paredes altas
enquanto lá fora
o sol escaldava
Para além da porta
na sala nos quartos
o silêncio cheirava
àquela família
e na cristaleira
(onde a luz
se excedia)
cintilava extremo:
quase se partia
Mas era macio
nas folhas caladas
do quintal
vazio
e
negro
no poço
negro
que tudo sugava:
vozes luzes
tatalar de asa
o que
circulava
no quintal da casa
O mesmo silêncio
voava em zoada
nas copas
nas palmas
por sobre telhados
até uma caldeira
que enferrujava
na areia da praia
do Jenipapeiro
e ali se deitava:
uma nesga dágua
um susto no chão
fragmento talvez
de água primeira
água brasileira
Era também açúcar
o silêncio
dentro do depósito
(na quitanda
de tarde)
o cheiro
queimando sob a tampa
no escuro
energia solar
que vendíamos
aos quilos
Que rumor era
esse ? barulho
que de tão oculto
só o olfato
o escuta ?
que silêncio
era esse
tão gritado
de vozes
(todas elas)
queimadas
em fogo alto ?
(na usina)
alarido
das tardes
das manhãs
agora em tumulto
dentro do açúcar
um estampido
(um clarão)
se se abre a tampa.

- Ferreira Gullar, em "Muitas vozes", 1999.