quarta-feira, 30 de setembro de 2020

Ricardo Noblat - Trump põe em xeque a confiança dos americanos na democracia

- Blog do Noblab | Veja

Biden venceu o debate, segundo pesquisa de rede de televisão

Nunca antes na história dos Estados Unidos um presidente da República pôs em xeque a confiança popular no sistema eleitoral e na própria democracia como Donald Trump, ontem, no primeiro dos três debates que travará com o senador Joe Biden, candidato do Partido Democrata, e vice de Barack Obama durante 8 anos.

Trump denunciou que as eleições de novembro próximo estão sendo fraudadas para impedi-lo de se reeleger, culpou os democratas e recusou-se a antecipar sua posição caso seja derrotado. Biden afirmou que aceitará o resultado, qualquer um. Trump calou-se mesmo quando provocado mais de uma vez.

Pesquisa da Rede de Televisão CBS apontou Biden como vencedor do debate – 48% a 41%. A diferença de sete pontos percentuais é a mesma das pesquisas mais recentes de intenção de voto. Na prática, isso pode significar que o debate não mexeu com a pequena parcela dos eleitores que ainda se dizem indecisos.

Seguramente, foi o pior debate entre candidatos à presidência dos Estados Unidos desde o primeiro transmitido pela televisão entre John Kennedy (Democrata) e Richard Nixon (Republicano) no início dos anos 60 do século passado. Nixon perdeu. Kennedy não completou o mandato porque morreu assassinado a tiros.

Trump comportou-se como um moleque de rua disposto a ganhar a briga aos gritos ou na mão. Biden, como um senhor respeitável e idoso, desacostumado com o estilo agressivo do adversário. Mas, em alguns momentos, Biden também bateu em Trump, a quem acusou de racismo, chamou de palhaço e mandou fechar a boca.

Durante uma hora e meia, enquanto Biden falava olhando para a câmera, Trump falava olhando para ele. Interrompeu-o o tanto que pôde, e quando advertido pelo mediador do debate, bateu boca com o mediador. Poucas vezes, Biden conseguiu completar seu raciocínio. E perdeu as melhores chances de encurralar Trump.

Uma delas foi quando o mediador perguntou sobre quanto cada um pagou de Imposto de Renda no ano passado. Biden respondeu que pagou US$ 299,3 mil. Trump negou-se a responder. Segundo o jornal The New York Times, Trump pagou apenas US$ 750 em 2016 e 2017, menos do que um professor de ensino médio.

O debate de pouco serviu para que os americanos façam uma ideia de como será um segundo governo Trump ou o primeiro de Biden. O Brasil entrou em cena por causa da devastação da Amazônia. Biden prometeu US$ 20 bilhões para combater a devastação e disse que haverá retaliações se ela continuar.

Trump, de quem o presidente Jair Bolsonaro se diz amigo e admirador, preferiu o silêncio.

Merval Pereira - Paulo Guedes em seu labirinto

- O Globo

Aquela cena em que o ministro da Economia Paulo Guedes foi gentilmente retirado de uma entrevista pelo ministro-chefe da Secretaria de Governo Luiz Eduardo Ramos e pelo líder do governo Ricardo Barros revelou, por imperícia dos dois primeiros, a desavença interna entre os assessores mais próximos do presidente Bolsonaro.  

Sem se preocupar com as aparências, o líder Ricardo Barros explicitou dias depois, durante a apresentação do desastrado arranjo feito para bancar o Renda Cidadã, como se desenrola o processo de decisão no governo hoje. O ministro Paulo Guedes representa a opinião da Economia, já não a do governo, perdendo formalmente a qualidade de superministro.  

Barros e o ministro Ramos negociam com os partidos da base em nome do governo, levando em conta variáveis além da visão econômica. O consenso político é então levado para o presidente Bolsonaro, que bate o martelo. Foi assim que se deu a decisão sobre usar os precatórios e o Fundeb para financiar o Renda Cidadã, e a confusão foi geral.  

A perda de prestígio interno de Paulo Guedes é tamanha que foi Ricardo Barros quem conversou com representantes do mercado financeiro para tentar acalmá-los. Não deu certo, claro, porque não há como explicar que truques contábeis não são truques para especialistas em contas. Um dos participantes resumiu a situação trágica: “O líder do governo parece não ter noção da gravidade da situação”.  

Bernardo Mello Franco - Soldados de Bolsonaro

- O Globo

Jair Bolsonaro jurou que não se envolveria nas eleições municipais. Bastaram três dias de campanha para ver que essa promessa também ficará pelo caminho.

Embora não tenha conseguido criar seu próprio partido, o presidente já mergulhou nas duas disputas mais importantes do país. No Rio e em São Paulo, vai apoiar candidatos do Republicanos (ex-PRB), sigla do centrão ligada à Igreja Universal.

Na capital paulista, Celso Russomanno iniciou a campanha com uma visita a Bolsonaro no hospital. Ontem usou a primeira agenda de rua para prestar continência ao capitão. Disse que ele foi o único político a “estender a mão” aos pobres na pandemia.

Ao oficializar a chapa, o deputado já havia exaltado o trinômio “Deus, Pátria e Família”. O lema pertenceu ao integralismo e foi ressuscitado pelo bolsonarismo, neto bastardo do movimento de ultradireita dos anos 1930.

Elio Gaspari - Mandetta contou quase tudo

- O Globo / Folha de S. Paulo

Como em todo livro de memórias, ele fala bem de si e escolhe aqueles de quem fala mal

O ex-ministro Luiz Henrique Mandetta publicou suas memórias do poder. O livro chama-se “Um paciente chamado Brasil”. Seria mais preciso denominá-lo “Dois pacientes chamados Bolsonaro e Mandetta”.

Mandetta ficou 16 meses no Ministério da Saúde, teve um desempenho estelar durante a pandemia e acabou demitido por suas virtudes e por defeitos alheios. Como em todo livro de memórias, fala bem de si e escolhe aqueles de quem fala mal: Bolsonaro, Paulo Guedes e Onyx Lorenzoni, nessa ordem.

Sua análise do comportamento do capitão diante da pandemia é exemplar. Médico, ele pensou em ser psiquiatra e cursou um ano dessa matéria, até se decidir pela ortopedia. Diante da Covid, Bolsonaro passou por três fases de manual. Primeiro a negação (“uma gripezinha”), depois a raiva do médico (Mandetta), finalmente o milagre (a cloroquina). É um retrato perfeito, no qual o médico-ministro tenta mostrar ao presidente o tamanho do problema, não consegue ser ouvido e entra num desastroso processo de fritura. Quando avisava que poderiam morrer mais de cem mil pessoas, os áulicos contavam ao presidente que essa conta era exagerada. Seria coisa de quem queria derrubar o governo. Quem? O embaixador chinês.

Roberto DaMatta - Eça de Queiroz e os políticos


- O Globo

Na obra do escritor, os políticos lusos nada devem aos nossos

Eu li Eça de Queiroz (1845-1900). Atravessei com gosto “O crime do Padre Amaro”, “Os Maias” e “O Primo Basílio”.

Tomei essas obras como espelhos do viés português de dar sentido à vida. Um grande pessimismo, um toque profundo de autorrejeição; um mal-estar sem arrependimentos ou punições, relativamente às transgressões e aos tabus perpetrados pelos protagonistas, como é o caso do rompimento do voto de castidade, da indução ao aborto e do abandono da vítima em “O crime do Padre Amaro”; e da paixão incestuosa dos irmãos nos “Maias”. Nesses livros, e em especial no “Primo Basílio”, há também a reversão não intencional e irônica de atos realizados com óbvias intenções.

Traço de um grande escritor e, ousaria dizer, da dimensão que, na ficção europeia, surge ao avesso do pensamento acadêmico, um pensamento em que os determinismos evolucionistas são dominantes e definitivos. O pensamento revolucionário de Comte, Darwin, Marx, Morgan e Engels, vale notar, situa-se no mesmo horizonte histórico dessas obras de Eça de Queiroz,

Na ficção, apreciamos as tramas, mas não sabemos o resultado em que seus personagens se meteram; ao passo que, nos evolucionismos de cunho biológico ou histórico, tudo seria previsto. O que é transgressão na literatura seria revolução ou etapa na sociologia, na economia e na ciência política. Enquanto os romances podem terminar no vácuo de uma ausência de sentido, as teorias socio-históricas anunciam a evolução da Humanidade...

Voltando ao Eça, “O Primo Basílio” foi o livro que mais me impressionou, não somente pelo triângulo adúltero entre Basílio, Luísa e o marido, Jorge; mas pela irônica redefinição dos elos entre Luísa (como dona da casa) e a sua empregada, Juliana, que, interceptando um bilhete trocado entre Basílio e Luísa, inverte o seu papel e obriga a patroa a fazer serviços domésticos. Há uma dupla inversão: a de Luísa, Basílio e Jorge; e a de Juliana, Luísa e Jorge. Uma dubiedade fundada em elos morais semelhantes aos do padre traidor dos votos de castidade e, nos Maias, aos do incesto de Carlos com sua irmã.

Luiz Carlos Azedo - A segunda onda

- Nas entrelinhas | Correio Braziliense

Alguma transferência de renda precisa ser assegurada à população mais pobre no próximo ano, e o Congresso precisa encontrar uma saída. O governo não quer cortar na própria carne

Tudo indica que realmente está havendo uma segunda onda da pandemia na Europa — principalmente na Inglaterra, na Espanha e na Itália —, mas não se pode afirmar, ainda, que o mesmo esteja ocorrendo no Amapá, no Amazonas e em Roraima, onde o número de casos voltou a subir. A média nacional de transmissão da pandemia abaixo de 1/1 indica que o pior já passou, realmente, embora o número de casos confirmados continue muito alto. A sensação é de que estamos no meio de uma montanha russa, que parece não tem fim. São 142, 2 mil mortes e 4,7 milhões de casados confirmados até ontem, número só ultrapassado pelos Estados Unidos.

A média móvel de mortes nos últimos sete dias foi de 678 óbitos, o que dá uma média de 28 mortos por hora. Mas é um número 15% menor do que o da semana anterior, o que realmente representa um alento. O presidente Jair Bolsonaro não está nem aí para essa discussão sobre segunda onda, naturalizou o número de mortes como fizeram os generais e políticos italianos em Trento e Trieste, até que a História, muitos anos depois, cobrou-lhes a responsabilidade.

Já comentei esse assunto por aqui, mas não custa relembrar. Quando a Itália entrou na I Guerra Mundial, em 1915, ao lado da “Entente” (aliança entre França, Inglaterra e Rússia), os políticos e militares italianos acreditavam que seria uma oportunidade de libertar Trento e Trieste do jugo estrangeiro e declararam guerra ao Império Austro-Húngaro. Centenas de milhares de jovens foram recrutados e lançados à batalha.

Ruy Castro* - Liberdade para se deixar exterminar

- Folha de S. Paulo

Bolsonaro diz que os índios estão cada vez mais iguais a ele. Se for, que destino terrível

Em live na última quinta-feira (24), Jair Bolsonaro declarou que o índio "evoluído" deveria ter "mais liberdade sobre sua terra". Ao seu lado, o destruidor do Meio Ambiente, Ricardo Salles, dava seu aval à ignorância presidencial. Essa fala ecoou uma anterior, de janeiro, em que Bolsonaro disse: "Cada vez mais o índio é um ser humano igual a nós. Vamos fazer com que o índio se integre à sociedade e seja realmente dono da sua terra indígena, isso é o que a gente quer".

A gente quem, cara-pálida? Nenhum antropólogo digno de seu diploma concordará com uma só de suas palavras. A "evolução" que Bolsonaro atribui ao índio é a de expor-se de vez às mazelas da civilização, como doenças, alcoolismo e mendicância. A "liberdade" que visa conceder-lhe, ao torná-lo "dono da sua terra", é a de deixar-se tapear e exterminar pelos invasores, pecuaristas, madeireiros, garimpeiros, grileiros, jagunços e outras categorias de quem ele, Bolsonaro, é tão próximo.

Monica De Bolle* - As eleições nos EUA

- O Estado de S.Paulo

Uma eventual vitória dos democratas nos EUA trará imensos desafios para o trumpismo de Bolsonaro

Esse artigo será publicado no dia seguinte do primeiro debate presidencial entre Trump e Biden. Portanto, escrevo sem poder dizer quem foi melhor ou pior, sem poder discorrer sobre eventuais gafes e mentiras, sem nada poder falar sobre o comportamento de cada um. Contudo, algo me parece quase certo nesses tempos em que a polarização não mais se dá no plano político, mas no plano das realidades: o debate pouca diferença fará nos resultados de novembro.

A polarização da realidade, tema de estudo recente a ser publicado no prestigiado periódico American Economic Review (ver Alesina, Alberto, Miano, Armando, e Stefanie Stantcheva (2020) “The Polarization of Reality”), está entre nós. Não mais se trata de posicionamentos políticos e/ou ideológicos distintos e dos juízos de valor a eles associados. Esse tipo de polarização foi atropelado por outro bem mais nefasto, aquele em que cada pessoa tem o seu mundo, a sua realidade. Para alguns indivíduos, a realidade é que não existe covid-19 – trata-se de uma grande conspiração do “Estado profundo” (“deep state”) para, bem, não se sabe articular muito bem para o quê. Parte dos que não acreditam na existência do vírus condenam o uso de máscaras e identificam nos democratas o maior perigo para a estabilidade norte-americana: “vão invadir os subúrbios!”; “vão roubar nossas casas!”; “armemo-nos contra a investida dos comunistas!”. Para ser honesta, o outro lado não é muito melhor. Vivo nos EUA, em Washington DC, uma bolha democrata. Republicanos são vistos como seres inferiores, de intelecto comprometido, vis e desalmados. Exagero um pouco, mas não muito.

Rosângela Bittar - O espectador

- O Estado de S.Paulo

 Jair Bolsonaro é espectador do seu governo. Assiste, sem sinais de compromisso

Uma parábola: naquela noite, sem pandemia, João Carlos, o Bulha, saudoso amigo, acompanhou com o olhar a entrada acintosa de jovens penetras em sua festa de aniversário, no Lago Sul. Com a voz abafada pelo som, batizou-os, às gargalhadas. Os Dezoito do Forte. E abordou o último deles, com a piada pronta. “Isto aqui está uma droga, sabe quem é o dono da casa e onde fica a bebida?” “Não”, respondeu-lhe o invasor, “mas vou saber e te aviso”. E misturou-se, tranquilamente, aos convidados.

Um governo: Jair Bolsonaro é espectador do que se passa em seu governo. Assiste a um espetáculo de palco e picadeiro sem sinais de compromisso. Os ministros se movimentam. Ele aplaude ou critica, desqualifica ou aprova, fecha a cara para um, abre a cara para outro. Aproxima-se de quem julga capaz de modular, afasta-se de quem manifesta opinião própria.

Nada de homogeneidade. Nem de fundamentos teóricos. O governo é uma obra aberta, experimental. O presidente gosta ou não gosta. Para formar opinião, inspira-se nas redes, onde é manobrado por 50 minorias. Daí as incoerências.

Na cena de segunda-feira, viu-se uma performance clássica. A do fiasco técnico sobre como financiar um programa eleitoral de renda mínima com pedalada precatória. Bem como, no mesmo cenário, o adiamento da reforma tributária, que embutia, para ver se colava, aumento de imposto. A ameaça de calote ficou na conta do ministro da Economia; o ônus da reforma, transferido ao Congresso, a quem cabe agora, por decisão do espectador, assumir autoria das maldades fiscais. Bolsonaro, isento de tudo, celebra a popularidade crescente.

Vera Magalhães - Tique-taque

- O Estado de S.Paulo

 Pressão das 12 badaladas do auxílio emergencial mexe com Bolsonaro

 Jair Bolsonaro se mostrou em todo o seu nervosismo nos últimos dias. Claro que há momento de descontração, em que o presidente da República faz “au-au” acompanhado de cãezinhos numa solenidade no Planalto, mas, como ele diz, “o tique-taque está correndo”. São as 12 badaladas do auxílio emergencial que se aproximam. E, depois que elas soarem, a carruagem da popularidade pode virar uma abóbora desajeitada.

A ansiedade do presidente com o iminente fim do auxílio sem que, até aqui, se tenha construído uma proposta sustentável para perenizar uma transferência maior de renda aos mais necessitados e carimbá-la com uma marca bolsonarista fica evidente em apelos como o desta terça-feira.

Como sempre faz, graças ao caráter bastante raso de suas reflexões, Bolsonaro deixou claro o que o aflige ao dizer que mercado, empresários, imprensa e Congresso não deveriam criticar cada proposta que o governo tenta para solucionar o problema da renda. Sabe que está num beco sem saída em que, se ficar, a queda da renda pega; se correr, o bicho do teto de gastos come.

Com pressa, Bolsonaro está visivelmente espremendo Paulo Guedes. O ministro, que se notabilizou por fazer previsões de datas para feitos grandiosos de sua pasta que nunca se realizam, sai esboçando ideias que não se concatenam umas com as outras e não param de pé.

Fernando Exman - A reeleição acima de tudo e de todos

- Valor Econômico

 Base aguarda início das nomeações para o primeiro escalão

 

 É perceptível, inclusive para quem vê de fora, quando começa a haver intimidade em um relacionamento. E isso se dá mesmo que a aproximação inicial entre as partes tenha sido conturbada, induzida por costumes ou necessidades momentâneas, e não como um meio de construir uma parceria de longo prazo fundamentada em princípios.


A convivência dá a oportunidade de um lado melhor conhecer as ideias do outro, a forma de agir, os planos. Em público, nem sempre as formalidades são deixadas para trás. Mas, no privado, pretensões individuais abrem espaço para a discussão de projetos comuns, que podem ou não se confirmar no transcorrer do tempo. Eventuais sinais de que o relacionamento se tornará abusivo não tardam a aparecer, para os mais atentos.


O governo Jair Bolsonaro e os partidos aliados vivem um momento assim. Depois de muito desprezar a política, o chefe do Poder Executivo sucumbiu. Percebeu que não teria mais como caminhar sozinho. Ao mesmo tempo, parece querer alguém ao seu lado que aceite se desgastar perante a sociedade em nome de algo maior, o seu governo, assumindo em público responsabilidades naturais do arrimo da família.


O problema do presidente é que a base está acostumada a flertar, lidar com crises e, com frequência, impor sua vontade. Sabe jogar e o vê como mais um político tradicional igual aos seus antecessores. Alguém que também só pensa em sua própria reeleição.


Líderes das siglas aliadas saem das reuniões com o presidente da República e com o ministro da Economia, Paulo Guedes, convencidos de que o governo trabalha neste momento primordialmente para permanecer no poder. Age em função do próximo pleito.


Não da eleição municipal. Em relação a esta, os presidentes e dirigentes das siglas aliadas não nutrem mais expectativas de que poderão contar com uma ampla ajuda de Bolsonaro. Concluíram que ele não irá se arriscar e vincular sua imagem a candidatos que, depois de eleitos, fatalmente enfrentarão severas dificuldades financeiras e operacionais.

Bruno Boghossian - Bolsonaro prepara terreno para evitar desgaste com fim do auxílio

- Folha de S. Paulo

Presidente lança discurso para os mais pobres e posa de vítima da inação dos políticos

Jair Bolsonaro tentou chutar para o lado a bomba-relógio em que se transformou o auxílio emergencial da pandemia. Preocupado com o impacto que o fim do pagamento deve ter sobre sua popularidade na virada do ano, o presidente fez uma jogada que pode reduzir parte das pressões sobre o Planalto.

O governo havia conseguido a proeza de apresentar um pacote completo de ideias ruins para bancar o novo programa social que deveria atender a uma parte dos beneficiários do auxílio. Depois que todas foram torpedeadas por parlamentares e investidores, Bolsonaro desempenhou seu papel favorito: posou de vítima e encenou um desabafo.

“O tempo está correndo, está o tique-taque aí correndo, está chegando janeiro de 2021. Precisamos de alternativa para aproximadamente 20 milhões de pessoas que não vão ter o que comer a partir de janeiro do ano que vem”, disse, nesta terça (29).

O presidente começou a preparar o terreno para se desviar de desgastes políticos caso a proposta de turbinar o Bolsa Família não saia do papel. Ele reclamou de “críticas monstruosas” aos planos para financiar o novo Renda Cidadã e se queixou da falta de alternativas para o programa –como se houvesse algum outro governo operando na praça.

Cristiano Romero - O que está por trás da “pedalada cidadã”

- Valor Econômico

 Estímulo oficial injetou o equivalente 9% do PIB na economia

A crise econômica provocada pela pandemia fez o Produto Interno Bruto (PIB) do país encolher 11,9% no primeiro semestre, desempenho equivalente ao dos países menos impactados pelo novo coronavírus. O mergulho poderia ter sido muito mais profundo se o governo e o Congresso Nacional não tivessem concordado em aprovar, rapidamente, o pagamento do auxílio emergencial de R$ 600, entre abril e agosto, a milhões de brasileiros em situação de vulnerabilidade e a concessão de estímulos fiscais a empresas.

Sabe-se que milhões de brasileiros e milhares de micro e pequenas empresas, principalmente no setor de serviços, não viram a cor do dinheiro oficial. Ainda assim, o desembolso feito pelo governo federal foi significativo. A economista Ana Paula Vescovi, ex-secretária do Tesouro Nacional e atualmente chefe da equipe macroeconômica do banco Santander, calcula que os estímulos injetaram cerca de 9% do PIB na economia.

 “A principal medida de apoio às famílias, o auxílio emergencial, chegou a 67 milhões de beneficiários, ou 64% da população economicamente ativa, com valor médio de R$ 845 por beneficiário entre abril e agosto”, diz Ana Paula em relatório enviado a clientes.

Nos dois primeiros meses da pandemia, as projeções de bancos e gestoras de recursos previam queda de até 9% do PIB neste ano. Agora, é difícil encontrar alguém ainda prevendo essa queda. No boletim Focus, do Banco Central, a mediana das expectativas do mercado para o PIB em 2020 está em 5,04%, sendo que, há quatro semanas, estava em 5,28%.

Ana Paula Vescovi e sua equipe no Santander revisaram sua projeção de PIB para este ano de -6,4% para -4,8%. Para uma economia que amargou recessão longa e profunda entre 2014 e 2016 e, na sequência, cresceu pouco mais de 1% entre 2017 e 2019, o cenário atual continua trágico, mas melhor do que se esperava há dois meses.

Míriam Leitão - Renda cidadã e o senador sem noção

- O Globo

Por Alvaro Gribel (interino)

Míriam Leitão está de férias

Desde que apresentou o programa Renda Cidadã, o senador Márcio Bittar (MDB-AC) tem defendido a proposta como um cidadão sem noção. Em inúmeras conversas e entrevistas nos dois últimos dias, Bittar tem deixado de cabelo em pé seus interlocutores, sejam eles jornalistas, economistas ou investidores do mercado financeiro. Sem nenhum constrangimento, é capaz de afirmar na mesma frase que “atraso no pagamento de dívida não é calote”, para depois acusar de “hipócritas” aqueles que entendem o contrário. Quanto mais Bittar fala, menor parece a chance de aprovação do novo programa de renda mínima.

 “O governo brasileiro está renegociando sua dívida”, justifica. Em qualquer lugar do mundo, o nome disso é calote, especialmente quando é feito de forma unilateral, sem negociação. No caso dos precatórios, o governo atrasará o pagamento mesmo após decisão judicial. Mas Bittar não se deixa abalar e complementa: “Você vai pagar praticamente um terço do que deve e dizer ao credor: O mundo entrou em uma crise e nós não saímos dela ainda, vamos ter que equacionar.” A fala contraria não apenas os bons costumes econômicos, como demonstra que a recuperação não é tão rápida quanto diz o governo, já que o Renda Cidadã só entraria em vigor no ano que vem.

Bittar disparou indiretas ao aliado Paulo Guedes. Disse que “o mercado não é Deus” e que em uma reunião com o governo fez questão de dizer “a um ministro” que se os investidores fossem tão inteligentes não teriam apoiado governos de esquerda no Brasil. Ainda assim, dividiu o ônus do projeto com a equipe econômica. “Não apresentaria uma proposta que não estivesse chancelada pela equipe econômica do governo do presidente Jair Bolsonaro, através do ministro Paulo Guedes.”

Vinicius Torres Freire - Pedalada de Bolsonaro acelera a piora das condições financeira do país

- Folha de S. Paulo

Não foi um bom mês em mercados financeiros relevantes do mundo, mas aqui foi pior

A Bolsa de São Paulo subia pouco antes de o governo anunciar seu projeto ciclístico, na segunda-feira. Desde que se soube da pedalada Bolsonaro-Guedes, a virada do Ibovespa foi de mais 5%. Desde o pico recente de 29 de julho, o principal índice de ações da bolsa perdeu mais de 11%.

E daí? O preço das ações depende também das taxas de juros, em alta desde inícios de setembro e que deram um salto desde o anúncio da pedalada do Renda Cidadã (a moratória dos precatórios e a mão grande no dinheiro do Fundeb). Deram um salto e continuam penduradas no galho. Até as taxas de prazos mais curtos, de um ano, ficaram salgadas.

Em geral, o preço das ações em baixa é um desestímulo para empresas que pensam em vender mais ações ou abrir capital (grosso modo, ninguém quer partilhar sua expectativa de lucros a preço de banana). É a manifestação de um sintoma mais extenso de cautela ou de retranca mesmo. Capital mais caro, é óbvio, desestimula investimentos, expansão dos negócios.

Claro que esses indicadores podem mudar em minutos, para baixo ou para cima. Um dia ou uma semana de remelexos ou mesmo de paniquitos do mercado financeiro não dizem grande coisa. No entanto, uns dois ou três meses de aperto das condições financeiras bastam para começar a engrossar o caldo da economia. “Condições financeiras”: juros, Bolsa, dólar, risco país etc.

O que a mídia pensa – Opiniões / Editoriais

Renda Cidadã traz novo fiasco para Bolsonaro - Opinião | O Globo

Proposta de expandir Bolsa Família esbarra na lei e revela dificuldade política do governo

Até a campanha eleitoral de 2018, Jair Bolsonaro nunca escondeu seu desprezo pelo Bolsa Família. Quando deputado, chamava o programa de “compra de votos mesmo”, dizia que tornava os beneficiários “eleitores de cabresto” do PT. Agora que o cabresto passou para a mão direita — e ele sentiu o gostinho da popularidade trazida pelo auxílio emergencial na pandemia —, expandir o Bolsa Família para criar o Renda Cidadã se tornou sua prioridade no Congresso.

A proposta de perpetuar o auxílio — numa faixa imaginada em torno de R$ 300 a pelo menos 20 milhões — furou a fila da reforma tributária e se transformou segunda-feira no mais novo fiasco protagonizado pelo Executivo, em parceira com sua base parlamentar movediça. O motivo é simples, conhecido há meses e incontornável: falta dinheiro.

A engenharia orçamentária apresentada para criar o Renda Cidadã tira recursos de três fontes: o próprio Bolsa Família (R$ 35 bilhões), o Fundeb (do fundo destinado à educação, o governo propõe extrair até 5%, algo como R$ 8 bilhões) e o adiamento de pagamento de precatórios (que seria honrado apenas até 2% da receita líquida, liberando outros R$ 39 bilhões). Fora os recursos do próprio Bolsa Família, as outras duas fontes são para lá de problemáticas.

Como o Fundeb não está incluído nas despesas sujeitas ao teto de gastos, tirar recursos dele é uma manobra evidente para driblar a lei. Uma emenda constitucional poderia mudar a regra. O problema, como diz o ministro do Tribunal de Contas da União (TCU) Bruno Dantas, é o “significado político para o compromisso com gestão fiscal responsável”. O próprio Congresso, ao aprovar o Fundeb em caráter permanente, rejeitou as tentativas do governo para usá-lo em seu novo programa social. Na prática, a proposta agora é fazer exatamente o que Bolsonaro disse não querer: tirar dinheiro dos pobres — que se beneficiam dos recursos na educação — para dar aos paupérrimos.

Quanto aos precatórios, o problema é ainda pior. Há entendimento pacificado no Supremo, para estados e municípios, que configura a manobra como “pedalada”. A Lei de Responsabilidade Fiscal exige que, para criar nova despesa, o governo corte outra ou aumente a receita. A proposta não faz nem uma coisa nem outra, só adia pagamentos devidos por lei. A OAB chamou-a de inconstitucional, falou em “calote” e “insegurança jurídica”. É previsível a enxurrada de contestações na Justiça.

Haveria alternativa para financiar o novo programa? Na análise da Instituição Fiscal Independente, ligada ao Senado, seria possível dobrar os recursos do Bolsa Família cortando subsídios, programas sociais ineficientes (como abono salarial ou seguro-defeso) e reduzindo salários e jornadas do funcionalismo. Nenhuma dessas brigas políticas o governo se dispôs a comprar.

O episódio demonstra, mais uma vez, a dificuldade política do Executivo para pôr em prática um plano consistente na economia. É preocupante, sobretudo, a prioridade ao Renda Cidadã, de caráter eleitoreiro, em detrimento da reforma tributária, urgente e necessária para resgatar o crescimento.

País precisa de governança mais eficaz para proteger meio ambiente – Opinião | O Globo

Legislação que protegia restingas e manguezais, revogada pelo Conama, deveria ser restabelecida

Inepto e negligente na preservação dos biomas, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, tem se revelado eficiente na estratégia deletéria de fazer “passar a boiada” sobre as normas ambientais, enquanto a atenção da sociedade se volta para a pandemia do novo coronavírus. A manobra, explicitada sem pudores na conturbada reunião ministerial do dia 22 de abril, ganhou nova vida na segunda-feira, quando Salles levou o Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), presidido por ele, a revogar duas resoluções que restringiam o desmatamento e a ocupação em áreas de restingas e manguezais. O desmonte da legislação abre caminho para empreendimentos turísticos e imobiliários. Por ora, os efeitos da medida estão suspensos por uma liminar concedida ontem pela Justiça Federal do Rio.

Poesia | Antonio Machado* - Tenho andado muitos caminhos

Tenho andado muitos caminhos
tenho aberto muitas veredas;
tenho navegado em cem mares
e atracado em cem ribeiras

Em todas partes tenho visto
caravanas de tristeza
orgulhosos e melancólicos
borrachos de sombra negra.

E pedantes ao pano
que olham, calam e pensam
que sabem, porque não bebem
o vinho das tabernas

Má gente que caminha
e vai empestando a terra...

E em todas partes tenho visto
pessoas que dançam ou jogam,
quando podem, e lavoram
seus quatro palmos de terra.

Nunca, se chegam a um lugar
perguntam a onde chegam.
Quando caminham, cavalgam
lombos de mula velha.

E não conhecem a pressa
nem mesmo nos dias de festa.
Onde há vinho, bebem vinho,
onde não há vinho, água fresca.

 *Poeta espanhol, 26/7/1875 -22/2/1939 (França)