Política e cultura, segundo uma opção democrática, constitucionalista, reformista, plural.
quinta-feira, 31 de dezembro de 2020
Merval Pereira - A defesa da cidadania
O
que os bolsonaristas estão chamando de “ativismo judicial” descontrolado nada
mais é do que a defesa de uma política sanitária que nos permita ter vacinas
mais rapidamente. O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Ricardo
Lewandowski, acolhendo um pedido do partido político Rede, estendeu a validade
de medidas de combate à pandemia, cujo prazo terminaria hoje, 31 de dezembro.
A
mais importante delas é a autorização para que a Anvisa (Agência Nacional de
Vigilância Sanitária) em caráter “excepcional e temporária”, em até 72 horas,
libere a importação e distribuição de vacinas contra a Covid-19 já aprovadas em
agências equivalentes dos Estados Unidos, Europa, China ou Japão.
Com
a aprovação, no Reino Unido, da vacina da AstraZeneca/Oxford, que já estamos
fabricando aqui na Fiocruz, o governo, que apostou nesse imunizante, poderia
iniciar imediatamente a vacinação a nível nacional. Claro que temos um problema
a mais, ainda não temos seringas nem agulhas. Para infelicidade de Bolsonaro, o
governador João Doria foi precavido e já comprou seringas e agulhas suficientes
para vacinar a população do estado.
Como a quantidade de doses ainda será pequena, o sistema que os ingleses adotarão pode ser uma solução inicial: dar a todos a primeira dose, e só a partir da maior produção, começar a vacinação com a segunda dose. Seria um início emergencial para um problema que se transformou em calamidade pública, embora o presidente Bolsonaro e seus mais próximos assessores não levem em conta suas responsabilidades.
Míriam Leitão - Os oásis em um ano áspero
Pareceu,
em certos dias, que o deserto não acabaria. Mas houve pontos de refresco na
caminhada. Quero falar deles nos derradeiros instantes de 2020. Na crise, as
empresas fizeram doações em volumes nunca vistos. Diante da escalada da ameaça
ao meio ambiente, empresas e bancos formaram coalizões com organizações sociais
e anunciaram compromissos em defesa dos biomas brasileiros. Fundos
internacionais avisaram que ou o Brasil protege a floresta, ou ficará fora da rota
do capital.
A
sociedade fez movimentos na direção certa, num ano torto. Médicos e enfermeiros
foram à exaustão, mas fizeram a diferença entre vida e morte. A ciência venceu
a sua luta mais difícil, enfrentando o vírus e o negacionismo. Saiu vitoriosa.
Nunca tantos cientistas nos ilustraram tanto. Em tempo recorde, a ciência está
entregando ao mundo as vacinas que abrem a janela para a esperança.
Emicida é parte das boas notícias do ano. É o futuro. Ver tantos negros no Theatro Municipal de São Paulo deu uma sensação de alívio a quem não se conforma com a partição da sociedade brasileira. Ver o jovem Leandro, como a mãe ainda o chama, levar todos a um passeio pela História para constatar que os negros estiveram presentes — o tempo todo presentes — nas grandes conquistas do país foi muito bom. Esse “reescrever” da História para corrigi-la é um deslumbramento. “AmarElo” foi um ponto de virada. A ideia de que se pode matar o mal de ontem com a pedra lançada hoje é tranquilizadora. Então nós podemos ainda corrigir o mal feito antes? Sim. Podemos começar de novo.
Ricardo Noblat - O último general da ativa no governo está com os dias contados
Adeus
a Pazuello
Cabeças rolarão rolar dentro do governo para marcar a passagem de um ano infernal para outro capaz de renovar a esperança dos brasileiros em dias melhores. É sempre assim que agem os presidentes da República ao se verem em apuros uma vez que querem manter a própria cabeça no lugar.
Especialista
em logística, ministro da Saúde que sucedeu a dois médicos que insistiam em
dizer a Bolsonaro o que ele não queria ouvir, Eduardo Pazuello, posto ali para
obedecer sem discutir às ordens que viessem do alto, é uma das cabeças que
deverão rolar. É também o último general da ativa no governo.
A cobiça por seu cargo só faz crescer entre os políticos mais fisiológicos, aqueles corriqueiramente dispostos a socorrer governos enfraquecidos em troca de sinecuras. 2021 antecede 2022, ano de eleições gerais. Um ano assim serve para que os políticos façam caixa para financiar despesas futuras.
Maria Hermínia Tavares* - Poderia ser pior
Nada
melhor do que nos enxergarmos na moldura maior do que ocorreu em outras partes
O
primeiro, da ONG americana Freedom House, intitula-se “Democracia sob lockdown
– o impacto da Covid-19 na luta global pela liberdade”. Baseia-se em
entrevistas com especialistas e membros da sociedade civil, realizadas entre
janeiro e agosto, em 105 países. A análise conclui que a pandemia exacerbou um
tremendo problema: a recessão democrática dos últimos 14 anos.
De acordo com o informe, a democracia se degradou em 80 nações, cujos governos responderam à virose com abuso de poder, silenciamento das vozes críticas, enfraquecimento ou liquidação de instituições cruciais e erosão dos sistemas de rendição de contas pelos governantes. Em nada menos de 59 desses países faltou transparência na maneira como as autoridades informaram o público sobre a Covid-19.
Bruno Boghossian – Angústia e incompetência
Governo teve pressa com cloroquina, mas nega ao país empenho na vacinação
Em
março, Jair Bolsonaro se reuniu com o ministro da Defesa e ordenou que o
Exército ampliasse imediatamente sua produção de cloroquina. A equipe técnica
do governo dizia que o remédio não funcionava contra a Covid-19, mas a ordem
foi cumprida em tempo recorde: em três semanas, os
militares fabricaram 2 milhões de comprimidos.
A
obediência inspirou Bolsonaro. Meses depois, ele escolheu um general para
comandar o Ministério da Saúde. Eduardo Pazuello seguiu as vontades do chefe e
moveu as engrenagens da máquina pública para distribuir um medicamento
ineficaz. Com a cloroquina, o presidente teve uma pressa que foi negada ao país
no planejamento da vacinação.
O governo assinou no início de junho a adesão do Brasil a um consórcio internacional para a fabricação de imunizantes contra o coronavírus. No mesmo mês, a equipe econômica perguntou ao Ministério da Saúde se havia previsão de importar material para vacinação. A pasta levou quase seis meses para publicar um edital para a compra de seringas.
Vinicius Torres Freire – A eficácia das vacinas chinesas
Irmã
da Coronavac, a vacina do Doria, tem 79% de eficácia, mas falta informação
Uma
das vacinas da estatal chinesa Sinopharm teria 79,34% de eficácia, segundo
afirmou a empresa nesta quarta-feira (30) em uma nota de escassas e frustrantes
vinte linhas. O
produto é irmão da Coronavac, comprada pelo governo paulista e que já
está sendo produzida pelo Instituto Butantan.
As
vacinas são muito semelhantes; é
possível esperar resultado similar da Coronavac, em uma especulação
esperançosa, mas razoável, dizem dois imunologistas brasileiros ouvidos por
este jornalista. As duas irmãs chinesas são feitas da mesma maneira, com vírus
inativados.
O vírus é multiplicado em uma cultura de células, na mesma linhagem de células originadas do rim do macaco-verde africano e usadas faz quase 60 anos em pesquisa biotecnológica. O vírus depois é inativado (perde o poder de se replicar e causar doença) com a mesma substância, beta-propriolactona, mas mantém sua estrutura e, assim, ainda pode suscitar uma reação do sistema de defesa (imunológico). Os vírus inativados são misturados ao mesmo tipo de adjuvante, algum composto de alumínio, que facilita a ação da vacina. A diferença entre as duas pode ser a dosagem e o tempo entre as duas injeções necessárias.
Fernando Schüler* - A sociedade dos militantes
Goste
ou não dela, vale
a pena ler a entrevista de Bari Weiss à Folha, dias atrás. É bom
escutar alguém que destoa da multidão. Alguém que ri sozinho enquanto todos
dançam a Macarena (já me aconteceu). Todos conhecem a sua história. Ela foi
contratada como uma das editoras do The New York Times por destoar da linha de
pensamento hegemônica da Redação e caiu fora pelo mesmo motivo.
A
Redação do Times, diz ela, como a de muitos jornais, passou gradativamente a
responder a um agenda política. E o fez a partir dessa cisão típica dos tempos
atuais, entre a gente
bacana e esclarecida, "cujo trabalho é informar os outros", e os
caipirões, basicamente definidos por qualquer coisa que diz respeito a Donald
Trump.
Daí
aparece uma jornalista que recusa a dicotomia fácil. Que acha risível pautar o
jornalismo, todo santo dia, pelo milésimo texto enfileirando palavrões contra o
"diabo laranja". Seu problema, por óbvio, nunca foi Trump ou qualquer
político. O problema era a conversão do jornalismo em um campo retórico fechado
e avesso às "ideias inconvenientes".
Foi
o caso do editor James Bennet, banido por publicar artigo controverso do
senador Tom Cotton. Ele provavelmente discordasse do senador, mas acreditava
"dever aos leitores a exposição de contra-argumentos". Ingenuidade.
Contra-argumentos são aceitos, na lógica do ativismo, nos limites de quem tem a
hegemonia e o poder de impor danos aos que saem da linha.
O que Bari Weiss diz vale para qualquer posição política e vai além do jornalismo. Demétrio Magnoli tratou disso em coluna recente. Há um modus operandi da política atual, dado pela lógica tribalista das redes. O jornalismo, ou parte relevante dele, apenas foi junto com a maré.
Mariliz Pereira Jorge - Aborto legal no Brasil
Falta
aos políticos brasileiros peito para encarar esse assunto e trazer para o
debate o que é de fato pertinente sobre o tema
Gol
da Argentina. Na madrugada desta quarta (30), o Senado
aprovou a descriminalização do aborto, que passa a ser legal até a
14ª semana de gestação e depende exclusivamente da decisão da mulher, como
acontece em quase 70 países. Momento histórico. Marca mais um capítulo de um
longo caminho percorrido pelas mulheres desde que a Rússia legalizou a prática
há cem anos, ainda antes de se tornar União Soviética.
Enquanto isso no Brasil... A nossa legislação é mais parecida com a de países como o Afeganistão, o Irã e a Síria, o que nos dá a dimensão do atraso em que vivemos. Os direitos reprodutivos de nós, mulheres, não nos pertence, mas ao Estado, infestado de gente feito Jair Bolsonaro.
William Waack - De Dilma a Bolsonaro
As
questões básicas não resolvidas do País permanecem as mesmas
A
década que começou com Dilma e
vai terminando com Bolsonaro tem
uma extraordinária constância. Nossas mazelas continuam praticamente as mesmas.
Apenas mais escancaradas por uma pandemia que expôs (e também agravou)
problemas que já existiam. Nesse sentido, não se pode falar de uma década que
começa e termina com sinais trocados. A incompetência governamental e nossa
complacência em sua essência seguem as mesmas.
Sim,
Dilma foi a vítima da tortura praticada por um regime de exceção, que Bolsonaro teima em exaltar. Por mais abjetas e fracassadas as
ideias que ela defendia, não há nada que justifique tortura especialmente por
órgãos de Estado, como aconteceu na ditadura militar brasileira. É um aspecto
que o capitão Bolsonaro ignora e que exércitos profissionais de democracias
abertas, como na França (na Argélia), Estados Unidos (por último, no Iraque) e
Israel (na Intifada de 1987) reconhecem como destruidor da moral da força
armada e se empenham em condenar.
A sociedade brasileira segue exibindo a mesma tolerância em relação a pragas nacionais há tempos estabelecidas: injustiça social, miséria disseminada, violência endêmica, corrupção e incompetência governamental. São características com as quais se podia descrever o Brasil de 10 ou 20 anos atrás, e a onda disruptiva de 2018 não ofereceu resultados até aqui convincentes para alterar fundamentalmente esse quadro. As comparações internacionais nada proporcionam para nos orgulharmos em termos de nível de desenvolvimento humano e, especialmente, educação, que continua sendo entendida no Brasil como ferramenta e não como valor em si.
Eugênio Bucci* - A propaganda, a ciência, o imbróglio e o ano novo
Fapesp
corre o risco de perder 30% de sua verba e Bandeirantes aumenta a de
publicidade em 70%
No gran
finale de 2020, o governo paulista deu um jeito de aumentar os recursos
para fazer propaganda de si mesmo e, na outra ponta, deu outro jeito para, em
plena pandemia, ameaçar o orçamento da ciência. O ano que começou mal termina
muito pior.
Nos
derradeiros ajustes da Lei Orçamentária Anual (LOA), na Assembleia Legislativa,
o Palácio dos Bandeirantes conseguiu incluir uma elevação de 69% na sua verba
publicitária (como noticiou este jornal na primeira página, dia 20, com
reportagem de Brenda Zacharias). O montante, que ficou na casa dos R$ 90,7
milhões em 2020, saltará para R$ 153,2 milhões no exercício de 2021.
Na
mesma LOA aparece um corte de 30% na receita da Fundação de Amparo à Pesquisa
do Estado de São Paulo (Fapesp). A entidade tradicionalmente conta com 1% da
receita tributária do Estado. Em 2021 poderá ficar com apenas 0,7%. Traduzindo
em graúdos, estamos falando de meio bilhão de reais a menos.
Por enquanto, dinheiro ainda não foi retirado, de fato, mas a Fapesp corre o risco de perdê-lo. O corte aparece no texto final da LOA (publicado no Diário Oficial de ontem), com todos os números e vírgulas, mas talvez não venha a ser efetivado. Mas como assim?, há de se perguntar o improvável leitor. Se a lei manda cortar, como é que podemos ter a expectativa de que o corte talvez não se consume?
Zeina Latif* - Governo em quarentena
A
inoperância do governo federal transborda e agrava o sofrimento social. Alguns
ministérios cuja ação seria essencial pegaram a covid-19 e estão em isolamento
por tempo indeterminado.
Repetitivo
lembrar que o plano nacional de imunização não tem vacinas ou mesmo seringas. E
ainda aguardamos as deliberações do comitê de crise, sob comando da Casa Civil.
Do
Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, nada se ouve falar,
apesar do estresse vivido pelas famílias por conta da crise no mercado de trabalho,
do confinamento social em moradias precárias, dos problemas de saúde e das
escolas fechadas.
Não
podemos nos enganar com os números de queda expressiva na violência doméstica
(-27%), na ameaça contra a mulher (-33%) e na violência contra vulneráveis
(-50%), entre março e maio em relação ao ano passado. Há grande subnotificação
de casos por conta do isolamento social combinado à falta de acesso digital aos
canais de denúncia.
Provavelmente, o problema é maior no Brasil, a julgar pela experiência mundial. Por exemplo, a Colômbia, com boletins semanais, registrou aumento de 92% nas chamadas de denúncia de violência contra a mulher entre abril e início de dezembro. Na Argentina, o aumento foi de 25% entre abril e outubro. A propósito, o cuidado em coletar e divulgar as estatísticas atualizadas já diz muito dos governos.
Celso Ming - Os fatores que evitaram o maior desastre em 2020
São
quatro as razões que evitaram a queda de dois dígitos do PIB brasileiro
E
o pior não aconteceu. No segundo trimestre, em plena pandemia, as projeções
para o desempenho da economia do Brasil foram terríveis. Algumas chegavam a
indicar um mergulho do Produto
Interno Bruto (PIB) de quase 10% para todo o ano.
As
novas previsões falam de uma queda de 4,4% (veja o gráfico). Essa é a última
projeção do Banco Central,
que coincide com a do mercado, como consta no Boletim Focus desta
semana.
São quatro as explicações para esse tombo menos acentuado.
A primeira delas é a de que o Tesouro despejou R$ 322 bilhões em auxílios emergenciais para a população (66 milhões de pessoas), recursos que permitiram uma sustentação da demanda de bens essenciais – especialmente alimentos, medicamentos e moradia – durante o isolamento social necessário para combater a covid-19. Foi uma demanda que permitiu que a atividade econômica não entrasse em colapso. O efeito colateral foi o avanço inesperado da inflação, que, no entanto, tende a ser limitado.
O segundo grande fator de sustentação da economia foi o excelente desempenho do agronegócio. Como mostram as últimas projeções do IBGE e da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), a produção física de grãos na safra de 2020/21 deverá ter um aumento de 3,5%, para alguma coisa em torno dos 266 milhões de toneladas. Os preços também ajudaram, seja pelo aumento da demanda interna de alimentos, como mencionado acima, seja pela forte importação da China.
José Pastore* - Vacina, coronavoucher e a nova década
Mais
de 65 milhões de pessoas recebem o auxílio emergencial. Será que o mercado de
trabalho terá condições de absorver boa parte desse universo logo no início de
2021?
O
presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, defende apoiar a vacinação em
lugar de prorrogar o auxílio emergencial. Para ele, a retomada em V da economia
permitirá a absorção no mercado de trabalho dos brasileiros que estão parados.
Dali para a frente eles poderão viver da renda do trabalho, e não da renda do
coronavoucher.
Tudo
indica, porém, que a tão desejada sincronia vai demorar algum tempo. Mais de 65
milhões de pessoas recebem o auxílio emergencial. Será que o mercado de
trabalho terá condições de absorver boa parte desse universo logo no início de
2021?
Grande
parte da retomada em V deveu-se ao sucesso dos programas de redução de jornada
e suspensão do contrato de trabalho que manteve 10 milhões de empregos formais
e propiciou dados positivos no Caged. Outra parte deveu-se ao próprio auxílio
emergencial de R$ 600 e, depois, de R$ 300.
Mas esses programas terminam hoje. Noticia-se a possível prorrogação da redução de jornada e suspensão dos contratos, o que é animador. Mas, até o fechamento deste artigo, nada se falou sobre a prorrogação do coronavoucher. Lembremos que para cerca de 23 milhões dos beneficiados sua única renda é a do auxílio emergencial.
Luis Fernando Verissimo – Retrospectivas
As
próximas terão que recorrer à ficção ou ao delírio para contar como foram 2020 e
seus desdobramentos
Retrospectivas
de fim de ano servem para passar o passado a limpo e organizar nossas
lembranças, que, sem elas, seriam histórias sem nexo. O retrospectivista mais
desatento da História foi Luís XVI, que, na véspera da Revolução Francesa,
escreveu no seu diário: “Tudo calmo, nenhuma novidade no reino”. A tradição de
recapitular os principais acontecimentos do ano teria começado no ano 1, quando
um viajante no deserto anotou no seu caderno de viagem a presença daquela
estranha estrela no céu da Judeia, brilhando mais do que as outras, como que
mostrando um caminho, e disse “Epa”.
No jornalismo, uma retrospectiva de fim de ano é obrigatória e fácil de fazer. Basta juntar fatos e feitos que se destacaram durante o ano e pronto. O ano de 2020, que termina hoje, esteve cheio de notícias destacáveis, como todos os anos. É só reuni-las e teremos um típico ano com seus altos e baixos, esperando sua inclusão na retrospectiva. Como todos os anos. Certo?
Cora Rónai - Já não era sem tempo
Gente
má faz mais barulho, mas precisamos aprender a apreciar os pequenos gestos de
gentileza e a educação invisível
31
de dezembro de 2020: enfim, o último dia do ano mais longo que já vivemos, o
ano que nos enganou no começo com a linda ressonância dos seus números
dobrados, vinte-vinte, mas logo se revelou mais angustiante, divisivo e mortal
do que qualquer outro na nossa memória recente. O que mais dói é que não
precisava ter sido assim.
Em
circunstância nenhuma teríamos escapado da Covid-19, mas não precisávamos ter
enfrentado tantas epidemias ao mesmo tempo — de obscurantismo, de arrogância e
de politicagem, de descaso e de deboche, de incompetência e de estupidez.
O
ano leva a assinatura de Jair Messias Bolsonaro de ponta a ponta.
Teria
sido bastante ruim enfrentar tantas mortes e tanta devastação em circunstâncias
“normais”, se é que se pode falar em normalidade numa hora dessas, mas foi
medonho viver tudo isso tendo no mais alto cargo da nação esse homem inculto e
mau, esse ignorante absoluto da própria ignorância, incapaz de entender o pouco
que se pedia dele diante da pandemia: calar a boca, seguir os especialistas,
dar o exemplo.
Teria sido tão mais simples, tão menos devastador.
Raul Jungmann* - Dias melhores virão
Estranhos dias, estranho ano. 2020 não
começou em janeiro, como os que lhe antecederam, nem sabemos quando terminará.
Talvez nunca? Inesperado, de súbito, mudou nossas vidas. Não mais festas,
futebol, cinema, teatro. Encontros, trabalho (amor?), agora só à distância,
remotos.
Já a morte, que conosco nasce e a distância
buscamos mantê-la, tornou-se contigua, palpável e nos assedia com a frequência
das notícias da ida definitiva dos distantes e, mais e mais, dos próximos. Cada
vez mais próximos. Sem despedidas, último adeus, anônimos. Sentenciados,
passamos a viver em prisão domiciliar. Nunca dantes tão forçadamente próximos;
nunca dantes tão virtuais, remotas esperanças.
Nosso espaço se mede em parcos metros quadrados, quase redondos, de tão compartilhados. E há que redobrar o autocontrole, mas há, também, (re)descobertas, sob a fuligem da rotina. Recomeços. Ao sair, “use a máscara”; na chegada, “tire os sapatos e a roupa, tome banho”. Pedágios, obrigatórios, não esqueça. Das máscaras psíquicas, às virtuais. E também as de pano, papel, recicladas, sintéticas, de variadas cores, modelos – outdoors de times, mantras e mensagens.
Guga Chacra - 2021, o ano sem Trump
Será
um alívio acordar no dia 21 de janeiro sem Donald Trump na Presidência dos
Estados Unidos. Suas mentiras, seu discurso do ódio, seus delírios e seu
negacionismo deixarão a Casa Branca. O futuro ex-presidente, claro, não
desaparecerá. Ele desfruta de uma enorme base fanática que o trata como Deus.
Mas seu poder de fato, de comandar a maior potência da história da Humanidade,
se pulverizará. Suas postagens no Twitter serão mais gritos conspiratórios de
um desequilibrado. Deixarão de ter peso de anúncios políticos como a demissão
de integrantes de seu Gabinete.
Sem Trump e com Joe Biden na Presidência, a relação dos EUA com o restante do planeta se alterará drasticamente. Tende a melhorar bastante com a União Europeia e o Canadá. Pode seguir boa com o Reino Unido. Biden voltará a trabalhar com a aliança ocidental e retomará multilateralismo. A prioridade será tentar superar a pandemia neste ano com a vacinação, com a busca de uma normalização das nossas vidas e a recuperação da economia. Ao mesmo tempo, a questão climática ganhará força.
O que a mídia pensa: Opiniões / Editoriais
A
postura insultuosa de Bolsonaro diante das aflições dos brasileiros deve ser
vista como uma traição ao juramento por ele prestado ao tomar posse como
presidente
Nesta
hora grave, a postura insultuosa de Bolsonaro diante das aflições dos
brasileiros deve ser vista como uma traição ao juramento por ele prestado sobre
a Constituição ao tomar posse como presidente da República. Aquele que deveria
ser o líder de todos os esforços nacionais para acabar com um flagelo que há
dez longos meses exaure o espírito de milhões de seus compatriotas, ao
contrário, é o primeiro de uma penca de sabotadores desses esforços. E com
indisfarçável satisfação.
O
País chega a 2021 perto da marca de 195 mil mortos pela covid-19. Jamais tantos
brasileiros morreram em tão pouco tempo devido a uma só causa. Angustiada, a
Nação assiste ao início da campanha de vacinação contra o novo coronavírus em
cerca de 50 países, alguns dos quais em condições econômicas mais adversas que
as do Brasil, sem saber quando e como será vacinada. É como se aos que aqui
vivem não bastassem as provações já impostas pela pandemia, agregando-se um
presidente mequetrefe ao longo rol de infortúnios.
No sábado passado, ao ser questionado por um jornalista se sentia a pressão de ver outros países iniciarem a vacinação de seus nacionais, Bolsonaro reagiu dizendo “não dar bola para isso”, pois “ninguém o pressiona para nada”. É este presidente à prova de “pressões” – até mesmo a pressão para salvar vidas – que, como se não tivesse múltiplas crises para debelar, encontrou tempo para jogar futebol, debochar de adversários políticos, criticar os laboratórios que fabricam as vacinas e ofender a ex-presidente Dilma Rousseff, entre outros absurdos. Parece claro que Jair Bolsonaro está mais preocupado em desviar as atenções do País de sua irremediável incompetência do que em viabilizar o início de uma campanha de vacinação sem a qual mais brasileiros vão morrer e mais preso a este pesadelo estará o País.