sábado, 31 de outubro de 2020

Merval Pereira - Incontrolável?

- O Globo

O vice-presidente, general Hamilton Mourão, tem um espaço maior que seus colegas de farda para lidar com a política com mais liberdade, pois foi eleito pelo voto direto e é indemissível pelo presidente Bolsonaro. Por se posicionar com independência, já foi visto como uma alternativa mais liberal ao presidente, que avisou: “O Mourão é mais tosco do que eu”.

Colocado na vice-presidência da chapa para, segundo o filho 03 Flavio Bolsonaro, tirar qualquer veleidade de derrubar seu pai, Mourão assumiu o Conselho da Amazônia para tentar dar uma organizada no combate às queimadas e ao desmatamento.

O ministro do Meio-Ambiente não é dos mais chegados a Mourão, que o convidou por último para participar da viagem à Amazônia com representantes estrangeiros. Algo indica que Mourão preferia que não fosse.

Por tudo isso, a afirmação dele de que o Brasil comprará, sim, a vacina chinesa, desde que ela seja aprovada pela Anvisa, entrando em confronto com as afirmações de Bolsonaro, que disse que, por sua origem, a vacina chinesa não tinha credibilidade, mostra que há limites para a aceitação das idiossincrasias do presidente.

Ricardo Noblat - Mourão, o vice-presidente, desafia o dono da caneta Bic

- Blog do Noblat | Veja

Bolsonaro reconcilia-se com o presidente brigão que sempre foi

Beleza! À falta de com quem mais brigar, o presidente Jair Bolsonaro, que não consegue que seus ministros parem de brigar, decidiu enfrentar o general Hamilton Mourão, o vice-presidente e seu substituto imediato. É verdade que Mourão fez por onde.

Bolsonaro disse e não se cansa de repetir que o governo federal não comprará a vacina chinesa para não dar gosto ao governador de São Paulo João Doria (PSDB), seu patrocinador. Sabe-se que isso não passa de marola, mas não vem ao caso.

Em entrevista à VEJA, Mourão disse o contrário: “O governo vai comprar a vacina, lógico que vai. Já colocamos os recursos no Butantan para produzir a vacina. O governo não vai fugir disso aí”. Foi o que bastou. “A caneta Bic é minha”, respondeu Bolsonaro.

Mourão passou a falar para dentro da caserna, mas também para fora, desde que concluiu que não tem futuro como candidato na chapa de Bolsonaro à reeleição. Sonha com uma cadeira no Senado, como admitiu à VEJA. Talvez pelo Rio Grande do Sul.

Os militares cavalgaram a candidatura de Bolsonaro a presidente só para barrar as chances de o PT ganhar a eleição de 2018. Em 2022, se o PT não tiver chance, poderão abandonar Bolsonaro e cavalgar outro nome. Os generais andam irritados com o capitão.

Ascânio Seleme - Saúde é o que interessa

- O Globo

Nos Estados Unidos esse debate ocorre em todas as campanhas presidenciais

Como alguém pode defender a suspensão do financiamento público para a assistência à saúde de uma importante parcela da população num debate eleitoral e obter voto com isso? O que você acha que aconteceria no Brasil se um candidato a presidente defendesse o fim do SUS? Outro dia mesmo, o governo Bolsonaro teve de recuar e se retratar menos de 24 horas depois de aventar a possibilidade de privatizar postos de saúde. Imagine o que ocorreria na França se o presidente Emmanuel Macron resolvesse parar de usar recursos da federação para pagar o equivalente a 60% dos custos nacionais com a saúde. Nem a pandemia seguraria as pessoas em casa. Macron seria escorraçado do Palácio do Eliseu e o candidato brasileiro seria varrido da política.

Nos Estados Unidos esse debate ocorre em todas as campanhas presidenciais. Agora mesmo, Donald Trump ataca seu adversário Joe Biden em razão do Obamacare, uma lei promulgada pelo ex-presidente Barack Obama que, se nem de longe se parece com o atendimento universal dado pelo SUS, garante planos de saúde com preços mais acessíveis e financia com recursos públicos o atendimento aos comprovadamente pobres. Trump ataca a lei com o argumento de que seu custo impacta sobre todos os que pagam impostos e chama Biden e os democratas de socialistas radicais em razão desta política. Uma piada.

Estaria frito se fosse aqui. Mesmo os eleitores da direita bolsonarista aprovam a política de proteção social brasileira. Por isso, aliás, o governo quer ampliar o Bolsa Família. Nos EUA, contudo, o argumento dá votos. A pergunta que se faz é como Trump pode atrair eleitores com um discurso que se lido de forma correta significa deixar sem tratamento médico, sem atendimento hospitalar e sem remédios, para morrer em casa, qualquer pessoa que ganhe pouco ou esteja desempregada? O fato de os Estados Unidos serem um país rico não responde nem explica a questão. O país é rico, mas seu povo nem tanto.

Daniel Aarão Reis - O espectro dos estados desunidos

- O Globo

Extrema-direita e Trump têm aproveitado o contexto para acirrar os ânimos

Quando Igor Panarin, um cientista político e futurólogo russo, anunciou a desagregação dos EUA, ninguém levou a sério a previsão. Desde fins do século XX, o russo trabalhava com a hipótese. Sob os influxos da grande crise econômica de 2008, Igor voltou à carga. Em palestra proferida em março de 2009, desceu a detalhes: a grande potência se dividiria, já no ano seguinte, em cinco países, e era urgente evitar que o processo não degenerasse em guerra civil. As elucubrações suscitaram ceticismo e ironia. Igor Panarin teve os seus 15 minutos de glória e desapareceu no olvido das gentes.

Uma análise séria, porém, acaba de ser publicada pela jornalista Valentine Faure, sobre uma ameaça que ronda as atuais eleições estadunidenses: a secessão e, no limite, uma hipotética, embora improvável, guerra civil.

O inventário das fraturas existentes na sociedade não deixa de ser impressionante. David French, cientista político, entrevistado por ela, registra que “não há hoje uma só força, cultural, religiosa, política ou social importante que unifique os americanos”.

Numa sociedade complexa e democrática, atravessada por contradições, conflitos são inevitáveis e podem inclusive fortalecer a convivência social. Entretanto estaria em curso um processo deletério de radicalização, em torno de um conjunto de temas que vêm polarizando de forma sectária os americanos, entre os quais têm se destacado a questão das relações, sempre controvertidas, entre intervencionismo estatal e liberdade pessoal, a discriminação racial, a emancipação da mulher e a interrupção voluntária da gravidez, as opções e as identidades sexuais, o ensino religioso nas escolas, o direito de educar os filhos na própria casa, as reconstruções memorialísticas do passado, a liberdade para adquirir e portar armas, a política em relação aos imigrantes, as previsões mais ou menos apocalípticas sobre o aquecimento da atmosfera e do clima, o voto pelo correio.

João Gabriel de Lima - A sociedade civil não se cala. Ainda bem

-

O Estado de S.Paulo

Alguns governos se aproveitam da sociedade civil; outros agem de forma truculenta

Ilona Szabó Luiz Felipe D’Avila têm muito em comum. Nenhum dos dois exerce cargo público, mas ambos contribuem para a melhoria do debate e do ambiente político no Brasil. Ilona é fundadora do Instituto Igarapé, núcleo de estudos de ponta sobre segurança. Felipe está à frente do Centro de Liderança Pública, que estuda a excelência governamental em várias áreas. Ambos geram conhecimento valioso baseado em evidências.

Ilona e Felipe fazem parte do que chamamos de “sociedade civil”, palavra que se incorporou ao vocabulário brasileiro no combate à ditadura militar. O termo engloba sindicatos, entidades empresariais, organizações cívicas, movimentos sociais, universidades e “think tanks” – como os liderados por Ilona e Felipe. Gente que agrega grupos sociais ou produz conhecimento, e ganha voz no debate nacional. O que inclui publicar colunas em jornais e falar constantemente com a imprensa, que é a vitrine da sociedade civil.

Ilona e Felipe são os entrevistados desta semana no podcast Estadão Cidadania. A primeira temporada traz protagonistas da sociedade civil falando sobre temas quentes da eleição municipal. Ilona discorre sobre os consensos na área da segurança pública, e Felipe mostra como os prefeitos podem combater a tragédia da falta de saneamento, que flagela 100 milhões de brasileiros.

Bolívar Lamounier* - Anatomia do amoralismo brasileiro

- O Estado de S.Paulo

A esperança de nos tornarmos mais civilizados parece ter-se esvaído de vez

Temos mil discordâncias, mas num ponto somos quase unânimes: somos um povo moralmente escorregadio. A maioria está convencida de que somos um povo sem caráter. A esperança de nos tornarmos mais civilizados, que em certos momentos chegamos a nutrir, parece ter-se esvaído de vez.

A pandemia reduziu a quase nada a dúvida que pudesse existir a esse respeito. De fato, quem observa nosso cotidiano logo percebe que centenas de milhares – a começar pelo presidente da República – não parecem dar a mínima para a saúde alheia. Solapam os esforços dos agentes de saúde que combatem a covid-19 na linha da frente. Fomentam aglomerações e recusam-se a cumprir os cuidados básicos estipulados pelas autoridades.

Frisemos que não se trata de um traço meramente psicológico ou cultural. É algo baseado em comportamentos reais, facilmente perceptíveis. Apresenta-se sob uma infinidade de formas, desde as garrafas de plástico deixadas nas ruas e nos jardins, passa por todo aquele contingente que não carece de auxílio emergencial, mas o pleiteia com o maior descaramento, e culmina em requintadas modalidades de estelionato. Tampouco se trata de classe social. Basta olhar em volta para constatarmos que o amoralismo permeia nossa sociedade de alto a baixo. Manifesta-se tanto entre pobres como entre ricos. Entre analfabetos e entre aqueles que estudaram até cansar.

Sergio Amaral* - Persiste a incerteza nas eleições americanas

- O Estado de S.Paulo

Não se exclui a hipótese de os democratas levarem a Casa Branca, a Câmara e o Senado

Uma das características da campanha eleitoral nos Estados Unidos foi a radicalização do jogo político; outra, a estabilidade das sondagens de opinião. Uma está associada à outra. Desde o início da campanha, a vantagem de Joe Biden sobre Donald Trump oscilou entre 7% e 12%. Fatos políticos relevantes, como a expansão descontrolada da covid-19, a queda na economia, demonstrações artirracistas e mesmo um marketing por vezes extravagante de Trump não lograram alterar esses limites. Uma das razões é que o candidato republicano, ao longo de seu governo, já havia consolidado o apoio de seu eleitorado cativo num patamar entre 37% e 42%. Na campanha, não conseguiu avançar em direção ao centro da cena política.

Não obstante a estabilidade dos números, persiste a incerteza quanto ao resultado. A provável vantagem de Biden no voto direto nacional será suficiente para assegurar a maioria no colégio eleitoral? Não necessariamente, pois esse colegiado é regido por regras que tendem a favorecer um candidato republicano. Vamos supor que Biden ganhe os votos no cômputo nacional e no colégio eleitoral. Trump aceitará o resultado? Em seus comícios, o candidato republicano tem insistido na acusação de que as eleições serão fraudadas e em momento algum assumiu o compromisso de respeitar os seus resultados. Poderá questionar a votação em alguns Estados e levar o contencioso à Suprema Corte, que em 2000, em condições semelhantes, deu ganho a George W. Bush, em detrimento de Al Gore.

Cristina Serra - Cinco anos de lama e impunidade

- Folha de S. Paulo

Ninguém foi responsabilizado criminalmente pela hemorragia de lama em Mariana

Cinco anos depois do maior desastre socioambiental do Brasil —o colapso da barragem de Fundão, em Mariana (MG)—, os atingidos vivem uma tragédia judicial. Até hoje ninguém foi responsabilizado criminalmente pela hemorragia de lama e de descaso que matou 19 pessoas em 5 de novembro de 2015. Dos 22 denunciados, 15 já se livraram do processo.

Além disso, as vítimas têm que lidar com uma disparidade de forças descomunal no Judiciário para tentar obter justas reparações. É difícil entender que as duas maiores mineradoras do mundo, Vale e BHP (controladoras da Samarco, dona da barragem), não tenham sido capazes de realizar estudos sobre o impacto da lama de rejeitos de minério na saúde dos moradores da bacia do rio Doce.

Hélio Schwartsman - 'Je suis Samuel Paty'

- Folha de S. Paulo

Liberdade de expressão faz parte das inovações que puseram Europa na rota da tolerância

Estou com Emmanuel Macron. O Ocidente não pode desistir de princípios como a liberdade de expressão só porque certas palavras e desenhos ferem suscetibilidades religiosas. A liberdade de expressão faz parte do pacote de inovações, primeiro cognitivas e depois institucionais, que colocaram a Europa na rota da ciência, da prosperidade e da tolerância.

Uma das coisas que mais me chocou quando do atentado contra o semanário satírico francês Charlie Hebdo, em 2015, que deixou 12 mortos, foi que várias vozes respeitáveis da sociedade civil condenaram o ataque, mas fizeram questão de acrescentar que o estilo excessivamente irreverente e provocativo da publicação havia chamado a tragédia para si.

Demétrio Magnoli* - Entre lágrimas e armas

- Folha de S. Paulo

Governo francês capitula na batalha pela alma dos seus cidadãos muçulmanos

Samuel Paty, professor numa cidade do anel periférico de Paris, foi degolado por um jihadista após exibir os célebres cartuns satíricos de Maomé, numa aula dedicada à liberdade de expressão. A França chorou sua morte, Emmanuel Macron declarou guerra ao "terrorismo islamita" e o turco Recep Erdogan clamou por um boicote a produtos franceses no mundo muçulmano. "O islã pertence à Alemanha" —parece ter transcorrido um século, mas foram só cinco anos desde que Angela Merkel pronunciou aquelas palavras, no auge da crise dos refugiados.

Lágrimas, primeiro. O assassinato chocou a França de um modo atroz. Diferente de outros atentados de "lobos solitários", não foi um ato de terror aleatório. No seu intenso simbolismo, mirou a escola, reativou a memória do massacre do Charlie Hebdo e imitou as decapitações perpetradas pelo Estado Islâmico.

Armas, depois. Macron ordenou uma série de operações policiais que ultrapassam os limites do círculo direto do terrorista, abrangendo mesquitas radicalizadas e redes sociais de difusão do jihadismo. Mas, para além disso, empregou um arsenal de linguagem que rompe as fronteiras tradicionais. O presidente conectou o islã ao terror, num salto narrativo típico da direita xenófoba europeia.

Capitalismo e democracia saíram dos trilhos, diz Paul Collier

Economista avalia que crise levou à criação de 'identidades opostas' sociais e econômicas

Vinicius Torres Freire | Folha de S. Paulo

SÃO PAULO - O capitalismo é o único sistema conhecido capaz de tirar massas de pessoas da pobreza. A democracia é o único sistema político sustentável e compatível com o capitalismo. Mas ambos saíram dos trilhos nos últimos 30 ou 40 anos, diz Paul Collier, economista do desenvolvimento e professor da escola de governo da Universidade Oxford (Reino Unido).

Em conferência do projeto “Fronteiras do Pensamento”, nesta quarta-feira (28), ele afirmou que uma das manifestações dessa crise é a formação de “identidades opostas”, fissuras (“rifts”) sociais e econômicas.

Por exemplo, opõem-se metrópoles bem-sucedidas e comunidades menores do interior; trabalhadores com alto nível de instrução e valorizados e aqueles menos instruídos e que vivem de trabalho manual. As comunidades abandonadas estão em revolta. Essas divisões, afirma Collier, seriam um motivo importante da vitória do brexit no Reino Unido e de Donald Trump nos Estados Unidos.

Capitalismo e democracia não funcionam no “piloto automático”. Precisam de uma espécie de intervenção sociopolítica que reforce objetivos comuns e o espírito de reciprocidade (“mutuality”). Com o declínio dessas iniciativas e sentimentos, desenvolveu-se uma sociedade da ganância, na qual a ideia de dever e obrigações seria atributo quase apenas do Estado e em que as decisões são tomadas de cima para baixo e de modo centralizado, nas empresas e no governo. Tais problemas teriam dificultado também o combate à epidemia do novo coronavírus.

Há exemplos de que as coisas não precisam ser assim, afirma Collier. Dinamarca e Nova Zelândia são casos de países de alto desenvolvimento econômico e social, com sentido comunitário. A Nova Zelândia teria tido sucesso contra a Covid-19 porque uma líder como a primeira-ministra Jacinda Ardern convenceu os cidadãos de seu país de que o enfrentamento da doença dependia da formação de uma “equipe de 5 milhões de pessoas [a população neo-zelandeza]”, que ela não tinha certeza de saber de tudo a ser feito e que precisava de colaboração.

Desemprego bate recorde e chega a 14,4% no trimestre encerrado em agosto

Taxa é pressionada por afrouxamento do isolamento social e proximidade de redução do auxílio

 Diego Garcia | Folha de S. Paulo

 RIO DE JANEIRO - A flexibilização do distanciamento social e proximidade do fim do auxílio emergencial pressionaram a taxa de desemprego no Brasil, que alcançou o patamar recorde de 14,4% no trimestre encerrado em agosto.

É a maior marca da série histórica da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) Contínua, que calcula a desocupação oficial do país e teve início em 2012.

Isso representa 13,8 milhões de pessoas na fila do emprego, segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) divulgados nesta sexta-feira (30). No trimestre móvel anterior, terminado em maio, o desemprego no Brasil havia fechado em 12,9%.

No trimestre encerrado em fevereiro, a taxa estava em 11,6%. No mesmo trimestre de 2019, o desemprego era de 11,8%.

A alta do desemprego acontece em meio a flexibilização do isolamento social imposto no país como forma de conter o avanço da Covid-19.

Adriana Fernandes - Incompetência e a barreira dos 100%

- O Estado de S.Paulo

Com a perspectiva de recorde negativo, País pode enfrentar em 2021 uma crise da dívida

Em dezembro de 2017, o governo anunciava que um dos principais indicadores da sustentabilidade das contas públicas estava perto de atingir um limite perigoso. O Banco Central tinha acabado de projetar que a dívida bruta do País fecharia em valor bem perto de 80% do PIB no ano seguinte.

Chegar a 80% era considerado na época uma espécie de barreira a ser evitada a qualquer custo, a partir da qual, se rompida, a leitura seria imediata: um aumento considerável dos riscos para a execução das políticas monetária e fiscal diante da percepção de uma trajetória explosiva do endividamento público. Agências de classificação de risco entendiam que esse patamar indicava um quadro de descontrole da dívida para economias emergentes com o perfil como o do Brasil.

Pois nessa sexta-feira, o BC anunciou oficialmente que a dívida bruta ultrapassou a barreira de 90% do PIB. E o Ministério da Economia reconheceu, pela primeira vez, que o indicador vai ultrapassar os 100% do PIB nos próximos anos.

Pelas novas projeções, o Brasil fecha 2020 numa combinação perversa: as dívidas bruta e líquida (que desconta as reservas internacionais) chegam ao final do ano em patamares recordes. O pico anterior da dívida líquida, que por muitos anos cumpriu o papel de principal indicador de solvência do Brasil, tinha sido na crise econômica brasileira de 2002.

Míriam Leitão - O desemprego e a propaganda

- O Globo

O mercado de trabalho enfrenta a maior crise da sua história, mas não espere que a equipe econômica faça análises técnicas e sóbrias sobre o momento atual. O ministro Paulo Guedes e o secretário de Previdência e Trabalho, Bruno Bianco, têm aproveitado as coletivas do Caged para o autoelogio. É normal que se comemore a geração de empregos formais, mas pode ter havido subnotificação das demissões. Além disso, o IBGE conta outra história: desemprego recorde, precarização do trabalho e aumento do desalento. O país vive uma situação inusitada, mas já prevista pelos especialistas: criação de vagas com aumento do desemprego, ao mesmo tempo.

Existem três termômetros para se entender o mercado de trabalho brasileiro. A Pnad Contínua, a Pnad Covid, ambas medidas pelo IBGE, e o Caged, que mede o emprego formal. Isoladamente, nenhum deles é capaz de dizer o que está acontecendo. O ideal é que a equipe econômica fosse capaz de ter uma visão sóbria e ampla para formular políticas de saída da crise. Quem acompanhou a entrevista de quinta-feira com Paulo Guedes e Bruno Bianco teve que ouvir uma sucessão de frases feitas como “o Caged mostra que desde sempre o nosso presidente estava correto”, “o mercado de trabalho comprova recuperação em V” ou “criamos o maior programa de proteção do emprego do mundo”. Bom para palanque, constrangedor em um ministério técnico.

Raul Jungmann* - O inferno da (in) segurança

- Capital Político 

A morte volta a triunfar sobre a vida e o seu sucesso se mede pelo número de óbitos, segundo o Anuário da Segurança Pública de 2020. Isto é, as mortes violentas, que vinham caindo desde 2018, voltaram a crescer no primeiro semestre do ano, 7.1%. 

No mesmo dia em que o anuário registrava a estatística mórbida, a pesquisa “Mapa dos Grupos Armados do Rio” constatava que 57% do território da cidade do Rio de Janeiro e quase um terço da sua população (dois milhões de habitantes), vive sob o domínio da milícia. Ainda nesse dia aziago, a Polícia Federal informava que os registros de armas cresceram 120% em 2020.

Das trevas do nosso sistema prisional emergia a informação de que 75% dos 862 mil apenados, dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) são negros e pobres. Eis, num único dia, a síntese do inferno da (in)segurança no Brasil e da ausência de uma política nacional pública de segurança sob o atual governo.  

A pandemia veio agravar o desemprego crescente, na casa dos 14%,  sem contar outros 10 milhões que deixaram de procurar trabalho – talvez pendurados no auxílio emergencial de difícil continuidade, elevando as tensões sociais.

Marcus Pestana* - O nevoeiro e o vácuo de liderança

Tancredo Neves assinalou certa vez, com a experiência de quem viveu muitos momentos tensos e decisivos: “A esperança é o único patrimônio dos deserdados, e é a ela que recorrem as nações, ao ressurgirem dos desastres históricos”. O mundo inteiro ainda assiste apreensivo e perplexo o furacão que devastou 2020, a partir da explosão pandêmica da COVID-19. Para despertar esperança, estadistas e líderes políticos precisam de firmeza, clareza, capacidade de previsão e compartilhamento convincente sobre os rumos a serem seguidos. Mas a sociedade não se alimenta só de retórica e promessas, quer ações e resultados.

Confesso que está difícil, no Brasil de nossos dias, ser um “realista esperançoso” como queria Ariano Suassuna. A cruzada contra a “vacina chinesa”, o fato de o próprio governo desestimular a população a se imunizar e a permanente exaltação de “medicamentos milagrosos” contra a COVID-19 não formam propriamente um quadro otimista. Tantos desafios e a energia sendo desperdiçada em polêmicas inúteis. Como diria Nelson Rodrigues é óbvio ululante que só serão oferecidas à população vacinas registradas na ANVISA, portanto seguras e eficazes. Assim como é uma sonora idiotice achar que há um plano diabólico do Partido Comunista Chinês por trás de sua vacina.

O que a mídia pensa – Opiniões / Editoriais

Politização das vacinas já produz estragos – Opinião | O Globo

Governadores e prefeitos precisam alertar a população para a importância da imunização

A politização das vacinas no Brasil — assunto que deveria permanecer imune às idiossincrasias da política — já começa a surtir efeitos nefastos para a saúde pública, antes mesmo que qualquer uma das cerca de 200 candidatas pesquisadas em todo o mundo tenha se tornado realidade.

Segundo pesquisa PoderData, o percentual de brasileiros dispostos a se vacinar contra o novo coronavírus caiu de 85% para 63% em menos de quatro meses (entre início de julho e fim de outubro). A rejeição subiu de 8% para 22% nesse período. Não surpreende que, entre apoiadores do presidente Jair Bolsonaro (os que avaliam o governo como ótimo ou bom), a rejeição à vacina seja de 33%, superando a dos grupos que consideram a gestão ruim ou péssima (17%) e regular (11%).

Bolsonaro tem sido protagonista de uma campanha contra a obrigatoriedade da vacina, animando os terraplanistas de ocasião que fazem o Brasil regredir ao início do século passado, quando houve no Rio de Janeiro a Revolta da Vacina. Já era patético naquela época.

Em conversa com apoiadores, Bolsonaro disse que “não pode um juiz decidir se você vai ou não tomar vacina”. Soou como recado ao presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Luiz Fux, que atribuíra à Justiça o papel de definir os critérios para uma futura vacinação. Criou-se mais um conflito improdutivo, depois do embate ríspido com o governador paulista, João Doria, em torno da CoronaVac, a vacina chinesa testada pelo Instituto Butantan. Doria também politizara a questão ao prometer, sem base técnica, começar a vacinar a população em dezembro.

Poesia | Fernando Pessoa - Estou

   

Estou tonto, 
    Tonto de tanto dormir ou de tanto pensar, 
    Ou de ambas as coisas. 
    O que sei é que estou tonto 
    E não sei bem se me devo levantar da cadeira 
    Ou como me levantar dela. 
    Fiquemos nisto: estou tonto. 

    Afinal 
    Que vida fiz eu da vida? 
    Nada. 
    Tudo interstícios, 
    Tudo aproximações, 
    Tudo função do irregular e do absurdo, 
    Tudo nada. 
    É por isso que estou tonto ... 

    Agora 
    Todas as manhãs me levanto 
    Tonto ... 

    Sim, verdadeiramente tonto... 
    Sem saber em mim e meu nome, 
    Sem saber onde estou, 
    Sem saber o que fui, 
    Sem saber nada. 

    Mas se isto é assim, é assim. 
    Deixo-me estar na cadeira, 
    Estou tonto. 
    Bem, estou tonto. 
    Fico sentado 
    E tonto, 
    Sim, tonto, 
    Tonto... 
    Tonto.