domingo, 20 de dezembro de 2020

Luiz Werneck Vianna* - As nossas duas pragas

Um ano aziago, sem dúvida, esse que começamos a deixar para trás. Então “que se foda 2020”, como se estampa no rótulo do vinho português da Adega Azoeira, aliás bem caro, porque ele superou todas as medidas ao combinar duas pragas pestilenciais, o covid19 e o governo Bolsonaro. Deixa em seus rastros cerca de 190 mil mortos, até aqui, e uma obra de destruição de muitas instituições frutos de conquistas de lutas democráticas e populares em que se acalentavam aspirações por uma sociedade menos injusta e mais igualitária. Desse flagelo, em que ainda se vive, acumulamos perdas, algumas irreparáveis como a de vidas ceifadas, e outras, que mais à frente, podemos com o tempo recuperar.

Contudo, esses têm sido também os tempos de avanços na valorização da ciência, como no empenho na busca de vacinas eficazes que interrompam a propagação incontrolada da atual pandemia, que ora se realiza por meio de uma comunidade científica que atua em caráter cosmopolita, ultrapassando os estreitos limites do Estado-nação. Igualmente viram renascer a agenda dos ideais da solidariedade, e impuseram com vigor os temas ambientais, especialmente entre os jovens. Sobretudo, 2020 foi o ano da derrota eleitoral de Donald Trump e seu projeto malévolo de imprimir um movimento de marcha à ré nas coisas do mundo a fim de nos devolver por inteiro, em pleno século XXI. o Estado-nação de infausta memória.

A ascensão de Joe Biden ao governo dos EUA, na esteira dos movimentos sociais mobilizados em sua campanha vitoriosa, não deve ser relativizada em sua importância como o fazem certas análises trêfegas, pois trata-se, na verdade, de um acontecimento de repercussão estratégica que afeta para melhor a disposição de processos fundamentais, tais como os do meio ambiente, cujo alvo é o capitalismo vitoriano predatório, e a revalorização dos organismos internacionais, especialmente da ONU. Muito particularmente, e isso é de evidência solar, a nefasta ação da atual política externa brasileira e do seu ministério do Meio Ambiente, a partir de 20 de janeiro, data da posse de Biden, perderão seus pontos de sustentação, o que não é de pouca monta.

Luiz Sérgio Henriques* - O que legaremos para 2021

- O Estado de S. Paulo

2020 é um daqueles anos cujos fantasmas vão querer nos assediar sem descanso

Como se fossem poucos os desafios ultimamente lançados às democracias, com as novas e audaciosas estratégias de corrosão da legitimidade das suas instituições, o ano que ora se encerra nos trouxe, na forma de uma pandemia, recados que costumamos imprudentemente esquecer nas horas ditas normais. O processo civilizatório avança constantemente, mas aos saltos. Vivemos mais e melhor, mas há intolerável desigualdade no gozo desse tempo adicional de vida. E tudo isso sem falar que o relativo “recuo das barreiras naturais” possibilitado por aquele avanço não se faz sem riscos permanentes. Somos seres precários, cujos impulsos de conquista convém temperar para manter a harmonia com o mundo natural e não alimentar a ilusão de domínio absoluto sobre ele.

O vírus que saltou a barreira entre espécies num remoto mercado teve o condão de nos lembrar que a máquina do mundo não funciona em moto contínuo e nem sempre estamos preparados para responder do modo mais racional ao inesperado, pelo menos não num primeiro momento. E muitos não responderão racionalmente em momento algum.

Não faltou quem, no início do grande drama, apostasse na ideia de um “vírus inventado” para propiciar o fortalecimento dos mecanismos societais encarregados de vigiar e punir. Uma ideia que, apregoada em setores progressistas, encontraria terreno já intensamente lavrado pelo moderno negacionismo científico de marca ultraconservadora. Não por acaso os negacionistas propriamente ditos passaram a repetir à exaustão a fábula do vírus desenhado em laboratório chinês, assim como, antes, haviam se atrevido a afirmações destrambelhadas, como a de que vacinas infantis são perigosas a ponto de levarem ao autismo.

Cristovam Buarque* - IDH: A culpa é nossa

- Blog do Noblat / Veja

Ignorar a responsabilidade dos governos anteriores é uma forma de negacionismo

O atual Presidente da República é o menos dotado de inteligência, capacidade gerencial, empatia social, espírito de tolerância e gosto pelo diálogo entre todos os que foram eleitos ao longo dos 130 anos de República; isto não justifica jogar sobre ele a responsabilidade pela queda da classificação do Brasil na escala do IDH. Ignorar a responsabilidade dos governos anteriores é uma forma de negacionismo, mentira que impede conhecer a realidade e aprender com os erros.

O IDH de cada país foi definido por dados de 2019, mas resultantes de anos e até décadas de descasos anteriores. A culpa, portanto, é dos governos precedentes ao longo de toda a República, especialmente nos 33 anos da nova democracia, dos quais 26 por governos progressistas, 13 dos quais de esquerda. A piora na renda per capita entre o IDH anterior e o atual não ocorreu por causa de 2019, mas devido a recessão iniciada em 2014. Os efeitos do período Bolsonaro serão vistos no futuro, e tudo indica que teremos quedas ainda maiores. Mas esta queda foi culpa nossa, não dele. Até porque nosso IDH melhorou ligeiramente, outros cinco países melhoraram mais e nos superaram.

Celso Lafer* - Joe Biden e Hannah Arendt

- O Estado de S. Paulo

Derrota de Trump foi o choque da realidade do despropósito da sua conduta

Em 28 de maio de 1975 o senador Joe Biden escreveu uma pequena carta a Hannah Arendt para solicitar o envio da conferência que ela pronunciara em Boston em foro voltado para discutir o bicentenário dos Estados Unidos. Indicava que tinha tido notícia da reflexão arendtiana em artigo de Tom Wicker e observava que o conhecimento do texto era de seu interesse como integrante da Comissão de Relações Exteriores do Senado.

A carta integra os arquivos de Arendt, é de conhecimento público e teve alguma circulação no correr da campanha presidencial deste ano nos Estados Unidos. É, por si só, um exemplo de que Biden desde o início de sua vida pública tinha antenas para os grandes desafios do sistema político americano.

É sem conta o número de motivos que me levam a olhar com simpatia a eleição de Joe Biden, o que significa para os valores e a prática da democracia e o que deverá representar para um papel mais construtivo dos Estados Unidos no mundo. Para um estudioso da obra de Arendt, e sem forçar a mão, é natural buscar no seu texto de 1975, que interessou a Biden, elementos que contribuem para o entendimento do alcance da sua vitória eleitoral.

O texto de Arendt, na versão para o português, intitula-se Tiro pela culatra, para indicar que não se pode escapar da avaliação e das consequências de uma crise da república americana, tema que abordou. Hoje integra a coletânea de seus ensaios reunidos no livro Responsabilidade e Julgamento, organizado por Jerome Kohn e publicado em 2003.

Carlos Melo* - Saldo ainda mais negativo…

- O Estado de S. Paulo

O saldo dos dois anos do governo Bolsonaro é trágico: da economia à política, da cultura aos exemplos que os líderes precisam expressar, quase nada do que se fez ou foi prometido pode ser aproveitado. Só não é pior porque muito do que se pretendeu fazer agravaria ainda mais a situação caso fosse efetivado, são os exemplos da pauta de costumes ou da agenda de Segurança Pública, compromissos do presidente com sua base mais fundamentalista e radical. Contudo, é claro, nada do que disse este parágrafo é consenso; e uma questão importante é compreender o porquê.

O presidente e seus aliados argumentam que o saldo negativo deve ser debitado da conta da oposição – que não existiu –, do espantalho de um “globalismo-comunista” (de ficção), da pandemia que paralisou o mundo em 2020. De fato, o ano foi marcante em todo planeta, em virtude da covid-19. Naturalmente, desse choque decorreram crises econômicas e sociais, tornando esse o período mais dramático desde a segunda guerra mundial, pelo menos.  Mas, no Brasil, por inacreditável que pudesse parecer, o presidente e os seus conseguiram agravar a situação.

Eliane Cantanhêde - Quem mente?

- O Estado de S. Paulo

Brasil assiste à vacinação alheia, Maia avança na Câmara e Bolsonaro às voltas com Abin

Rodrigo Maia (DEM) ao centro, Gleisi Hoffmann (PT) à esquerda e Luciano Bivar (PSL) à direita, ao lado de presidentes e líderes de 11 partidos – todos eles, não à toa, de máscara – marcam não apenas a disputa pela presidência da Câmara em fevereiro de 2021, mas um movimento que significa o seguinte: para além das diferenças, a prioridade é combater um adversário comum. É preciso dizer qual?

Não se trata da união de todos na alegria e na tristeza, até que a morte os separe, e nem mesmo que estarão juntos numa mesma chapa em 2022 para enfrentar a reeleição do presidente Jair Bolsonaro. Mas comprova o quanto Bolsonaro é competente para criar inimigos, trocar de amigos e espicaçar os eleitores mais escolarizados e bem informados – logo, com mais capacidade de influenciar votos.

A eleição para a presidência da Câmara se transformou num embate direto e virulento entre Bolsonaro, que tem o Centrão, e Maia, cujo desafio era, e é, aglutinar desde a esquerda até a direita hoje refratária ao bolsonarismo. O foco da disputa recaiu sobre o Republicanos, presidido pelo pastor Marcos Pereira, e o bloco de PT, PSB, PCdoB e PDT. O resultado é mais que natural.

Ricardo Noblat - Bolsonaro volta a atacar a imprensa e humilha seu filho Eduardo

- Blog do Noblat | Veja

“Você teve um voto. O resto foi meu”

Ao assumir a presidência da República em janeiro de 2019, a prioridade número um de Jair Bolsonaro era reeleger-se dali a quatro anos. Quanto ao resto, empurraria com a barriga.

Depois, à medida que seus três filhos zeros começaram a ser alvos de denúncias por corrupção, a reeleição passou a ser a prioridade número dois. Se não salvar os filhos, não se salvará.

É preciso, pois, desacreditar os autores das denúncias, especialmente a imprensa, que as divulga e pressiona os demais poderes a investigá-las a fundo.

A mais recente denúncia bateu diretamente à porta do gabinete presidencial no terceiro andar do Palácio do Planalto, e isso explica a escalada recente dos ataques de Bolsonaro à imprensa.

Ele reuniu-se com advogados do seu filho Flávio, acusado de embolsar dinheiro público à época em que era deputado estadual no Rio, com o propósito de ajudá-los no que fosse possível.

Estavam presentes o ministro Augusto Heleno, do Gabinete de Segurança Institucional, e seu subordinado, o delegado Alexandre Ramagem, chefe da Agência Brasileira de Inteligência (Abin).

Dois relatórios, mais tarde, enviados por Ramagem aos advogados, são a prova de que a Abin deu o caminho das pedras para que eles fossem bem-sucedidos em sua tarefa.

A descoberta de que isso aconteceu, pode configurar crime de responsabilidade praticado por Bolsonaro e, no limite, até custar-lhe o mandato, deixou o presidente da República apoplético.

Merval Pereira - Machismo degradante

- O Globo

Há muito tempo não via uma cena tão degradante quanto a que mostra o deputado Fernando Cury, da Assembleia Legislativa de São Paulo apalpando acintosamente sua colega Isa Penna em frente à mesa diretora da Casa. Não se trata nem mesmo de uma questão de tendência política, pois o deputado-cafajeste era do Cidadania, um partido da esquerda moderna que, por ser uma agremiação que zela pela democracia e pelos direitos femininos, o expulsou de suas hostes.

Cury abraçou sua colega por trás e apalpou seus seios, tendo sido repudiado duas vezes, sem que se veja no vídeo nenhum tipo de atitude tomada pelo deputado que presidia a sessão naquele momento, à frente de quem a cena ultrajante ocorreu. A deputada Isa Penna diz que ele estava bêbado quando se aproximou, e é possível que estivesse, porque somente fora de si poderia ter protagonizado, no plenário da Assembleia, uma cena tão nojenta.

 Quando está longe de todos, do que será capaz esse sujeito? Há um detalhe no vídeo que é bastante sintomático. Um deputado de terno cinza tenta pará-lo quando Cury se dirige à mesa onde já estava a deputada. Esse deputado sabia exatamente o que seu colega intencionava fazer, provavelmente porque o avisou antes, jactando-se do que faria.

O fato é daqueles que dão vergonha alheia a todo homem que não se acha com o direito de assediar uma mulher simplesmente por ser do sexo masculino. Essa masculinidade tóxica faz com que a cada fato desses mais seja demonstrada a necessidade da punição rigorosa dos abusos sexuais, sem o quê o Brasil continuará sendo terra de trogloditas onde um comportamento regressivo, animalesco, tem permissão de existir.

Bernardo Mello Franco – Aliança contra o autoritarismo

- O Globo

Demorou, mas Rodrigo Maia enfim começou a mover as peças no tabuleiro da sucessão na Câmara. Na sexta-feira, o deputado anunciou um bloco de 11 partidos para enfrentar o candidato do governo. Conseguiu algo que até outro dia parecia impensável: unir na mesma foto os presidentes de PT e PSL.

O grupo redigiu um manifesto para justificar a aliança heterogênea. “Esta não é uma eleição entre candidato A ou candidato B. Esta é a eleição entre ser livre ou subserviente; ser fiel à democracia ou ser capacho do autoritarismo; ser parceiro da ciência ou ser conivente com o negacionismo”, afirma o documento.

O bloco superou as diferenças em nome de um objetivo comum: proteger as instituições de um governo que se esforça para corroê-las. “Certamente, Ulysses Guimarães estaria deste lado”, arriscou o presidente da Câmara. O Senhor Diretas teria notado os riscos há mais tempo, mas cada um sabe o que fez em 2018.

Além de ter votado em Bolsonaro, Maia ajudou a sustentá-lo no poder. Ele liderou a aprovação da reforma da Previdência, que manteve o apoio do mercado ao presidente. Depois sentou-se sobre uma pilha com mais de 50 pedidos de impeachment. A blindagem teve o efeito de um salvo-conduto. O capitão continuou a cometer crimes de responsabilidade em série, ameaçando as instituições e sabotando o combate à pandemia.

Luiz Carlos Azedo - A grande sabotagem

- Correio Braziliense / Estado de Minas

Países de dimensões continentais têm inércia de manobra comparada aos grandes navios. Erros estratégicos na economia e nas políticas públicas têm graves consequências

A história universal tem inúmeros exemplos de tragédias humanitárias, causadas por fenômenos geológicos, climáticos, biológicos e/ou decisões políticas equivocadas, às vezes a combinação de duas ou mais causas. Essas tragédias deixam traumas sociais e provocam mudanças culturais e políticas. Uma das calamidades mais devastadoras da humanidade foi a peste negra, entre 1347 e 1351, que matou 50 milhões de pessoas na Europa e na Ásia. Causada por uma bactéria (Yersinia Pestis), a doença foi transmitida ao ser humano por meio das pulgas dos ratos e outros roedores. A peste disseminou o antissemitismo, provocou revoltas camponesas e a Guerra dos 100 Anos, mas, também, deu origem ao Iluminismo, em contraposição às teses místicas que atribuíam a doença ao castigo divino.

Em 1755, o grande terremoto de Lisboa resultou na destruição da capital portuguesa. O número exato de vítimas da tragédia é desconhecido, mas estima-se que pode ter chegado a 90 mil pessoas. Como consequência, o primeiro-ministro Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal, precisando de recursos para reconstruir Lisboa, acabou com as capitanias hereditárias no Brasil, transferiu a capital de Salvador para o Rio de Janeiro, criou o Distrito Diamantino, aumentou a cobrança de impostos nas Minas Gerais e fortificou as fronteiras na Amazônia, entre os quais o grande Forte Real do Príncipe da Beira, à margem direita do Guaporé, em Rondônia. Em contrapartida, a “derrama” deflagrou o movimento de Independência, cujo marco histórico foi a Inconfidência Mineira.

Elio Gaspari - Fritada de morcego no menu

- Folha de S. Paulo / O Globo

Ganha uma fritada de morcego do mercado chinês de Wuhan quem for capaz de mencionar uma só fala de Jair Bolsonaro que tenha contribuído para o bem-estar da saúde nacional desde o começo da pandemia do coronavírus.

Mesmo quando ele fez um arremedo de conserto, dizendo que, “se algum de nós extrapolou ou até exagerou, foi no afã de buscar solução”, estava iludindo a boa-fé do público. Um dia antes ele havia dito que “não vou tomar a vacina e ponto final”.

“gripezinha” e a cloroquina tornaram-se símbolos do amargo folclore do capitão. A eles juntam-se outros, como o estímulo ao desmatamento, as “rachadinhas” de Fabrício Queiroz e o orgulho de seu chanceler ser um “pária” no cenário internacional. Nunca na História do Brasil o trem parou e o maquinista queria andar para trás. Ele parava, mas se discutia quando voltaria a andar para a frente.

Há em Bolsonaro uma perigosa mistura de ignorância pessoal com autoritarismo político. Ele pode ter acreditado na gripezinha ou mesmo nos efeitos milagrosos da cloroquina. Chamou a possibilidade de segunda onda de “conversinha”, e na quinta-feira (17) voltou-se ao registro de mil mortes por dia. Talvez tenha apenas apostado, mas nesse caso estaria apenas exercitando a ignorância de outra maneira. O perigo mora na mistura com o mandonismo.

Bolsonaro irradiou esse comportamento pela sua administração, produzindo apenas uma bagunça arrogante. Por exemplo: em outubro o general-ministro Eduardo Pazuello disse que “a vacina do Butantan será a vacina do Brasil”. No dia seguinte, Bolsonaro acordou cedo e respondeu no Facebook que a vacina “NÃO SERÁ COMPRADA”. Como se viu, será comprada e oferecida, pois o capitão ficou preso num cadeado do governador João Doria.

O general Pazuello disse a parlamentares: “Não falem mais em isolamento social”. Pensou que falava a uma plateia de tenentes. Ele perguntou “para que essa ansiedade, essa angústia?” e depois explicou que sua frase foi tirada do contexto, desculpando-se. É o caso de se perguntar qual medicação está tomando desde que teve alta da Covid.

Já um diplomata de carreira designado para embaixada junto à Organização das Nações Unidas em Genebra recusou-se a responder a uma pergunta da senadora Kátia Abreu dizendo que não estava “mandatado” para isso. Tomou um contravapor do senador Major Olimpio e perdeu o cargo. Foi rejeitado por 37 votos contra 9. (Afora o mau português, podia ter respondido de outra forma, mesmo sem dizer nada.)

Janio de Freitas - Os mortos de um e os mortos de outro

- Folha de Paulo

A última semana, como um início de cerco a Bolsonaro, deu-lhe os ares e os atos de desespero

 “Periculosidade social na condução do cargo”. Uma qualificação judicial que parece criada para resumir as razões de interdição de Bolsonaro.

Embora a expressão servisse ao ministro Og Fernandes (STJ) para afastar o secretário de Segurança da Bahia, ajusta-se com apego milimétrico a quem incentiva a população a riscos de morte ou sequelas graves, com a recusa à prevenção e ao tratamento científico.

Já em seu décimo mês, e sem qualquer reparo das instituições que, dizem, “estão funcionando”, a campanha de Bolsonaro e as medidas de seus militares da Saúde chegam ainda mais excitadas e perigosas ao seu momento crucial.

Quem observou os movimentos reativos que o caracterizam por certo notou que é também dele a vulgar elevação da agressividade quando o medo, a perda de confiança, o pânico mesmo, são suscitados pelas circunstâncias. A última semana, como um início de cerco a Bolsonaro, deu-lhe os ares e os atos de desespero.

confisco da vacina Sinovac-Butantan pelo governo federal, toda a vacinação concentrada no militarizado Ministério da Saúde, a exigência de responsabilização do vacinado por hipotéticos riscos foram alguns dos foguetes hipotéticos que mostravam um Bolsonaro se debatendo, aturdido. Nem a liberação total para armas importadas abafou a onda crítica.

Bruno Boghossian – Bolsonaro e os aspirantes

- Folha de Paulo

Só em dezembro, presidente foi a seis cerimônias de formação e visitou alunos de um curso da Abin

Jair Bolsonaro participou de seis cerimônias militares e policiais só em dezembro. Foram formaturas de aspirantes das Forças Armadas, a conclusão do curso de delegados da PF e um evento de soldados da PM do Rio. Como bônus, o presidente ainda visitou alunos de pós-graduação da Abin, no início do mês.

Não fosse a frequência de compromissos (um a cada três dias), não haveria nada particularmente espantoso na agenda. Afinal, o presidente fez carreira como um sindicalista dessas categorias e manteve o perfil depois de chegar ao Palácio do Planalto. Esses eventos, no entanto, cumprem uma função adicional.

Os acenos de Bolsonaro têm todas as características de um trabalho para costurar uma coalizão política com integrantes das forças militares, das polícias e dos órgãos de inteligência. Nesse movimento, o presidente investe em agentes e oficiais em formação –grupos em que seus impulsos radicais costumam ter mais aderência do que nas cúpulas.

Hélio Schwartsman - Guerra, militares e boas histórias

- Folha de S. Paulo

Se desempenho de oficial à frente da Saúde equivale ao de nosso Exército, então Bolívia pode conseguir saída para oceano Atlântico

Na tentativa de entender melhor a cabeça dos militares, que ocupam espaço cada vez maior no governo brasileiro, comprei, baixei e comecei a ler "War" (guerra), da historiadora Margaret MacMillan. Não me arrependi.

A tese central da autora é simples. A guerra é muito mais central para o ser humano do que estamos dispostos a admitir. E ela não serve só para matar gente. Muitos dos avanços científicos, tecnológicos e até de organização da sociedade resultaram de conflitos. O forte do livro, porém, não são teorias, e sim as boas histórias que conta sobre guerras, militares e os que teorizaram sobre isso.

Examinemos o caso da intendência. O general alemão Erwin Rommel não foi nada ambíguo em relação ao que achava dela: "A condição essencial para um exército ser capaz de suportar batalhas é um estoque adequado de armas, combustível e munição. Na verdade, as batalhas são travadas e vencidas pelos oficiais de intendência antes de os tiros serem disparados".

Vinicius Torres Freire – A vida depois da vacina

- Folha de S. Paulo

Se vacinação e distanciamento funcionarem, vida passa a melhorar no meio do ano

Em abril, o número de mortes por Covid-19 em São Paulo deve começar a cair graças à vacina, se der certo o plano do governo paulista. Com base em premissas otimistas, a vacinação pode derrubar o morticínio em 64%. Atualmente, morrem 154 pessoas por dia no estado; em abril, morreriam então mais de 50 (no início de novembro, eram 85 mortes diárias).

Os números importam, mas dizem pouco sobre como pode ser a vida depois da primeira onda de vacinação: ainda difícil. Até 22 de março, terão sido vacinadas pessoas com mais de 60 anos, gente da saúde, indígenas e quilombolas, nove milhões de pessoas, apenas um quinto da população.

Mas, com vacina e com os cuidados de distanciamento que tomávamos em outubro, poderíamos reduzir o número de mortes diárias à casa da dezena em meados de 2021. Se a Coronavac também evitar contágios, a menos ainda.

As vacinas derrubariam o número de mortes em abril porque em grande parte seriam aplicadas no grupo que padece mais da doença. Cerca de 77% dos mortos em São Paulo tinha 60 anos ou mais. Quase 0,5% dessa população morreu de Covid-19, uma pessoa em duzentas, um horror.

A hipótese otimista depende de premissas esperançosas sobre taxa de vacinação e da eficácia da Coronavac.

Lourival Sant'Anna - Sem política externa


-  O Estado de S. Paulo

Governo não moveu uma palha para evitar a perda do poder de voto do Brasil na ONU

Em seu livro de memórias Promessa de Pai, o presidente eleito Joe Biden reflete sobre o papel central das relações pessoais na política em geral e na política externa em particular.

“Acredito que toda política é pessoal porque, no fundo, a política depende de confiança, e a menos que você possa estabelecer uma relação pessoal, é terrivelmente difícil construir confiança”, escreve Biden. “Isso é especialmente verdadeiro em política externa, porque pessoas de países diferentes normalmente sabem pouco umas sobre as outras, e têm pouca história e experiência compartilhadas.” 

Durante a campanha de 2016, Donald Trump ameaçou não cumprir o acordo de defesa mútua com o Japão, argumentando que o país se tornara rico o suficiente para não depender do contribuinte americano para sua proteção. Essa posição representava uma ameaça existencial para o Japão. A Constituição do país proíbe suas forças militares de executar ações ofensivas (e portanto dissuasivas), por exigência justamente dos EUA, que entraram na 2.ª Guerra depois do ataque japonês a Pearl Harbour, e das outras potências aliadas.

Affonso Celso Pastore* - O grau de incerteza na economia

- O Estado de S. Paulo

Coube ao presidente do BC dizer que a vacina custa menos do que a ajuda emergencial

Não basta que existam vacinas com eficácia comprovada. Para salvar vidas e restabelecer a normalidade da economia, é preciso vacinar 100% da população no prazo mais curto possível, como já está ocorrendo na Europa e nos EUA. Infelizmente, em vez de agir com rapidez e eficiência, reduzindo o número de mortes e a incerteza, o governo se comporta como se o problema não existisse. É surpreendente, mas coube ao presidente do Banco Central, e não ao presidente da República, explicar que “a vacina custa menos do que uma ajuda emergencial”. De fato, além de prolongar a crise sanitária a ausência de um plano eficiente de vacinação expõe a economia a nova desaceleração, aumentando a pressão para que ocorram mais gastos e aumente o desemprego, fechando-se um círculo vicioso que precisaria ser rompido. Mas meu propósito neste artigo não é expressar mais uma vez minha indignação pelo desrespeito do governo com a vida humana, e, sim, abordar como a elevada incerteza retarda a recuperação econômica. 

A FGV constrói um índice de incerteza da economia. Quando ele está abaixo de 100, o grau de incerteza é baixo, o que significa que há uma elevada previsibilidade que é essencial para planejar os investimentos em capital fixo, que contribuem para o crescimento econômico. Observa-se que nas três recessões que precederam a “recessão da covid” sempre ocorreu uma forte queda da taxa de investimentos associada a elevações do índice de incerteza da economia para próximo de 130 pontos. 

O que a mídia pensa: Opiniões / Editoriais

O que diz a agenda do presidente – Opinião | O Estado de S. Paulo

Ali se verifica que Jair Bolsonaro tem muitas prioridades e que a saúde dos brasileiros definitivamente não está entre elas

O presidente da República, Jair Bolsonaro, como se não tivesse nada mais importante com o que se ocupar em meio a uma pandemia e a uma grave crise econômica e social, encontrou tempo em sua agenda para reinaugurar a Torre do Relógio da Ceagesp, na zona oeste da capital paulista, na terça-feira passada. 

O monumento foi reformado e pintado de verde e amarelo pelos comerciantes da Ceagesp – cujo presidente, Ricardo Mello Araújo, um coronel da reserva da Polícia Militar nomeado por Bolsonaro, mandou que os funcionários recebessem o presidente vestindo verde e amarelo, bem ao gosto do ufanismo bolsonarista. 

Bolsonaro gosta de inaugurações. Vem se dedicando a elas bem mais do que às reuniões com o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, supostamente responsável pelos esforços federais de combate à pandemia de covid-19. 

Na agenda de Bolsonaro, disponível no site da Presidência, observa-se que até o dia 15 passado o presidente teve apenas 5 audiências com o ministro desde 16 de setembro, quando foi oficializado como titular da Saúde. Em compensação, Bolsonaro esteve presente a 10 inaugurações nesse período, em várias partes do País – numa delas, no Rio Grande do Sul, ficou mais de dez minutos acenando a motoristas na beira da estrada.

Mas o presidente não vive só de inaugurações. A agenda mostra que Bolsonaro tem especial preferência por cerimônias de caráter militar – foram 10 desde a posse do ministro Pazuello – e também por eventos que reúnem policiais – contam-se 4 desses encontros no período. No último deles, dia 14 passado, prestigiou a formatura de delegados da Polícia Federal, em que estava especialmente confortável – à plateia embevecida contou que teve que se empenhar muito para conseguir os recursos necessários para autorizar a convocação dos concursados, pois “o pessoal lá (no Ministério da Economia) só tem cifrão na frente dos olhos”.

Poesia | Carlos Drummond de Andrade - Amar

Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer, amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?

Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal,
senão rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?

Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o cru,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e
uma ave de rapina.

Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.

Amar a nossa falta mesma de amor,
e na secura nossa amar a água implícita,
e o beijo tácito, e a sede infinita.