domingo, 3 de janeiro de 2021

Fernando Henrique Cardoso - Annus horribilis

- O Globo / O Estado de S. Paulo

Num ano terrível, a democracia triunfou nos EUA, um alento para seguirmos lutando para melhorar a vida da maioria

Mal escrevi o título deste artigo (usando o pouco latim de que ainda me recordo), e já me arrependi. Será mesmo, ou o ano que nos espera à frente será ainda pior? Difícil imaginar, mas não impossível. É certo que a pandemia, o novo coronavírus, mata sem piedade e... Não só os mais velhos, molesta também os mais jovens; o que piora a situação. Também é certo que nos tocou um governo com pouca imaginação e que olha o país por um espectro curto. Mas, se olharmos para o mundo, pelo menos não houve guerra global, e a recessão, embora forte, não é comparável com outras crises que paralisaram os negócios internacionais. Enfim, sem “panglossismo”, bem-feitas as contas, o ano foi mal, mas poderia (como quase sempre) ser pior...

Não digo isso para me consolar, ou, quem sabe, apascentar o eventual leitor. Digo porque é preciso olhar para frente com alguma esperança. Sei também que é mais fácil imaginar que “não fosse este governo”, a pandemia talvez não tivesse matado ou maltratado tanta gente. Será verdade? Provavelmente. Mas, o vírus é soez e está dizimando as pessoas, independentemente da qualidade dos governos. Parece uma saída simples “culpar” só o governo (no caso o federal) pelos males que nos afligem. Claro, não é sensato —para dizer o mínimo — trocar tantos ministros da Saúde e nomear, por fim, quem, por profissão, não conhece a matéria. Tão grave quanto isto é considerar os adversários como “inimigos”, jogando o país em divisões imaginárias. E sempre é possível ampliar a lista do que falta aos governantes para que tudo dê certo...

Não é hora, contudo, para o ajuste de contas. A experiência mostra que é melhor esperar que o tempo escoe do que precipitar o fim de governos. Mais um pouco — se o povo não insistir nas antigas preferências e se tivermos a sorte de existir alguém que abra um caminho mais promissor — haverá novas eleições. Mudaremos algo?

Cristovam Buarque* - A irresponsabilidade da divisão

- Blog do Noblat / Veja

Bolsonaro já provou seu despreparo técnico e psicológico para cuidar do presente

O presidente eleito em 2018 surpreende sempre para pior. Nesta semana, foi o deboche para se referir à tortura sofrida por sua antecessora, a presidente Dilma Rousseff, quando jovem militante contra a ditadura. Só este gesto demonstra sua psicologia política doentia. Mas na mesma semana, disse “estar nem aí” para a demora em aprovar e distribuir a vacina contra o corona vírus, debochando também do sofrimento de milhões e da morte de 200 mil pessoas, que o elegeram para gerenciar nossa saúde. Bolsonaro já provou seu despreparo técnico e psicológico para cuidar do presente e conduzir ao futuro, mas também provou estar preparado para a politicagem que elege os populistas irresponsáveis. Devido a este preparo cínico, ele pode se reeleger apesar do péssimo desempenho de seu governo em todas setores, até mesmo com a possível volta da inflação, se as forças democráticas não se unirem com uma alternativa e um nome que não sofra maior rejeição que ele.

Com seu despreparo e maldade, Bolsonaro foi eleito sobretudo pelos democratas-progressistas que estiveram no poder por 26 anos. Por nossos erros, especialmente pelo PT, o eleitor queria “outro”, qualquer que fosse. Bolsonaro conseguiu usar uma máscara de “outro”. E por nossa divisão que permitiu colocar no segundo turno um nome que seria melhor presidente do que o eleito, mas que provocava rejeição no eleitor.

O Brasil e seus eleitores não merecem que as lideranças democráticas, de direita ou esquerda, repitam os erros da divisão que leve ao segundo turno um nome com rejeição maior do que o presidente com apesar de sua psicológica política doentia. Bolsonaro contará com um núcleo duro de simpatizantes que o colocarão no segundo turno.

Merval Pereira - A “bolsonarizacao” dos quartéis

- O Globo

A presença do presidente Bolsonaro em uma formatura em média por mês de militares membros das Forças Armadas (Exército, Marinha e Aeronáutica) e das polícias Militar, Federal e Rodoviária Federal nos primeiros dois anos de seu governo, ressaltada em uma reportagem recente do GLOBO, corrobora um estudo do especialista Adriano de Freixo, professor do Departamento de Estudos Estratégicos e Relações Internacionais do Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense (Inest-UFF) intitulado “Os militares e o governo Bolsonaro, entre o anticomunismo e a busca pelo protagonismo” das Edições Zazie, na coleção “Pequena biblioteca de ensaios”.   Nele, analisando a influência de Bolsonaro entre os militares, ele destaca que “uma variável que não deve ser ignorada nessa conjuntura é a “bolsonarização” dos estratos inferiores da corporação, mesmo que não se vislumbre no horizonte próximo a possibilidade de quebra de hierarquia militar”.

Adriano de Freixo ressalta que essa procura de um diálogo direto com os praças e oficiais subalternos, “que não por acaso constituem historicamente sua principal base eleitoral”,  é prática adotada desde o início de sua carreira política. A presença recorrente de Bolsonaro em formaturas e cerimônias militares “demonstra a disposição do presidente em cultivar o apoio desses segmentos”.  

Outro processo de “bolsonarização” que começa a se tornar motivo de preocupação, para o professor da UFF, é o das polícias militares estaduais, definidas na Constituição como forças auxiliares e reservas do Exército. “Esse fenômeno ficou explicitado na greve de policiais no Ceará, nos primeiros meses de 2020, e no tratamento diferenciado dado pela Polícia Militar a manifestantes contra e pró-governo em diversos estados”.

Ricardo Noblat - O fantasma que há mais de dois anos assombra Bolsonaro

- Blog do Noblat | Veja

A rachadinha de Flávio

O risco de o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos) acabar um dia condenado por lavagem de dinheiro, organização criminosa e desvio de dinheiro público à época em que era deputado estadual no Rio atravessou 2020 e amanheceu junto com o novo ano. É o fantasma que tira o sono do pai dele.

Todas as tentativas feitas até aqui pelo pai e o filho para enterrarem o assunto foram frustradas, e algumas delas deram ensejo a novos escândalos. Foi o caso, por exemplo, da mobilização da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) que ajudou a defesa de Flávio com relatórios e conselhos.

A Abin é um órgão de Estado. Ela assessora o presidente da República. É proibida de se meter em questões que fogem aos seus objetivos definidos em lei. Acontece que Bolsonaro pôs lá um delegado que cuidou de sua segurança pessoal depois da facada em Juiz de Fora e que se tornou amigo da família.

Carlos Melo* - O governo Bolsonaro precisaria se reinventar, mas isso é muito improvável

- O Estado de S. Paulo

Com saída de Rodrigo Maia do comando da Câmara dos Deputados, presidente perde apoio para agenda reformista

Não há o que inventar: à luz dos dados e das evidências, o País precisa de reformas estruturais para sanear o ambiente de negócios e retomar o desenvolvimento econômico e social. Além disso, urge para políticas públicas capazes de mitigar os efeitos da grande crise, recolocando as pessoas no mundo do trabalho e ampliando seus horizontes no futuro. Bem ou mal, 2020 parece ter convencido parte do Congresso Nacional e dos formadores de opinião a esse respeito; percebeu-se que, ainda que não possa nem deva ser abandonada, a agenda fiscal não basta.

Mas nada é simples: mesmo ciente do óbvio, nos últimos anos o País tem ficado pelo caminho se arrastando de crise em crise. Na pandemia, um tolo maniqueísmo que contrapôs a saúde à economia atropelou a agenda e deixou sequelas na inteligência. Na miséria da política e no auge da indigência intelectual, ao final, nem a saúde nem a economia foram poupadas. Restou o pior de três mundos: quase 200 mil mortes, explosão do gasto fiscal e um extraordinário contingente de desempregados e desalentados, dependentes de mais recursos. 

Eliane Cantanhêde - Sorte e juízo!

- O Estado de S. Paulo

Prefeitos assumem com pandemia, pobreza, discurso de ódio e Bolsonaro na praia

Os prefeitos que assumiram no primeiro dia do ano precisam de liderança, força política, experiência, capacidade administrativa e bom senso, além da indispensável ética com a coisa pública. O foco estará em todos e cada um, principalmente em Eduardo Paes (DEM), que reencontra a Cidade Maravilhosa com o amor próprio ferido, arrasada administrativa e financeiramente. Ele não assumiu uma prefeitura, entrou numa guerra.

São tempos difíceis e desafiadores para Paes, os reeleitos Bruno Covas (PSDB) e Alexandre Kalil (PSD), em São Paulo e Belo Horizonte, e para todos os demais: Bolsonaro na praia, vírus a mil, idas e vindas das vacinas, lojas fechando, empresas quebrando, desemprego grassando. E a ajuda emergencial acabou junto com 2020.

O equilíbrio é complicado: responsabilidade com as contas públicas, mas como não gastar com leitos, remédios, profissionais extras, pessoas e famílias? Sem esquecer que estamos em janeiro, é época de chuvas, temporais, desabamentos. O que dá um frio na barriga. Onde há planejamento e diligência, tudo bem. E onde não há?

Roberto Romano* - Carteiradas absolutistas do STF e do STJ

-  O Estado de S. Paulo

No Brasil, funcionários públicos e suas famílias estão acima de quem paga impostos

A diferença entre regimes absolutistas e Repúblicas modernas reside nos direitos usufruídos pelas hierarquias do Estado. Para garantir apoio ao rei e à centralização do poder o Antigo Regime concede privilégios ao clero e aos nobres. Isenção de impostos, cargos públicos, dignidades, pensões e prebendas, regalos que minam os cofres nacionais. Naquela forma política existem dois setores. O primeiro reúne funcionários estatais. Ministérios, empregos civis e militares se destinam aos nobres. Os padres cumprem idênticas funções, menos as militares. Mas Richelieu se apresenta sob armadura, líder dos ataques aos nobres protestantes. O cerco de La Rochelle mostra um cardeal bélico e político que tenta esmagar minorias.

Nobres e clero recebem trato diferenciado na vida política, econômica, cultural. Quando não herdam cargos e privilégios, seus integrantes os compram. A garantia do poder centralizador, portanto, está na corrupção e na venda de apoio ao governante.

Daí surge a bipartição das pessoas. Quem se move no aparelho do Estado usufrui prerrogativas e privilégios, generosos se o rei precisa de ajuda. No outro lado, as pessoas sem prerrogativas nem privilégios, salvo quando elas possuem dinheiro para comprar cargos. O Estado ostenta dois tipos de súditos: os que recebem todas as graças, o clero e a nobreza, e os que integram um terceiro setor sem rosto próprio. 

Janio de Freitas – A traição se demonstra

- Folha de S. Paulo

Presidente e ministro da saúde deixaram o tempo correr por decisão

O contraste entre a dedicação corajosa do pessoal da saúde e a sabotagem da turma de Bolsonaro à imunização geral reflete, e denuncia, a falta de caráter coletivo das classes e categorias que dominam o Brasil.

O alheamento dessa porção poderosa, historicamente ativa na fermentação dos golpes de Estado e, com menor necessidade, contra reduções das desigualdades, oferece o alicerce para uma traição que passa de presumida a demonstrada.

caso das seringas é eloquente. Há mais de oito meses, ainda com Henrique Mandetta como ministro, a compra de seringas e agulhas estava em questão, inclusive com referência ao Ministério da Economia sobre verbas.

A imobilidade do governo só se rompeu há duas semanas, com um pregão em que o Ministério militar da Saúde fixou e exigiu preços abaixo dos vigentes. Só conseguiu comprar 24 em cada 1.000 seringas que dizia querer.

Vinicius Torres Freire – Vacina contra a Covid e Bolsonaro

- Folha de S. Paulo

Brasil ainda pode ter sucesso com a vacina e alta do PIB com mais miséria em 2021

É fácil fazer previsão. Difícil é acertar. Desde o começo do século, dois terços das previsões de crescimento da economia feitas em dezembro (para o ano seguinte) estavam muito erradas: não ficaram nem dentro do intervalo das estimativas mínima e máxima de “o mercado”.

Talvez seja útil mencionar obviedades importantes para o que vai ser de 2021. O óbvio não tem charme, mas quebramos a cara quando não nos damos conta de que ele é o muro adiante das nossas fuças.

VACINAS. O Brasil pode vacinar 1,5 milhão de pessoas por dia ou mais, em esforço de guerra (se não precisar usar essas supergeladeiras para vacinas modernas). Em tese, daria para vacinar todo o mundo com mais de 18 anos em quatro meses.

Butantan e Fiocruz dizem que podem produzir 1,3 milhão de doses por dia a partir de fevereiro (menos que isso em janeiro, mas mais no segundo semestre), bastantes para vacinar 650 mil pessoas por dia.

Desde que a eficácia e/ou efetividade dessas vacinas não seja uma porcaria e os crimes de Jair Bolsonaro não atrapalhem muito, lá por outubro daria para ter acabado o serviço. Bem antes, haveria grande alívio: daria para quase acabar com o morticínio de idosos, liberar os hospitais, reduzir custos do combate à doença, animar a economia etc. Problema de que pouco se fala: como será possível vacinar contra Covid e gripe ao mesmo tempo?

Míriam Leitão - A saúde da economia

- O Globo

No ano de 2021 o Brasil pode crescer sem crescer, e a principal variável da economia não será econômica. Mesmo se a economia ficar estagnada, haverá um número positivo na comparação da média contra a média do ano passado, em que houve uma queda forte no segundo trimestre. O que definirá a chance de alta real do PIB — e não apenas uma ilusão estatística — será a vacinação em massa dos brasileiros. O erros do governo na preparação para a vacina são falhas também econômicas.

O falso dilema que Bolsonaro alimentou no ano passado é um bumerangue que se volta contra seu próprio governo. Ele defendeu a tese de que era preciso manter a economia funcionando normalmente para garantir emprego e atividade. Não trabalhou para garantir a volta sustentada da economia. Este ano o choque entre a sua ideia e a realidade estará mais evidente, porque o atraso na vacina é o maior obstáculo para a recuperação econômica.

O país está vergonhosamente atrasado na vacinação. O fiasco do leilão de seringas feito pelo Ministerio da Saude foi sinal da sua incapacidade de gestão. As providências elementares para um programa de imunização não foram tomadas. Estados e prefeituras já se adiantam e compram seringas, agulhas e vacinas, enquanto o governo federal roda em falso.

Celso Ming - Desafios à frente e o que esperar de 2021

- O Estado de S. Paulo

Não será preciso muito para fazer deste 2021 um tempo melhor do que foi 2020, um annus horribilis, como diria a rainha Elizabeth II, do Reino Unido – se não por outras razões, pelo menos pelo desastre produzido pela pandemia.

A perspectiva da vacina já muda muitas coisas – algumas para melhor. É o que já se pressentiu no último trimestre do ano passado, quando houve boa retomada da atividade econômica, embora ainda faltem os números para dar ordem de grandeza a essa percepção e se possa, enfim, conferir a tal recuperação em “V”, de que tanto fala o ministro da Economia, Paulo Guedes.

As contas externas do Brasil, causa dos enfartes que caracterizaram as crises dos anos 1970 e 1980, continuam em excelente estado. Essa área não preocupa. A eleição de Joe Biden para a presidência dos Estados Unidos aumentou o nível de confiança global, especialmente nas duas últimas semanas de dezembro, quando o Congresso dos Estados Unidos aprovou novo pacote de recursos para enfrentar a crise. A pandemia tende a ser agora nocauteada pela vacina, especialmente nos países avançados. Mas, levando-se em conta que há mais de 200 delas em desenvolvimento ao redor do mundo, não há como negar que há agora luz no fim do túnel.

Lourival Sant'Anna - A conexão União Europeia-China

- O Estado de S. Paulo

Após sete anos de negociações e três semanas antes de Joe Biden assumir a Casa Branca, União Europeia e China firmaram, na quarta-feira, um importante acordo de acesso a mercados e equalização de condições de concorrência para empresas dos setores industrial e financeiro. A iniciativa muda a correlação de forças entre os três maiores mercados do mundo e impacta os planos de Biden de reduzir a projeção global chinesa atraindo a Europa de volta para a esfera de influência dos EUA. 

Depois de quatro anos de unilateralismo sob Donald Trump, e de avanço da estratégia chinesa, o Atlântico não é mais o mesmo – nem o mundo. O acordo diminui exigências para empresas europeias que atuam na China, em relação à obrigação de ter uma parceria com uma empresa chinesa, e também as restrições para elas lançarem papéis estrangeiros para aumentar seu capital. 

A China se compromete a aumentar a transparência sobre os subsídios que o governo chinês concede às suas empresas e também no que tange as transferências de tecnologia. As parceiras chinesas de empresas estrangeiras muitas vezes passam sua tecnologia para outras empresas chinesas, que passam a concorrer com elas, lançando produtos similares com o conhecimento contrabandeado. 

No setor financeiro, as empresas europeias passam a ter os mesmos direitos que as americanas adquiriram, de abertura dos mercados de seguro e de gestão de ativos, na fase 1 do acordo comercial assinado por Trump e Xi Jinping, em janeiro, quando a China se comprometeu a importar US$ 200 bilhões a mais dos EUA em dois anos.

Elio Gaspari - O Apocalipse Já de Bolsonaro

- O Globo / Folha de S. Paulo

Depois do festival de bobagens de 2020, governo começar o novo ano poupando a plateia de teorias conspiratórias, novas catástrofes e bodes expiatórios

Em agosto de 2019, quando Alberto Fernández venceu as primárias para a Presidência da Argentina, Jair Bolsonaro resolveu atravessar a fronteira para escorregar numa casca de banana em terras alheias:

“Não esqueçam do que, mais ao Sul, na Argentina, aconteceu nas eleições de ontem. A turma da Cristina Kirchner, que é a mesma de Dilma Rousseff, que é a mesma de Hugo Chávez, de Fidel Castro. (...) Se essa esquerdalha voltar aqui na Argentina, nós poderemos ter no Rio Grande do Sul um novo estado de Roraima”.

Era o tempo em que venezuelanos atravessavam a fronteira e vinham para o Brasil. Hoje os brasileiros gostariam de dar um pulinho na Argentina. Lá, desde a semana passada, a população está sendo vacinada contra a Covid.

Virou o ano, o Brasil não tem vacinas, a Anvisa do almirante e o ministério da Saúde do general estão atordoados pelo negacionismo que Bolsonaro impôs ao seu governo. Ganha uma fritada de morcego do mercado de Wuhan quem souber o que fez o comitê interministerial criado em março para lidar com a pandemia.

Na exortação de agosto de 2019, Bolsonaro mostrou o lado apocalíptico de sua retórica. Quando ele falou na “gripezinha”, quando defendeu as virtudes da cloroquina e até mesmo quando classificou a segunda onda da pandemia de “conversinha”, manipulava a ignorância num processo de simples empulhação. Se tivesse razão (e não a tinha), as coisas poderiam melhorar. Quando falou num possível êxodo de argentinos, manipulava o apocalipse, e aí está o perigo, pois a Constituição lhe assegura mais dois anos de mandato.

Dorrit Harazim - A arte de viver

- O Globo

Parece que viramos a página: ficou escancarado em 2020 que, sem o outro, não somos nem seremos

Individualmente, nunca se saberá quem mais sofreu neste soturno ano de 2020. Coletivamente a resposta é fácil: foi a arte. Mas qual delas? Aquela que independe de qualquer genialidade ou talento específico para existir: a arte de viver. Para quem teve o privilégio de não estar entre as quase 2 milhões de pessoas levadas pela Covid, sobreviveu com medo, aceitou perdas, adequou-se ao vazio e ao silêncio, reinventou-se como pôde no confinamento abrupto. Sempre fomos moldáveis na arte de viver para conseguirmos sobreviver e dar sentido à espécie. 2020 quase nos tirou do prumo através de seu cortejo fúnebre. Mas parece que viramos a página: ficou escancarado que, sem o outro, não somos nem seremos.

Se viver é a maior das artes, a poesia vem logo atrás. Ela tem o poder de libertar as profundezas do possível, de restaurar zonas entumecidas. Ser alcançado por um poema de Armando Freitas Filho na hora certa é um choque transformador, libertador.

Em meio à clausura mundial de 2020, nada mais atual do que a meditação sobre a saga humana feita por John Donne 400 anos atrás. Donne, um dos maiores poetas de língua inglesa de todos os tempos, estava seriamente enfermo quando escreveu em prosa a “Meditação XVII” :

— Nenhum homem é uma ilha, isolado em si mesmo; todo homem é parte de um continente, uma parte de um todo. Se um torrão de terra for levado pelas águas até o mar, a Europa ficará diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse o solar de teus amigos ou o teu próprio; a morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gênero humano. E por isso não perguntai por quem os sinos dobram; eles dobram por vós.

O que a mídia pensa: Opiniões / Editoriais

Autoritarismo sob novas vestes – Opinião | O Estado de S. Paulo

Seja qual for a cor ideológica ou o meio utilizado, o autoritarismo é sempre nefasto. É preciso estar alerta. A liberdade e a democracia são inegociáveis

O País tem uma Constituição democrática vigente e realiza rigorosamente eleições no seu devido tempo. Pode-se, assim, ter a impressão de que o autoritarismo e outras violações do regime democrático sejam temas distantes dos brasileiros, como problemas do passado já superados. No entanto, nos dias de hoje continua havendo ataques à democracia, por novos e insidiosos meios, alertou o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Luís Roberto Barroso, em recente palestra. Nesses novos ataques, até mesmo as eleições são utilizadas para desacreditar o regime democrático.

Segundo Luís Roberto Barroso, “uma versão contemporânea do autoritarismo são essas milícias digitais que atuam na internet, procurando destruir as instituições e golpeá-las, criando um ambiente propício para a desdemocratização”.

Nas eleições de 2020, o País assistiu a uma tentativa de desmoralizar o seu sistema eletrônico de votação. No dia do primeiro turno, hackers tentaram derrubar o site do TSE e houve vazamento na internet de dados de servidores obtidos por meio de um ataque virtual realizado dias antes. Ainda que essas duas operações não tenham provocado nenhum risco para a apuração dos votos, elas foram utilizadas para disseminar desconfiança em relação à segurança do sistema eleitoral.

Poesia | Joaquim Cardozo - Imagens do Nordeste

Sobre o capim orvalhado
Por baixo das mangabeiras
Há rastros de luz macia:
Por aqui passaram luas,
Pousaram aves bravias.

Idílio de amor perdido,
Encanto de moça nua
Na água triste da camboa;
Em junhos do meu Nordeste
Fantasma que me povoa.

Asa e flor do azul profundo,
Primazia do mar alto,
Vela branca predileta;
Na transparência do dia
És a flâmula discreta.

És a lâmina ligeira
Cortando a lã dos cordeiros,
Ferindo os ramos dourados;
– Chama intrépida e minguante
nos ares maravilhados.

E enquanto o sol vai descendo
O vento recolhe as nuvens
E o vento desfaz a lã;
Vela branca desvairada,
Mariposa da manhã.

Velho calor de Dezembro,
Chuva das águas primeiras
Feliz batendo nas telhas;
Verão de frutas maduras,
Verão de mangas vermelhas.

A minha casa amarela
Tinha seis janelas verdes
Do lado do sol nascente;
Janelas sobre a esperança
Paisagem, profundamente.

Abri as leves comportas
E as águas duras fundiram;
Num sopro de maresia
Viveiros se derramaram
Em noites de pescaria.

Camarupim, Mamanguape,
Persinunga, Pirapama,
Serinhaém, Jaboatão;
Cruzando barras de rios
Me perdi na solidão.

Me afastei sobre a planície
Das várzeas crepusculares;
Vi nuvens em torvelinho,
Estrelas de encruzilhadas
Nos rumos do meu caminho.

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Salinas de Santo Amaro,
Ondas de terra salgada,
Revoltas, na escuridão,
De silêncio e de naufrágio
Cobrindo a tantos no chão.

Terra crescida, plantada
De muita recordação.