quinta-feira, 29 de outubro de 2020

Merval Pereira - O poder corrompe

- O Globo

Dois casos semelhantes, aqui e nos Estados Unidos, revelam como presidentes autoritários são controlados dentro da democracia por assessores que não perdem a noção da realidade, nem o escrúpulo diante dos absurdos que vêem acontecer nos bastidores do Poder.

O jornal The New York Times revelou ontem, dois anos depois, o autor do artigo anônimo que publicou em setembro de 2018 contra o presidente Donald Trump, numa decisão inédita que causou repercussão à época. É Miles Taylor, ex-chefe de gabinete do Departamento de Segurança Nacional dos EUA quando escreveu o artigo, chamando o presidente de “impetuoso, contraditório, mesquinho e ineficiente”. O autor revelou que fazia parte de uma “resistência silenciosa” a Trump dentro do próprio governo dos EUA.

Também ontem o jornal Correio Brasiliense publicou um artigo do General Rego Barros, ex-porta-voz do Palácio do Planalto que critica o presidente Bolsonaro indiretamente quando afirma, por exemplo, que o poder “inebria, corrompe e destrói”.

Assim como nos Estados Unidos, o anonimato permitiu que um assessor de alto nível criticasse Trump sem se arriscar, aqui não é preciso que o General Rego Barros explicite que fala sobre Bolsonaro, pois ele também fez parte de uma “resistência silenciosa” que tentou dar um rumo ao governo.

Ele usa imagens da Roma Antiga para alertar que os generais, vitoriosos, faziam-se “acompanhar apenas de uma pequena guarda e de escravos cuja missão é sussurrar incessantemente aos seus ouvidos vitoriosos: “Memento Mori!” — lembra-te que és mortal”. Fica claro no texto do General Rego Barros que ele considera perigoso o caminho que Bolsonaro tomou no governo, chegando a usar a imagem de “um governante piromaníaco” para retratar o personagem sobre quem escreve.

William Waack* - Bolsonaro decepciona os generais

- O Estado de S.Paulo

O desabafo do ex-porta-voz do presidente não é a voz isolada de um fardado

Foi já para lá da metade de 2018 que os altos oficiais das Forças Armadas encantaram-se com a popularidade de alguém que surfava a onda disruptiva, que oferecia a oportunidade de se alterar os rumos do País. Hoje levanta-se a tese se houve mesmo uma alternância entre “esquerda” e “direita” em 2018, pois o que se percebe é a prevalência de um sistema pelo qual os donos do poder descritos já há tantos anos continuam acomodando interesses setoriais e corporativos às custas dos cofres públicos, sem visão de conjunto ou de Nação – tanto faz o nome ou o partido.

Além da bem amarrada ou não agenda econômica proposta por Paulo Guedes, foram os militares formados em academias de primeira linha que trouxeram para Bolsonaro o que se poderia chamar, com boa vontade, de “elementos de planejamento” num governo que, logo de saída, titubeou entre entregar a coordenação dos ministérios para uma ala “política” (enquanto se recusava a praticar a “velha” política) ou depositá-la no que era a esperança dos generais: um dos seus como chefe de “Estado-Maior” (a Casa Civil). Hoje se constata que era o primeiro sinal inequívoco do que acabou virando a marca do governo: sem eixo, sem saber como adequar os meios aos fins (supondo que “mudar o Brasil” seja o objetivo final) num espaço de tempo definido (um mandato? Dois mandatos?). Portanto, sem estratégia.

Os militares de alta patente no governo carregaram consigo uma aura de respeito e credibilidade e, em alguns ministérios, de eficiência e competência, mas não estão usufruindo disso. Ao contrário, a reputação deles como grupo está sendo moída em casos como o da Saúde, área na qual o presidente interfere como se entendesse alguma coisa disso, e da Amazônia, com um “governo do B” entregue a quem conhece a área (o general Hamilton Mourão) enquanto o enciumado Bolsonaro deixa que Meio Ambiente e Relações Exteriores pratiquem o “fogo amigo”.

Luiz Carlos Azedo - Ideia de jerico

- Correio Braziliense

Faltou um memento mori, por exemplo, na hora em que Bolsonaro assinou o decreto autorizando estudos para privatização das unidades básicas de atendimento do SUS

Tem razão o general da reserva Rêgo Barros, ex-porta-voz da Presidência: falta alguém ao lado do presidente Jair Bolsonaro para dizer-lhe no ouvido: “Memento Mori!” — lembra-te que és mortal! A sentença latina intitula o artigo publicado, na terça-feira, pelo Correio Braziliense, com a assinatura do militar. É a mais dura crítica feita ao ex-capitão por um dos generais que apoiaram sua eleição e agora se arrependem. “Os líderes atuais, após alcançarem suas vitórias nos coliseus eleitorais, são tragados pelos comentários babosos dos que o cercam ou pelas demonstrações alucinadas de seguidores de ocasião. É doloroso perceber que os projetos apresentados nas campanhas eleitorais, com vistas a convencer-nos a depositar nosso voto nas urnas eletrônicas, são meras peças publicitárias, talhadas para aquele momento. Valem tanto quanto uma nota de sete reais.”

Rêgo Barros não cita Bolsonaro, mas é a ele que se refere quando alerta que os demais Poderes da República “precisarão, então, blindar-se contra os atos indecorosos, desalinhados dos interesses da sociedade, que advirão como decisões do ‘imperador imortal’. Deverão ser firmes, não recuar diante de pressões. A imprensa, sempre ela, deverá fortalecer-se na ética para o cumprimento de seu papel de informar, esclarecendo à população os pontos de fragilidade e os de potencialidade nos atos do César”. Rêgo Barros foi defenestrado do cargo depois de uma longa queda de braço com o vereador carioca Carlos Bolsonaro, filho do presidente da República, que dá as cartas na Comunicação Social do Palácio do Planalto.

Míriam Leitão - Governo perdido e decreto sem dono

- O Globo

Qual é o pior momento para se juntar a palavra “privado” com a expressão “saúde básica” ? Resposta: no meio de uma pandemia, em que temos um ministro da Saúde convencido de que sua única função é obedecer ao presidente, sendo o presidente a pessoa que diariamente atormenta a área com péssimas ideias: ora um remédio sem comprovação científica, ora a negação da ciência, ora a campanha contra a vacina. O governo Bolsonaro conseguiu. Ele vai entrar no livro “Guinness” como o governo mais capaz de ter ideias ruins e na hora errada. Como, por exemplo, quando quis cobrar imposto de desempregado numa escalada de desemprego.

No final, o decreto que o governo havia baixado incluindo as Unidades Básicas de Saúde no Programa de Parceria de Investimentos (PPI) foi revogado. Esta pandemia nos mostrou o valor de se ter o Sistema Único de Saúde (SUS). Público. É conquista da Constituição que o líder do governo Ricardo Barros diz que tornou o país ingovernável. O que dificulta é uma administração sem rumo, atirando a esmo, e agravando as aflições do país no meio de uma pandemia.

Essa ideia de incluir a porta de entrada do SUS num programa que pode levar à privatização é ruim em qualquer momento, mas no meio da maior crise da saúde do mundo é ainda pior. Imediatamente políticos e especialistas se mobilizaram contra o decreto. Diante da reação, o Planalto lavou as mãos e mandou o Ministério da Economia se explicar. Lígia Bahia, professora de economia da saúde da UFRJ e colunista deste jornal, disse que o ministro Paulo Guedes deveria se preocupar com o desemprego, as empresas quebradas e a redução da renda, e completou: o “Brasil precisa de paz”. E paz é o que não temos tido em nenhuma área, notadamente na saúde.

Ricardo Noblat - Bolsonaro, um presidente acidental, outra vez dá meia volta volver

- Blog do Noblat | Veja

Marcha soldado, cabeça de papel

Bolsonaro nada aprendeu em 30 anos de vida pública. Em compensação, nada esqueceu. De duas, uma. A inclusão das unidades básicas de saúde num programa de parcerias com a iniciativa privada era uma boa ideia, e por isso ele assinou o decreto publicado, anteontem, no Diário Oficial. Ou então era uma má ideia, e por isso ele revogou o decreto 24 horas depois.

Algo semelhante aconteceu na semana passada quando Bolsonaro disse que a vacina chinesa contra a Covid-19 jamais seria comprada. Foi uma humilhação para o general Eduardo Pazuello, ministro da Saúde, especialista em logística, que anunciara a compra da vacina. Mas, em seguida, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária desautorizou Bolsonaro, e ele calou-se.

O ator Ronald Reagan foi um dos presidentes mais aclamados da história dos Estados Unidos. Detestava pegar no pesado. Não gostava de governar. Entendia de poucas coisas. Soube cercar-se, porém, de auxiliares competentes. Bolsonaro é quase tão ignorante quanto Reagan. Pegar no pesado não é com ele. Gosta do poder, de governar, não. Cercou-se de auxiliares incompetentes.

Sergio Fausto* - O delírio contra a ‘vacina chinesa’

- O Estado de S.Paulo

Sem imunização em massa corremos o risco de o novo coronavírus persistir entre nós

O maior risco na política é o delírio. Quando fomentado por um líder, pode arrastar grande contingente de pessoas a adotar comportamentos destrutivos para si e/ou para os outros. Quando mobiliza o poder do Estado, as consequências podem ser catastróficas.

Na semana que passou tivemos um pequeno exemplo dos graves problemas que o delírio pode provocar quando passa a condicionar decisões de política pública. Não merece outro nome a recusa presidencial de adquirir a vacina contra a covid-19 ora em produção na China, em fase final de testes para comprovar a sua eficácia.

Por trás da recusa está uma teoria conspiratória com duas versões: a mais amalucada sustenta que a vacina altera o material genético das pessoas e pode servir de veículo para a inoculação de chips capazes de controlar o pensamento dos indivíduos vacinados; a menos endoidecida, mas ainda assim disparatada, vê na vacina produzida pela Sinovac, em parceria com cientistas e governos de distintos países do mundo, um instrumento a serviço da projeção global do poder da China. Num caso ou no outro, é incitada a fantasia paranoica de que nos estaríamos submetendo ao comando do Partido Comunista daquele país.

A versão tosca do delírio é disseminada nas mídias sociais pela rede de apoiadores do presidente Bolsonaro. A versão supostamente sofisticada da maluquice é articulada pelo chanceler Ernesto Araújo, o mesmo que enxerga em Donald Trump a salvação da cultura judaico-cristã e na China, o motor do globalismo e do marxismo cultural.

Bernardo Mello Franco - O negócio da saúde

- O Globo

O ensaio de privatização do SUS resumiu, em um episódio, quatro características do governo Bolsonaro: insensibilidade social, autoritarismo, falta de transparência, voracidade para fazer negócios.

Ontem o Diário Oficial trouxe um decreto que dispunha sobre a “qualificação da política de fomento ao setor de atenção primária à saúde no âmbito do Programa de Parcerias de Investimentos da Presidência da República, para fins de elaboração de estudos de alternativas de parcerias com a iniciativa privada”.

Com o palavrório, abriu-se uma porta bilionária para a privatização das unidades básicas de saúde, que atendem até 80% dos problemas dos brasileiros.

Avesso à participação social, o governo não ouviu os conselhos de saúde, as entidades médicas ou os gestores locais. O ministro decorativo da Saúde, Eduardo Pazuello, também foi ignorado. Neste mês, o general admitiu que assumiu a pasta sem saber o que era o SUS. Dias depois, reconheceu que está no cargo para cumprir ordens. “Um manda, o outro obedece”, explicou.

Bruno Boghossian – Governando por acidente

- Folha de S. Paulo

Decreto mostra que Bolsonaro prefere assinar primeiro e perguntar depois

Em outubro do ano passado, Jair Bolsonaro editou um decreto que abria caminho para vender a operação da Casa da Moeda. A empresa era uma das prioridades na lista de privatizações do governo, mas o plano não saiu do papel. Depois de assinar a medida, o próprio presidente reclamou da proposta.

“Queriam privatizar a Casa da Moeda. Aí, o pessoal fala, eu interferi”, disse Bolsonaro, há poucas semanas. “Eu achei que não era o caso, tendo em vista informações que eu tive de outros países que privatizaram e depois voltaram atrás.”

Bolsonaro pode até dizer que considera a venda da estatal uma má ideia. Mas ele também poderia explicar por que saíram do gabinete presidencial dois documentos que abriam caminho para a privatização: aquele texto de outubro e uma medida provisória que quebrava o monopólio da empresa, no mês seguinte.

A desordem se repetiu agora, com o decreto do governo que incluiu as unidades básicas de saúde num programa de parcerias com a iniciativa privada. O documento assinado pelo presidente foi publicado na última terça (27) e revogado um dia depois.

Maria Cristina Fernandes - Faísca, o SUS e o Rubicão dos liberais

- Valor Econômico

Teto de gastos pode se mostrar curto demais para abrigar vacinas e empregos

Na segunda-feira, o governador de Minas Gerais, Romeu Zema, terminou, pelo Palácio do Planalto, uma agenda de visitas a autoridades em Brasília. Tratou de privatizações no BNDES e do socorro fiscal a seu Estado na Câmara dos Deputados. Com o presidente Jair Bolsonaro, resolveu acrescentar mais um tema, a vacina contra a covid-19.

Na entrevista que se seguiu, o governador conseguiu subir ao pódio do campeonato de disparates da atual temporada: “Sou de um partido liberal. Sou da opinião que quem quiser, deve se vacinar. Mas sou da opinião também que uma empresa que empregue mil funcionários exija, de alguém que trabalhe lá, que seja vacinado porque, caso contrário, ele pode representar risco para os outros. Então sou sempre favorável à liberdade do ser humano.”

Pela declaração do governador conclui-se que o dono da empresa que a comanda pelo zoom tem o direito de não se vacinar, mas ao funcionário do chão de fábrica resta apenas o dever de fazê-lo. Único governador eleito pelo Novo, Zema sugere um velho dilema: a liberdade do ser humano termina onde começa a necessidade de manter as empresas em funcionamento.

O ex-prefeito de Belo Horizonte, ex-ministro e hoje deputado federal Patrus Ananias (PT-MG), viu na declaração do governador a “privatização do ordenamento jurídico”. O governador do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB), foi além e identificou resquícios da “mentalidade escravocrata”. No dia seguinte, o governador voltaria a se pronunciar sobre a vacina num tom dois degraus abaixo dizendo que se tratava de um tema mais de “consciência do que de obrigatoriedade”.

Gabriela Prioli - O Rei está sempre só

- Folha de S. Paulo

A briga das direitas e as novas esquerdas

Faz alguns anos que o maior assunto da política é a ascensão da nova direita. As esquerdas, que antes —dizem— teriam oprimido intelectualmente todos nós, agora estão na descendente. Uma estrela cadente, digamos.

A realidade, como sempre, é mais complexa do que a narrativa. Ao chegar ao poder e ter que, de fato, governar, a nova direita se tornou "as direitas". Liberais-na-economia-conservadores-nos-costumes, libertários, religiosos, lava-jatistas, militaristas, faria-limers etc. haviam abraçado o bolsonarismo oportunisticamente, para chegar ao poder. Agora, descobrem, uns surpresos, outros nem tanto, que não fizeram o Rei. O Rei é que os instrumentalizou para estar onde está. E com o seu completo consentimento.

O poder corrompe até quem se elegeu discursando sobre corrupção pelo poder. É possível que o Aliança pelo Brasil herde do partido Novo mais do que só a novidade. As direitas brasileiras brigam entre si pela pureza direitista valendo-se de um método já conhecido: jogando seus novos desafetos para o lado de lá.

Paralelamente ao racha da direita, surgem indícios de uma rearticulação das esquerdas. A volta do kirchnerismo na Argentina em 2019. A eleição de Arce na Bolívia. O "sim" em prol de uma nova Constituição no Chile, abandonando de vez a herança de Pinochet. A possível --quase provável-- vitória de Joe Biden nos EUA.

Maria Hermínia Tavares* - O clima nas eleições

- Folha de S. Paulo

 Sustentabilidade entra na agenda dos candidatos nos municípios

Misto de atraso, interesses mesquinhos e má-fé, os esforços do governo Bolsonaro para desmontar a política ambiental não tiveram só as previsíveis consequências desastrosas: aumento das queimadas, do desmatamento e das atividades ilegais em áreas protegidas. Produziram o efeito bumerangue de gerar inédita reação da sociedade.

Os três maiores bancos brasileiros se uniram em torno de um plano sustentável para a Amazônia. Com o mesmo fim, cem personalidades criaram a Concertação para a Amazônia, enquanto 230 organizações formaram a Coalizão Brasil, Clima, Florestas e Agricultura, um foro de diálogo entre grandes empresas e organizações ambientalistas.

Rapidamente, a discussão vem se ampliando para incluir outros temas relacionados à recuperação dos estragos econômicos e sociais trazidos pela Covid-19. Agora, 24 organizações da sociedade civil, algumas empenhadas na formação de novas lideranças políticas, acabam de lançar a Agenda Urbana do Clima, destinada a inspirar candidatos a prefeitos e vereadores. Ela oferece uma visão abrangente da questão: governança das metrópoles; saneamento e gestão da água; saúde e redução da poluição; segurança alimentar; trato de resíduos sólidos; geração de empregos em sistemas de economia solidária; transporte público e mobilidade; áreas verdes, energias renováveis e eficiência energética.

Vinicius Torres Freire – A segunda onda na europeia no Brasil

- Folha de S. Paulo

Números gerais não permitem descartar um recrudescimento da epidemia por aqui

A segunda onda da epidemia nos grandes países da Europa ficou evidente na mesma data: começo de setembro. É quando acabam as férias de verão. Foi então que o número de mortes começou a aumentar de modo inegável. Em meados de outubro houve a disparada. Em países como Alemanha, Espanha, França, Itália e Reino Unido, as taxas mínimas de morte haviam ocorrido em julho, mais ou menos.

O número diário de novas mortes por milhão anda entre 2,5 e 3,5 nesses países, com exceção da Alemanha, onde está por volta de 0,5 por milhão (média móvel de sete dias). No Brasil, o morticínio agora está perto de pouco mais 2 novas mortes por milhão, em queda lenta, faz algum tempo. No pico da mortandade nesses países europeus, a taxa diária de mortes por milhão ficou em torno de 15 (com exceção, outra vez, da Alemanha (que chegou perto de 3).

Carlos Alberto Sardenberg - À chinesa

- O Globo

É ridícula a ideia bolsonarista de que a China é o inimigo que quer exportar sistema comunista

O presidente Xi Jinping está conduzindo seu carro, tendo ao lado o espírito de Deng Xiaoping, o criador da nova China, que aparecera sabe-se lá de onde para a consulta habitual que fazia com todos os líderes chineses em início de mandato.

Seguem por uma longa estrada que, a um determinado ponto, se abre numa bifurcação perfeita. O presidente Xi para o carro e pergunta a Deng:

— Grande líder, viramos à direita ou à esquerda?

Deng:

—Dê sinal para a esquerda, vire à direita.

Essa piada vem sendo contada desde que Deng se aposentou e passou a liderança para Chen Yun, em 1992. Faz sucesso e não perde a atualidade porque reflete exatamente o que se passa com a China ao longo de décadas.

A questão era: como introduzir as reformas que abririam a economia ao empreendimento privado,à prática capitalista, sem parecer que se estava fazendo isso?

A economia chinesa estava arrasada pela Revolução Cultural, e as pessoas começaram a abrir negócios para garantir a sobrevivência. Negócios privados apareciam por toda parte.

Deng assumiu o movimento, e assim nascia a China, uma ditadura com capitalismo. Como explicar isso?

Usando habilmente das palavras e conceitos. Reformas liberais? Nunca! Modernizações. Capitalismo? Jamais! Economia socialista de mercado ou economia de mercado socialista.

O programa de privatização de pequenas e médias companhias regionais foi denominado “devolver as empresas ao povo”.

Ascânio Seleme - É dando que se recebe

- O Globo

Maracutaia ocorre no mundo inteiro

Uma das melhores séries políticas em cartaz nas redes de streaming mostra os intestinos da política na Dinamarca, um dos países mais desenvolvidos e civilizados da Terra. Chama-se “Borgen” e é excelente, feito goma arábica, de tanto que gruda. A história começa com a eleição do Parlamento e a construção de um novo governo de centro, em substituição a um de direita. Embora ficcional, a obra apresenta um bastidor imaginário do poder que não deve ser muito diferente do real, já que o roteiro é de três dinamarqueses. E esse é um valor extra que a série tem, além do entretenimento, pois se enxerga como funciona a realpolitik local.

Aquela aura de incorruptibilidade que se vislumbra sempre que um país nórdico é mencionado desvanece logo nos primeiros episódios. Claro que nada se compara ao Brasil, onde corrupto carrega dinheiro enfiado entre as nádegas, e operações políticas desviam bilhões de cofres de empresas públicas para contas de partidos. Mas nem por isso o que ocorre em Borgen é a quintessência do puritanismo na vida pública. Muito pelo contrário. Já no primeiro episódio, o primeiro-ministro que está de saída se vê na contingência de pagar compras da mulher com cartão corporativo oficial. Foi por acaso, pois ele estava sem a carteira. Mas, na chance que teve para devolver o dinheiro, foi convencido por um assessor de que era possível resolver aquilo jogando o gasto numa rubrica qualquer do gabinete.

Luis Fernando Verissimo – Linguiça

- O Globo / O Estado de S. Paulo

Para o Brasil ser um circo, só faltam os palhaços. Somos nós

Minha avó Ema usava uma expressão que nunca chegamos a decifrar exatamente, embora seu sentido fosse claro: “Pendura na linguiça”. Uma notícia sem importância, uma informação absolutamente inútil, uma fofoca irredimível? Pendura na linguiça. De onde a vó Ema tirara a linguiça, de que lembrança de um remoto passado rural ela trouxera a frase pronta, ninguém sabia — acho que nem ela. Mas a frase foi adotada pela família. O destino do que era falso ou irrelevante era ser pendurado numa linguiça, na companhia presumível de tudo o que tradicionalmente enche as linguiças.

Grande parte do discurso público ouvido no Brasil não merece outra coisa além de ser pendurado na linguiça. Não se trata de fake news fabricada especificamente para confundir, ou da retórica vazia do discurso político, facilmente caricaturável, nem do folclore instantâneo do mal explicado dinheiro entre as nádegas. Trata-se do discurso oficial, ou pseudo-oficial, do governo, da língua com a qual o poder se comunica e se desnuda, e expõe sua mediocridade. A língua de um governo de generais de fatiota, comandados por um capitão e seus filhos, e dividido em facções que não se entendem só pode ser a língua do caos disfarçado. Pior do que isso é quando o próprio capitão parece ter um gosto pelo caos.

Zeina Latif* - Os muitos pontos de não retorno

- O Estado de S.Paulo

Não se sabe ao certo quando uma mudança brusca nos padrões comportamentais será atingida no País

Várias áreas do conhecimento utilizam o conceito de ponto de não retorno (tipping point) para designar fenômenos em que, uma vez atingido uma massa crítica ou ponto crítico, dispara-se uma mudança brusca de padrões de comportamento. É a gota d’água.

As ciências sociais utilizam o conceito para explicar mudanças de costumes da sociedade, como a moda e novos valores. Na saúde, para designar quando uma curva normal de contágio se transforma em epidemia.

O conceito tem sido empregado na questão ambiental. Alguns modelos experimentais preveem a substituição em grande escala da floresta amazônica por vegetação semelhante à savana até o final deste século. Uma vez atingido um certo nível de desmatamento, reduzem-se o ciclo de chuvas e a umidade da floresta, ampliando ou produzindo incêndios. Aumentam os eventos climáticos e o ritmo de degradação acelera, não sendo possível regenerar o bioma.

Celso Ming - A turbulência financeira e a nova onda da covid-19

O Estado de S.Paulo

Mercados foram tomados por onda de forte aversão ao risco sob cenário de incertezas

Nesta quarta-feira, os mercados financeiros foram invadidos por onda de forte aversão ao risco. É como se todos os bichos da floresta fugissem para suas tocas.

Veio abaixo até mesmo o mercado do ouro, multissecular porto seguro em meio a quaisquer turbulências. A onça-troy (equivalente a 31,1 gramas) chegou a cair 2,04% e fechou em baixa de 1,65%. O único ativo que continua inspirando segurança é o dólar.

Os gráficos apresentam quanto caíram algumas das principais bolsas de valores e qual foi, nesta quarta-feira, a trajetória do dólar em relação ao real, ao rand sul-africano, ao euro e ao iene.

O alarme foi disparado pelo novo toque de recolher (lockdown) parcial na Alemanha e na França, decretado para enfrentar a nova onda da covid-19. Por mais paradoxal que pareça, a principal diferença entre esta recaída e o início da pandemia ainda não está disponível. Trata-se da vacina. Mesmo as que estão em fase final de testes ainda precisarão de tempo para produção e para distribuição. Mas não estão mais no ponto zero, como em fevereiro e março, quando os pesquisadores ainda não conheciam o inimigo. 

Por esse ponto de vista, contra essa aversão ao risco há um limitador importante. Chegada a vacina, não haverá mais necessidade de medidas drásticas, mas, nesta quarta-feira, ninguém levou isso em conta.

Ribamar Oliveira - Uma ajuda muito além do imaginado

- Valor Econômico

União repassou R$ 31 bilhões acima das perdas estaduais

O apoio financeiro aos Estados para o enfrentamento da pandemia do coronavírus ficou muito acima do que se poderia imaginar. Os dados preliminares do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz) indicam que a receita acumulada de janeiro a setembro do ICMS, o principal tributo estadual, caiu cerca de R$ 3 bilhões, na comparação com igual período de 2019. Para compensar a perda, os governadores receberam R$ 37 bilhões, considerando apenas a lei complementar 173/2020.

Mas a ajuda federal não ficou só nisso. A arrecadação do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) e do Imposto de Renda (IR), que é dividida com Estados e municípios, também caiu durante os meses iniciais da pandemia. Por isso, a medida provisória 938/2020, que foi convertida na lei 14.041/2020, autorizou a União a manter os repasses aos fundos de participação de Estados e municípios (FPE e FPM), de março a novembro, em valores equivalentes aos repassados nos mesmos meses de 2019. Com essa medida, os Estados já receberam R$ 7,359 bilhões, de acordo com o Tesouro Nacional.

O Boletim de Arrecadação de Tributos Estaduais, editado pelo Confaz, estima que a receita de todos os tributos estaduais - além do ICMS, o IPVA, o Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD) e todas as taxas cobradas - ficou em R$ 437,4 bilhões, no acumulado de janeiro a setembro.

José Eli da Veiga* - Engatar a segunda pelo clima

- Valor Econômico

Transição para a descarbonização parece sair da primeira marcha graças a súbito despertar dos grandes negócios

A substituição das energias fósseis por renováveis na matriz energética global foi vagarosa demais, durante mais de um quarto de século. Enormes subsídios às primeiras e parcos incentivos às menos nocivas mantiveram o comboio em marcha lenta. Para piorar, a estrutura regulatória montada pela Convenção do Clima, de 1992, favoreceu a tergiversação institucional ao longo de 25 conferências das partes (CoP).

Ultimamente, contudo, a transição descarbonizadora parece querer sair da primeira marcha, especialmente graças a um súbito despertar dos grandes negócios. Mas, também, à recentíssima inflexão política da ditadura chinesa, a ser turbinada por provável virada democrata nos EUA. Se estas três mudanças se confirmarem, poderá deixar de ser ilusória a previsão para este século da chamada “neutralidade carbono”. Mesmo não sendo o fim do problema, tal conquista poderá reduzir as incertezas sobre as chances de possível solução.

Do lado dos negócios, o ponto de mutação parece ter ocorrido em dezembro de 2017, exatos dois anos depois do tão festejado Acordo de Paris, no âmbito do “One Planet Summit”, realizado em repúdio ao negacionismo de Donald Trump. Ali, começou a brotar a “Climate Action 100+”, principal iniciativa pró-clima do setor privado. Seus atuais 518 membros têm ativos estimados em US$ 47 trilhões, segundo o Financial Times.

No mês passado, a “CA100+” anunciou um esquema de vigilância do comportamento das 161 maiores empresas do mundo, com o propósito de avaliar o quanto continuam distantes da neutralidade carbono. Qualquer destas empresas precisará se preocupar com sua reputação, mesmo se cética sobre os riscos reais impostos pelo clima. Este tipo de pressão esteve bem longe de existir nos quase três decênios de marcha lenta.

Aylê-Salassié F. Quintão* - Aprendendo com Mugabe e os faraós

Milho na mão esquerda e chicote na outra ou, no lugar do milho, um livro. A prática dos faraós do Egito (e de Mugabe, no Zimbawe) é lembrada por Fernando Henrique Cardoso àqueles que se arvoram a lançar-se candidato à Presidência da República na América Latina. O Brasil pertence a este universo, onde a governabilidade transita por um espaço politicamente volúvel e enganador, às vezes bárbaro, que desliza com facilidade da esquerda para a direita e vice versa, em atitudes irracionais e atropeladoras.

A região é um universo institucionalmente conservador, ideologicamente confuso, identitariamente mal construído, cujo Produto Interno Bruto tende a registrar, em 2020, uma queda média de 9,1%, revelando um nível de desempregados superior a 44 milhões de trabalhadores. Projeta-se que, com a pandemia, o Brasil vai perder quase U$ 200 bilhões do seu PIB (US$ 2 trilhões) , a Argentina (US$ 500 bilhões) mais de U$ 50 bilhões, a Venezuela o dobro, o Chile perto de 20 bilhões, a Bolívia em torno de 4 a 6 bilhões.

De acordo com a CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina), o índice de pobreza vai fechar o ano com um aumento de 37,3%, o que significa 230,9 milhões de pessoas vivendo nessa faixa em 2020, de um total de 600 milhões de cidadãos. Os maiores aumentos na taxa de pobreza serão na Argentina, Brasil, Equador, México, Peru e, sobretudo, na Venezuela, cujos dados são desconhecidos. Cerca de 28,5 milhões passarão à pobreza extrema. Os latino-americanos estão entre os mais afetados no mundo pelo Covid 19: 3,4 milhões de pessoas infectadas e quase 350 mil mortos. Faz lembrar a história de Spártacus e até de Moisés.

O que a mídia pensa – Opiniões / Editoriais

O avesso da democracia – Opinião | O Estado de S. Paulo

Deputado propõe reescrever a Constituição como se estivéssemos a trocar de regime. Isso não faz sentido, a não ser que o bolsonarismo se considere um novo regime.

O líder do governo na Câmara, deputado Ricardo Barros (PP-PR), acha que a Constituição “só tem direitos” e que “é preciso que o cidadão tenha deveres com a Nação”, razão pela qual defendeu um plebiscito para a convocação de uma Assembleia Constituinte que, afinal, redija a Carta de seus sonhos.

Se falava apenas em seu nome, o deputado revelou-se por inteiro: é dos que enxergam direitos, especialmente os sociais, como empecilhos à eficiência do Estado. Se falou em nome do governo que representa, fez exatamente o que dele esperava seu guia, o presidente Jair Bolsonaro, que sempre que pode demonstra desconforto com os limites impostos pelo pacto democrático representado pela Constituição.

Todos sabem que a Constituição tem defeitos que precisam urgentemente ser corrigidos. Este jornal há tempos defende uma ampla reavaliação da Carta promulgada há mais de três décadas, especialmente em relação aos muitos dispositivos que gravaram na pedra constitucional uma série extensa de políticas públicas que jamais deveriam estar lá, pois, graças à sua natureza circunstancial, devem ser atualizadas ou canceladas conforme mudam os governos, avançam os tempos e variam as receitas disponíveis.

Mas não é disso que o deputado Ricardo Barros pareceu falar. Sua proposta soou muito mais radical: reescrever a Constituição como se estivéssemos a trocar de regime. Isso fazia todo o sentido em 1988, ano da promulgação da atual Constituição, como ato de coroação da transição da ditadura para a democracia, tendo como corolário o resgate dos direitos sociais. Hoje, não faz sentido nenhum – a não ser que o bolsonarismo se considere um novo regime, a clamar por uma nova Carta que o consagre.

Poesia | Fernando Pessoa - Escrito num livro abandonado em viagem

Venho dos lados de Beja. 
Vou para o meio de Lisboa. 
Não trago nada e não acharei nada. 
Tenho o cansaço antecipado do que não acharei, 
e a saudade que sinto não é nem no passado nem no futuro. 
Deixo escrita neste livro a imagem do meu desígnio morto: 
fui, como ervas, e não me arrancaram.