quarta-feira, 25 de novembro de 2020

Merval Pereira - Pressão pela vacina

- O Globo

O governo, que pensava ter escapado de apresentar um plano de vacinação contra a COVID-19 exigido pelo Tribunal de Contas da União (TCU), alegando questões burocráticas, agora não tem mais desculpas. O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Ricardo Lewandowski deu um mês, a partir da decisão final do plenário virtual, para que apresente um plano de vacinação que “deve seguir critérios técnicos e científicos pertinentes, assegurada a maior cobertura vacinal possível, no limite de suas capacidades operacionais e orçamentárias".

Ao que tudo indica, o governo não tem nem mesmo um projeto de plano, pois, ao ser exigido pelo TCU, a Advocacia-Geral da União (AGU) valeu-se de uma alegação tecnocrática para se esquivar de apresentá-lo. Alegou que a decisão do TCU está equivocada, pois o tribunal não deveria ter listado a Casa Civil ao lado do Ministério da Saúde como um dos órgãos responsáveis pelo planejamento da vacinação.

Essa atribuição, de acordo com a AGU, é exclusiva do ministério, e por isso o governo pediu que o Tribunal alterasse a decisão. A AGU alega que seria “uma ingerência da Casa Civil nas competências institucionais próprias do ministério da Saúde”. Essa alegação esdrúxula não foi levada em conta pelo TCU, que deverá se reunir brevemente para rejeitá-la.

Mesmo com o uso do “data venia”, não é aceitável que o governo se escude em uma suposta falha burocrática para deixar de cumprir seu dever, que era o de apresentar um plano detalhado do planejamento para compra, produção e distribuição das doses da vacina. O TCU pedia também informações sobre a logística da vacinação, supostamente uma especialidade do ministro Eduardo Pazzuelo.

Luiz Carlos Azedo - A grande travessia

- Correio Braziliense

A transmissão do novo coronavírus do Brasil deu um salto: formou-se uma segunda onda, na qual 100 infectados contaminam outras 130 pessoas

Os brasileiros estão diante de uma grande travessia, como o jagunço Riobaldo no romance Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa: “Viver é muito perigoso… Porque aprender a viver é que é o viver mesmo… Travessia perigosa, mas é a da vida. Sertão que se alteia e abaixa…”. Essa forma de encarar a vida faz parte do nosso inconsciente coletivo, principalmente em razão da secular iniquidade social em que vive a maioria da população, ou seja, está entranhada na camada mais profunda e inata do nosso inconsciente social. Grande Sertão: Veredas foi publicado em 1956, sem capítulos e com mais de 600 páginas. Guimarães Rosa fundiu o experimentalismo linguístico e a temática regionalista do movimento modernista numa obra universal e, ao mesmo tempo, capaz de capturar a alma dos caboclos mineiros, no relato de Riobaldo sobre suas lutas, seus medos e o amor reprimido por Diadorim.

A analogia faz todo sentido. É mais ou menos o que acontece nesta pandemia, que está entrando numa segunda onda, com a maioria da população se arriscando, estoicamente, para manter algum nível de atividade econômica e renda, enquanto outra parcela está se expondo sem necessidade alguma, por pura irresponsabilidade e/ou negacionismo. A taxa de transmissão do novo coronavírus no Brasil deu um salto, chegando a 1,30 na última semana epidemiológica, o que equivale aos índices de maio passado, segundo o Imperial College de Londres. Isso significa que se formou uma segunda onda, na qual 100 infectados contaminam outras 130 pessoas. Como a pandemia estava em baixa, mas não havia acabado, essa segunda onda começa de um patamar muito elevado. O resultado imediato são enfermarias dos hospitais começando a ficar lotadas, na maioria das cidades.

Rosângela Bittar - A terceira eleição

- O Estado de S. Paulo

PSDB não teme solução radical para buscar um novo nome: a realização de prévias

Ao apurar as urnas, no domingo, o município de São Paulo terá o resultado de três eleições. A primeira revelará a identidade do novo prefeito. A segunda, de dimensão nacional, indicará os efeitos desta definição na peleja do governador João Doria e do presidente Jair Bolsonaro. A terceira e mais complexa deflagrará a disputa interna no PSDB, de que pouco se fala mas, com certeza, desabrochará.

A resistência a João Doria definirá sua proporção, no PSDB, a partir de agora. Com o desempenho eleitoral do prefeito Bruno Covas este grupo, que contava apenas com a presença discreta do governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, passa a ter um novo ponto de articulação.

Se conseguir levar seu eleitorado a comparecer, Covas continua favorito para vencer o segundo turno, apesar do impulso de crescimento de seu oponente em cima do contingente de indecisos. Se não, pelo resultado até aqui, passou a ser um ator importante nas definições político-eleitorais do PSDB. Não é mais o vice, de carona em um mandato tampão de prefeito. Sua votação tornou-se pessoal. A campanha lhe permitiu, também, mostrar uma gestão reconhecida, apesar da travessia de períodos dramáticos que viveram os cidadãos e ele próprio.

Vera Magalhães - Mas sua filha vota

- O Estado de S. Paulo

Degrau geracional no voto em SP mostra urgência de falar com eleitor jovem

Apenas dois anos separam os jovens Bruno Covas (40 anos) e Guilherme Boulos (38). Mas as estratégias definidas pelas duas campanhas à Prefeitura de São Paulo levaram a que se estabelecesse um “degrau geracional” no voto de ambos que pode projetar cenários importantes para a política nacional, além das fronteiras da capital paulista.

Em 16 de novembro, dia seguinte ao primeiro turno, o ex-jogador de futebol e comentarista esportivo Walter Casagrande postou a mesma pergunta a Boulos e Covas: ele, dependente químico em recuperação, queria saber a política de ambos para as drogas. Boulos levou menos de duas horas para responder. Covas levou dez. No último fim de semana, Boulos fez uma live com o youtuber Felipe Neto, que tem 40 milhões de seguidores no YouTube, para jogar AmongUs, um jogo eletrônico que é febre entre jovens, acompanhado das filhas. Até a noite de ontem o vídeo tinha 3,1 milhões de visualizações.

Ricardo Noblat - [Des] governo de Bolsonaro ignora o vírus, Biden e a China

- Blog do Noblat | Veja

À caça de novos conflitos

Uma vez que desistiu, não se sabe por quanto tempo, de bater de frente com o Congresso e o Supremo Tribunal Federal, o presidente Jair Bolsonaro, que só vive à base de conflitos, saiu à procura de novos alvos. E, no momento, elegeu pelo menos três de grande porte: a pandemia, o futuro governo Joe Biden e a China.

Uma segunda onda, ou o recrudescimento da primeira, bate às portas do país segundo todos os indicadores conhecidos até agora. E o que faz o [des] governo? Por ora, nada. Estoca quase 7 milhões de kits de testes do Covid-19 por ser incapaz de distribuí-los com os Estados. Ou simplesmente porque não quer distribuir.

Arrasta-se no processo de compra de vacinas suficientes para imunizar toda a população do país. Persiste em discriminar a vacina chinesa que será produzida pelo Instituto Butantã, em São Paulo, Estado governado por seu arqui-inimigo João Doria (PSDB). E sequer tem um plano para a vacinação em massa.

Joe Biden, candidato do Partido Democrata, foi eleito presidente dos Estados Unidos há duas semanas. Estados onde ele venceu recontaram os votos e confirmaram sua vitória. Donald Trump, o tutor de Bolsonaro, ordenou o início da transição de governo. Nem assim, Bolsonaro cumprimentou Biden até hoje.

Bernardo Mello Franco - Disputa na lama

- O Globo

A disputa pela prefeitura do Rio desceu até o nível do pré-sal. Nos últimos dias de campanha, Marcelo Crivella e Eduardo Paes travam um duelo de agressões e ofensas. O comportamento dos candidatos ajuda a rebaixar a cidade, que já sofre com a pandemia, a crise econômica e os sucessivos escândalos de corrupção.

Em apuros nas pesquisas, Crivella apelou à tática da guerra santa. Num vídeo dirigido a eleitores evangélicos, ele disse que Paes implantaria a pedofilia nas escolas. Não foi a única baixaria protagonizada pelo bispo da Igreja Universal.

Sua campanha imprimiu 1,5 milhão de panfletos em que Paes aparece ao lado de Marcelo Freixo. Além de emporcalhar as ruas, a peça difunde mentiras. Acusa os dois de defenderem legalização do aborto, liberação das drogas e “kit gay” nas escolas.

Crivella investe no fundamentalismo e na desinformação. A legislação sobre drogas e aborto é federal, nada tem a ver com as atribuições de um prefeito. O “kit gay” nunca existiu. É uma ficção usada por políticos reacionários para tapear eleitores religiosos.

Bruno Boghossian – A experiência de Fortaleza

- Folha de S. Paulo

 Associação de candidato com presidente empurrou líderes de PT, PSDB, DEM e PSOL para campanha

A dez dias do primeiro turno, Jair Bolsonaro abriu espaço em sua transmissão nas redes e pediu votos em Capitão Wagner (Pros) para a Prefeitura de Fortaleza. “Parece que é minha segunda cidade do Brasil”, disse o presidente. O candidato chegou ao segundo turno, mas agora enfrenta um consórcio político interessado em derrotar essa aliança.

A disputa na capital cearense exibe os traços de uma experiência para a formação de uma frente antibolsonarista. A associação entre Wagner e o presidente empurrou líderes de siglas como PT, PSDB, DEM e PSOL para a campanha de José Sarto (PDT), candidato de Ciro Gomes.

O deputado Marcelo Freixo (PSOL) deu o tom dessa coalizão ao declarar apoio a Sarto, na semana passada. “É muito importante derrotar o candidato do ódio, o candidato da mentira, o candidato do medo, o candidato do Bolsonaro”, afirmou o parlamentar, em vídeo que foi divulgado numa página de Ciro.

Na segunda-feira (23), o pedetista levou ao ar em seu programa de TV, manifestações de petistas e de Rodrigo Maia (DEM). “Ninguém governa sozinho”, disse o presidente da Câmara para justificar a participação da sigla na chapa do candidato.

Sarto também exibiu uma declaração do senador cearense Tasso Jereissati (PSDB), que já foi chamado por Ciro de “picareta-mor”. Depois de um longo afastamento, os dois ensaiaram uma reaproximação.

Hélio Schwartsman - Resquício do Império

- Folha de S. Paulo

Renda não pode ser critério para definir quanto dinheiro eleitor pode dar ao candidato

O Brasil é um país engraçado. Em nome de um elusivo equilíbrio na disputa eleitoral, regulamos até o tamanho do cartaz que o cidadão pode afixar em sua janela (0,5 m2 no máximo), mas permitimos que milionários façam doações polpudas, com muito maior poder de “influenciar” o voto.

Não tenho nada contra doações de pessoas físicas, muito pelo contrário. Não vejo grande diferença entre fazer um discurso apaixonado em defesa de um candidato, algo que a maioria das pessoas toma como sinal de vigor da democracia, e abrir a carteira para ele. Acho até que a competência para arrecadar fundos é um bom “proxy” da capacidade gerencial que desejamos nos administradores.

Não vejo, porém, como justificar a norma aqui adotada que fixa o limite da doação em 10% da renda bruta auferida pelo eleitor no ano anterior ao do pleito. Como mostrou reportagem da Folha, esse mecanismo permite que empresários bem-sucedidos irriguem as campanhas de seus políticos favoritos com valores significativos, que podem exceder R$ 1 milhão.

Ruy Castro - Procura-se Pazuello, o zero bala

- Folha de S. Paulo

O ministro da Saúde teve Covid. Mas não sabemos a quantas anda e nem sequer se já sarou

Devo estar mal informado, mas, então, o Google também estará. Ao ver ontem o general Eduardo Pazuello sendo chamado a se explicar sobre os 6,8 milhões de testes de Covid mofando num galpão federal em Guarulhos (SP), ocorreu-me que ele é o ministro de Saúde. Ocorreu-me também que, desde que contraiu o vírus —sim, Pazuello pegou a doença, lembra-se?—, mal ouvimos falar dele. E que, sendo o responsável pela saúde de 212 milhões de brasileiros, sua própria saúde é ou deveria ser do interesse nacional.

Pazuello foi diagnosticado com Covid no dia 21 de outubro. Internou-se num hospital de Brasília, onde seu chefe Jair Bolsonaro o visitou expressamente para desmoralizá-lo, desautorizando a sua compra da vacina Coronovac. Pazuello engoliu a ofensa, disse-se "zero bala" e se mudou para um hospital militar. Teve alta no dia 3 seguinte e foi para casa, mas só retomou as "atividades presenciais" no dia 11. Em entrevista, admitiu "ainda não estar completamente recuperado" e atreveu-se a chamar a Covid de "doença complicada". E, a partir dali, sumiu do noticiário —até ontem. Digitei "Pazuello e Covid" no Google para saber se ele estava mesmo "zero bala". Nada sobre esse assunto.

Míriam Leitão - O risco de novo abalo na economia

- O Globo

Há novos riscos que ainda não estão nos cenários. Está havendo o agravamento da pandemia, elevando a incerteza. O governo projeta crescimento de 3,2% do PIB no ano que vem, mas o impacto desse novo momento não entrou ainda na conta nem do governo, nem dos economistas. No Focus, subiu para 3,4%. Mesmo que se confirme o cenário mais otimista, virá depois de uma queda de 4,5% este ano e não irá recuperar toda a perda. Cada setor está voltando de um jeito, o agronegócio continuou crescendo, a indústria se beneficiou do dólar alto, mas há muito tempo está em crise, o setor de serviços é o que tem o desempenho mais heterogêneo.

A economista Vilma Pinto, especialista em contas públicas e assessora econômica do governo do Paraná, diz que há uma discussão sobre que letra desenha melhor a realidade da recuperação, se é V ou W, mas ela acha que nos serviços o melhor é usar a letra K. Alguns segmentos do setor se recuperam. Outros ficam negativos. Esse setor é o mais importante para as cidades, que estão ainda no processo de escolha dos prefeitos. Os serviços estão ficando para trás, principalmente os voltados às famílias, como turismo, entretenimento e alimentação fora de casa. Isso aumentará as desigualdades no mercado de trabalho, com impacto maior sobre jovens, negros e menos escolarizados.

Fernando Exman - A dura vida da equipe econômica na Câmara

- Valor Econômico

Seja qual for o futuro presidente, cenário será desafiador

Segue indefinida a disputa pela presidência da Câmara, corrida encabeçada pelo blocão do líder do PP, Arthur Lira (AL), nome preferido do Palácio do Planalto, e o grupo do presidente Rodrigo Maia (DEM-RJ). Os próprios envolvidos no duelo alertam: quem se arriscar a cravar um prognóstico do resultado da eleição está mal informado ou deliberadamente mal-intencionado, querendo passar uma visão distorcida da realidade para influenciar o jogo. Já se pode projetar sem medo de errar, contudo, que o cenário será desafiador para a equipe econômica, seja qual for o vencedor.

Nas últimas semanas, o ministro da Economia, Paulo Guedes, tem aproveitado eventos públicos para reiterar seu plano de voo. Enquanto tenta abrir espaço na agenda legislativa para a tramitação das reformas, trabalha para dar um impulso definitivo à votação de propostas que visam melhorar o ambiente de negócios, como o projeto que garante autonomia ao Banco Central, marcos regulatórios setoriais capazes de atrair investimentos e a nova Lei de Falências. Dia sim outro também, insiste em destravar as privatizações de Eletrobras, Correios, Porto de Santos e PPSA, a estatal que representa a União nos contratos de partilha do setor de petróleo - uma pauta louvável consagrada nas urnas em 2018, mas que até agora não emocionou os congressistas.

Monica De Bolle* - A transição

- O Estado de S. Paulo

Começo da transição do governo Biden deixa claro que os surtos de anomalia aguda vêm e vão

No fim, as profecias mais pessimistas sobre “o fim da democracia americana”, entoadas com ar de gravidade por diversos analistas nos EUA e no Brasil, não se confirmou. E era mais do que esperado que não se confirmasse. Como escrevi tanto neste espaço quanto em coluna para a revista Época, Donald J. Trump gosta de quebrar porcelana, mas, quando se trata das instituições deste país onde vivo há muitos anos, entre idas e vindas, tudo funciona conforme se espera. 

O Judiciário descartou praticamente todas as tentativas de Trump de subverter as eleições, muitas das quais risíveis. Cenas absurdas marcaram as semanas que transcorreram desde 3 novembro, e a elas voltarei em um instante. Além do Judiciário, as legislaturas estaduais, os responsáveis pela certificação das eleições, entre outros, não se deixaram abalar pelas investidas do ainda presidente, que já havia desistido de governar para se entregar a tentativas esdrúxulas de invalidar as eleições e a rodadas de golfe nos fins de semana. Prevaleceu o que prevaleceria: a vitória do presidente eleito, o democrata Joe Biden.

Vinicius Torres Freire – Bolsonaro sem auxílio emergencial

- Folha de S. Paulo

Até para achar um dinheirinho para o 'renda básica' será necessário corte duro

Imaginem a seguinte manchete: “Bolsonaro quer congelar aposentadorias do INSS”. A seguir, viria outra, mais ou menos assim: “Governo propõe corte de salários de servidores do Brasil inteiro”.

Antes de discutir se tais ideias prestam ou o que significam, suponha-se o que Jair Bolsonaro vai achar disso, ainda mais se as notícias da baixa de sua popularidade em grandes capitais se confirmarem pelo resto do país.

Essas são algumas ideias em discussão para que se arrume algum dinheiro para o “Renda Brasil”, Bolsa Família encorpado, o nome que se dê, algo que substitua o auxílio emergencial. Além de todos os problemas fiscais, técnico-legais, de disputas no Congresso e de pressões dos donos do dinheiro, há o fator Bolsonaro. Olhando as pesquisas de popularidade de dezembro, vai tomar qual medida?

Vai haver dinheiro para atenuar a pobreza e a miséria que virão com o fim do auxílio emergencial e a persistência do desemprego? Lembrete: antes da epidemia, havia 92 milhões de pessoas ocupadas no país. Os dados recentes não são muito precisos (nem recentes), mas a população ocupada deve andar pela casa de 83 milhões ou 84 milhões. Vai haver emprego para 8 milhões de pessoas até janeiro? Não. Para as pessoas que chegaram ao mercado de trabalho neste ano? Não. A renda do trabalhador informal miudinho vai se recuperar com a epidemia ainda fervendo? Não.

Fábio Alves - Guedes sob pressão

- O Estado de S.Paulo

Se ministro conseguir entregar alguma reforma, reputação ficará menos arranhada

Paulo Guedes chega ao fim do seu segundo ano no cargo com a credibilidade seriamente abalada perante analistas e investidores do mercado financeiro, público que foi um dos primeiros eleitores a abraçar a campanha do então candidato presidencial Jair Bolsonaro, em 2018, em razão do apoio irrestrito ao seu escolhido para ministro da Economia.

Mas a imagem de Guedes no mercado passou de respeito e admiração para ceticismo nas palavras do ministro ou até mesmo chacota. Nos últimos dias, corre em mensagens de grupo de WhatsApp entre economistas e investidores a figurinha de Guedes, dedo indicador em riste e um leve sorriso no rosto, com a seguinte legenda: “Semana que Vem”, numa alusão ao histórico do ministro de prometer entregar propostas da agenda econômica sempre para um futuro próximo.

Outra figurinha mostra um posto Ipiranga em chamas, numa referência ao fato de que o mercado deixou de acreditar que Bolsonaro ainda dá a Guedes carta branca para resolver e decidir todos os assuntos da área econômica, ao contrário da campanha presidencial, quando Guedes era chamado de “Posto Ipiranga” pelo agora presidente.

Roberto DaMatta* - Americanização do Brasil

- O Globo | O Estado de S. Paulo

Estados Unidos ‘brasilianizados’ seriam marcados por ruidosa desigualdade

Quando falei “americanização”, pensei imediatamente numa correspondente “brasilianização” dos Estados Unidos.

A expressão causou barulho quando, em 1995, Michael Lind publicou o livro “The Next American Nation” (“A próxima nação americana”). Nele, o professor aponta o brutal enriquecimento dos americanos ricos, ancorado em políticas do Partido Democrata.

Esses bilionários não formariam apenas uma “classe dominante”, mas uma “sobre-classe branca”: um segmento dotado de um poder jamais visto. Sua contrapartida seria uma “subclasse pobre-negra-asiática e marrom”. Nesse novo modo de dominação, o ideal não seria mais construir uma bíblica “cidade sobre uma montanha”, mas o egoísmo de possuir uma “mansão atrás de um muro”.

É nesse contexto que Lind alerta para uma “brazilianization” da sociedade americana: “uma anarquia feudal, altamente tecnológica, constituída por um privilegiado arquipélago de brancos em meio a um oceano de pobreza branca, negra e marrom”; uma riqueza sustentada por políticas erradas (porque seriam antiestatais), sobretudo no que diz respeito à imigração.

Eis, numa cápsula, o programa de um Trump que começou a construir o muro, focou nos brancos pobres e adotou o “primeiro a América”. Um programa político que o elegeu e hoje — graças à eleição como um rito de mudança, cujo resultado foi raramente posto em dúvida na América —vai tirá-lo (assim espero) da Casa Branca.

Mas, tanto lá quanto cá, persiste uma curiosa inversão. De fato, uns Estados Unidos “brasilianizados” seriam marcados por uma ruidosa desigualdade e por um desmesurado personalismo populista — uma americanização do nosso “Você sabe com quem está falando?”; ao passo que um Brasil americanizado seria o exato oposto: uma contenção dos impulsos personalistas, fonte e razão de populismos autoritários, ao lado de uma busca de programas públicos responsáveis e factíveis. No fundo, um inesperado e americano “Quem você pensa que é?” — num país em que toneladas de privilégio neutralizam todas as éticas — jamais foi seriamente dirimido.

Zuenir Ventura - Vidas negras e Bolsonaro

- O Globo

Negacionismo do presidente e do vice chegou ao ridículo

Para Bolsonaro, vidas negras não importam ou importam pouco. Sabia-se disso desde quando, em abril de 2017, ele lembrou sua visita a um quilombo. Eis alguns trechos esquecidos do seu relato na Hebraica Rio: “O afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada! Eu acho que nem para procriador ele serve mais”.

Esse desprezo pelo gênero humano, apenas por serem negros, levou a então procuradora-geral da República, Raquel Dodge, a pedir ao Supremo a condenação do autor a três anos de prisão e multa de R$ 400 mil pelos crimes de racismo contra quilombolas, aos quais se referia empregando a palavra arroba como se fossem animais.

A defesa de Bolsonaro alegou que as declarações racistas do então deputado e candidato à Presidência da República “expressaram sua opinião, (foram) proferidas no exercício da função e estavam acobertadas pela imunidade parlamentar”. Não adiantou argumentar que os trechos do discurso inseridos na denúncia eram suficientes para demonstrar “a prática, a indução e a incitação de discriminação e preconceito a uma plateia com mais de 300 ouvintes”.

Elio Gaspari - Os comandantes e o tenente Andrea

- O Globo | Folha de S. Paulo

Violência policial se manifesta também nos motins de PMs que recebem o beneplácito de hierarcas

A cena, gravada em setembro num quartel da Polícia Militar de Mato Grosso do Sul, está na rede. O segundo-tenente André Luiz Leonel Andrea derruba e espanca uma mulher algemada (pelo menos sete socos e dois chutes). Outro PM segura a senhora enquanto ela é esmurrada, até que uma policial militar contém o oficial. O comando da corporação diz que só soube do episódio semanas depois e tirou o tenente do comando do pelotão da cidade de Bodoquena. Quanto à senhora, explicou o comando, era uma desordeira, estava bêbada e desacatou os policiais. Era por isso que estava detida e algemada. Admitindo que essa versão é verdadeira, só faltava que apanhasse porque foi comprar cloroquina.

Também está na rede outro vídeo, de março. Nele, o tenente Andrea explica à população de Bodoquena as regras do toque de recolher imposto pela pandemia. É outro homem. Fala pelo menos 15 vezes em leis ou decretos, cita a Constituição e, em 13 ocasiões, pede bom senso a todos. Vendo-o, sente-se uma ponta de orgulho pelo agente da lei.

Cristiano Romero - Luta contra racismo é a reforma mais importante

- Valor Econômico

Brasil nunca dará certo se combate ao racismo não for 1º item da agenda

O enfrentamento do racismo é muito mais urgente do que a aprovação de qualquer reforma no Brasil. Nada funcionará se o combate institucional ao racismo não se tornar o primeiro item da agenda do Estado brasileiro, sua missão precípua, independentemente do governo do momento.

A adoção de medidas de reparação à população negra (56% dos habitantes deste país) devido à infâmia dos 400 anos de escravidão e dos 120 subsequentes em sua versão 2.0 (dissimulada, covarde e violenta) deveria ser uma rubrica inviolável dos orçamentos públicos. Políticas afirmativas - mais amplas e efetivas que as já previstas em lei - precisariam ser implantadas enquanto, paralelamente, o Estado, em todos os seus níveis, ocupar-se-ia da batalha diuturna e incessante contra a discriminação racial e todas as outras formas de discriminação.

Olhadas de perto, as outras formas de discriminação também derivam dos hábitos e costumes da sociedade escravagista que predominou entre nós (e ainda predomina para a maioria dos brasileiros). A Ilha de Vera Cruz jamais será uma nação se seus habitantes não se reconhecerem no outro, independentemente da origem étnica de cada um. A terrível chaga da escravidão - usada como fator de acumulação de capital desde a chegada dos portugueses - impediu que o país com maior diversidade étnica do planeta criasse uma nação justa, igualitária, pacífica, um “povo novo” na acepção de Darcy Ribeiro e o “país do futuro”, na de Stephan Zweig.

É de um cinismo atroz justificar, com argumentos econômicos, a necessidade de se colocar o racismo no topo da agenda nacional. O que está em discussão são direitos e garantias fundamentais de 109 milhões de brasileiros (56,10% da população, segundo a pesquisa Pnad do IBGE). De toda forma, é de se esperar que, após alguns anos de enfrentamento radical, institucional, do racismo, os índices médios de escolaridade da população cresceriam e a consequência disso na economia seria a elevação da produtividade da economia.

José Nêumanne* - A ignorância racista de Bolsonaro e Mourão

- O Estado de S. Paulo

Ao negarem legado racista da escravidão, presidente e vice se revelam seus arautos

Na quinta-feira 19, os brancos Giovane Gaspar da Silva, de 24 anos, policial militar temporário e, segundo a Polícia Federal, sem registro nacional para atuar como segurança, e Magno Braz Borges, ambos funcionários da Vector Segurança, mataram o soldador negro João Alberto Silveira Freitas. O massacre no estacionamento de uma loja do Carrefour em Porto Alegre provocou protestos a partir do dia seguinte, feriado da Consciência Negra em vários municípios brasileiros, incluindo São Paulo.

O presidente Jair Bolsonaro e seu vice, Hamilton Mourão, ambos da reserva do Exército, execraram esses protestos. “No Brasil não existe racismo”, pontificou o general. O capitão foi além ao comentar o fato, sem citar o nome da vítima, em suas redes sociais e em discurso em reunião virtual do G-20, afirmando que o Brasil é um país miscigenado e “foi a essência desse povo que conquistou a simpatia do mundo.” Disse ainda: “Contudo há quem queira destruí-la e colocar em seu lugar o conflito, o ressentimento, o ódio e a divisão entre raças, sempre mascarados de ‘luta por igualdade’ ou ‘justiça social’. Tudo em busca de poder”. E mais: “Aqueles que instigam o povo à discórdia, fabricando e promovendo conflitos, atentam não somente contra a Nação, mas contra nossa própria História. Quem prega isso está no lugar errado, seu lugar é no lixo”.

O que a mídia pensa: Opiniões / Editoriais

Um ministro sem rumo – Opinião | O Estado de S. Paulo

Paulo Guedes, da Economia, tem uma vaga ideia de onde está, ignora para onde vai e desconhece, portanto, como chegar lá.

O ministro da Economia, Paulo Guedes, tem uma vaga ideia de onde está, ignora para onde vai e desconhece, portanto, como chegar lá. Na escuridão, será cobrado ao mesmo tempo para arrumar as contas públicas, ampliar o âmbito da recuperação econômica, aumentar os investimentos e, acima de tudo, cuidar da reeleição do presidente da República. Será complicado combinar os dois primeiros itens, mas pelo menos esse desafio fará sentido. A resposta será possível com um plano bem cuidado, crível e apresentado de forma competente ao mercado. Mas planejamento é algo estranho ao ministro e credibilidade é uma palavra muito longa para seu chefe. Atender a todas as cobranças será impossível. A mera tentativa será desastrosa, como tem sido até agora.

Nos próximos dois anos, prometeu o ministro, o governo vai jogar no ataque, depois de ter jogado na defesa na primeira metade do mandato. Haverá, segundo ele, reformas, privatizações, prosperidade e abertura comercial. As privatizações deveriam ter rendido R$ 1 trilhão em pouco tempo, segundo sua promessa anterior. Mas nada foi vendido, até agora, nem ele explicou por que a história será diferente a partir de agora, com o mesmo presidente e com tanta gente, no governo e em torno dele, interessada em usar as estatais para seus propósitos.

Sem surpresa, o ministro continua reciclando as promessas, jogando-as para a frente e nunca explicando como vai cumpri-las. Com a mesma firmeza, sempre sujeita a uma reconsideração, ele negou a manutenção do auxílio emergencial em 2021 – exceto se houver uma segunda onda de covid-19.

Mas a pandemia, segundo ele, está amainando no Brasil. Não há bom motivo, portanto, para preocupação diante das notícias de recrudescimento. “Parece que está havendo repiques. São ciclos, vamos observar. Fato é que a doença cedeu substancialmente. As pessoas saíram mais, se descuidaram um pouco. Mas tem características sazonais da doença, estamos entrando no verão, vamos observar um pouco.”

Poesia | Ascenso Ferreira - Misticismo-

Na paisagem da rua calma,

tu vinhas vindo… vinhas vindo…,

e teu vestido era tão lindo

que parecia que tu vinhas envolvida na tu’alma…

Alma encantada;

ama lavada

e como que posta ao sol para corar…

E que mãos misteriosas terão feito o teu vestido,

que até parece o de Maria Borralheira,

quando foi se casas…!

─ Certamente foi tecido

pelas mãos de uma estrela fiandeira,

com fios de luz, no tear do luar…

no tear do luar…

O teu vestido era tão que parece o de Maria Borralheira

quando foi se casar…

─ “Cor do mar com todos os peixinhos…!

─ Cor do céu com todas as estrelas…!

E vinhas vindo… vinhas vindo…

na paisagem da rua calma,

e o teu vestido era tão lindo

que parece que tu vinhas envolvida na tu’alma…