sábado, 9 de janeiro de 2021

Merval Pereira - Conter danos

- O Globo

O debate sobre a participação dos militares no governo Bolsonaro levou a que o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, propusesse proibir militares da ativa de servir no governo federal em cargos não afetos à defesa nacional. Os cientistas políticos Octavio Amorim Neto, da FGV, e Igor Acácio, num trabalho publicado na edição em português do “Journal of Democracy”, editado pelo Instituto Fernando Henrique Cardoso, consideram que esse seria um ponto de partida para conter o retrocesso que veem acontecendo com a politização dos militares no governo Bolsonaro.

 “Se militares desejam servir em cargos civis da administração pública federal, a solução é relativamente simples: presta-se concurso público, ou aceita-se a nomeação mediante passagem à reserva. Não se retorna à tropa”. Essa decisão seria coerente, ressaltam, com as reformas profissionais engendradas pelo Marechal Castello Branco, as quais visavam pôr fim ao estadismo militar, com oficiais que concorriam a mandatos e ocupavam cargos públicos para retornar à caserna à espera de uma nova função.

Outra sugestão, que eles encampam, foi dada pelo historiador José Murilo de Carvalho, da Academia Brasileira de Letras: eliminar cinco palavras – “à garantia dos poderes constitucionais” – do Artigo 142 da Constituição, em que se lê que as Forças Armadas “são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.

Cristovam Buarque* - Basta e basta

- Blog do Noblat / Veja

União contra Bolsonaro

Basta do governo insano e da oposição dividida. O maior erro dos democratas foi não manterem a unidade da luta contra a ditadura, na hora de construir a democracia, com eficiência econômica, justiça social, sustentabilidade ecológica, fiscal e educacional. Continuamos divididos, mesmo diante do risco de reeleger um regime miliciano no lugar do antigo regime militar.

Em 1985, os democratas se uniram para barrar a continuação do regime militar com o civil Maluf; com exceção do PT, que não votou contra a ditadura, para não se aliar a democratas conservadores. Com poucos deputados, sua opção não impediu a vitória da democracia. Quase quarenta anos depois, outra vez os democratas têm a chance de deixar suas divergências para barrar um regime militarista, obscurantista, candidato a autoritarismo. Desta vez o PT não é mais o pequeno partido de antes. Apesar de todo seu desgaste, por seus erros ou por manipulações na justiça, o PT é um partido grande o suficiente para definir o rumo das eleições em 2022: unindo-se aos demais democratas para barrar a continuação do atual governo, ou repetir o isolamento e correr o risco de reeleger o governo atual, com todas as consequências.

Ascânio Seleme - Justiça de um homem só

- O Globo

Nenhuma dúvida. Donald Trump tinha mesmo que ter sido afastado das redes sociais que usou durante todo o seu mandato para organizar a extrema direita em torno de seu projeto pessoal

Nenhuma dúvida. Donald Trump tinha mesmo que ter sido afastado das redes sociais que usou durante todo o seu mandato para organizar a extrema direita em torno de seu projeto pessoal. A turba ignara trumpista nunca se deu conta de que estava seguindo um homem arrogante e ambicioso que jamais pensou nos interesses do seu país. Os terroristas que invadiram o Capitólio na quarta-feira, no ápice da marcha golpista do mais infame presidente que os EUA já tiveram, apenas repetiam com a virulência do líder o discurso falso de que a eleição do adversário democrata havia sido fraudada.

Como Trump, há inúmeros outros líderes globais que abusam dessas plataformas para disseminar medos, mentiras e ameaças, ultrajando seus povos e suas nações. No Brasil, sabemos que Jair Bolsonaro e seu gabinete do ódio manipulam estas ferramentas para mentir e enganar, buscando tão somente confrontação e dividendos políticos. Tanto Trump quanto seu similar nacional, ambos golpistas potenciais, sofreram esporádicas e tardias sanções de Facebook, Twitter, Instagram e outras redes. A certa altura, o manda-chuva Mark Zuckerberg chegou a dizer que não podia se arrogar no direito de definir o que é verdade e que é falso na tormenta antidemocrática que estes canais de comunicação instantânea se transformaram.

Bobagem. Podia pelo menos ter tentado instituir em cada país um sistema de controle formado por membros de entidades civis, como as brasileiras OAB e ABI, e buscar apoio nos grupos de mídia profissionais para estabelecer um sistema eficiente de controle contra mentiras e manipulação no uso das redes. Dinheiro não seria problema para estas gigantes, mas a medida não seria boa para os negócios. Em determinados momentos no passado recente, algumas ações foram tomadas, mas muito mais para dar uma satisfação à opinião pública do que para de fato impedir o mau uso das plataformas. Deixou-se a coisa seguir de maneira solta, com bloqueios aqui e ali, até que se deu a invasão do Congresso americano, seguida de uma comoção mundial.

‘Populistas autoritários nem sempre ganham’, diz autor de ‘Como as Democracias Morrem’

Steven Levitsky afirma que desfecho do governo Trump deve servir de exemplo para oposição a Bolsonaro

Henrique Gomes Batista | O Globo

SÃO PAULO — Mundialmente famoso por seu livro “Como as Democracias Morrem”, o cientista político e professor de Harvard Steven Levitsky afirmou que o desfecho da invasão ao Capitólio e da tentativa de Donald Trump continuar no poder de qualquer maneira é uma prova que populistas autoritários podem ser parados. Em entrevista por e-mail ao GLOBO, ele afirma que o fim do governo do republicano deveria inspirar a oposição brasileira e que Trump não conseguiu se manter no poder porque não contou com o apoio dos militares.

O desfecho do governo Trump é marcado pela tentativa de reverter o resultado das urnas com acusações falsas, pressão a funcionários públicos e incentivo à invasão do Capitólio, que fez Trump ficar mais isolado no fim dos eventos. Qual a lição para o mundo?

Bem, talvez a lição seja que os populistas autoritários nem sempre ganham. Eles podem ser parados.

Líderes populistas que copiaram claramente Trump, como Jair Bolsonaro, podem tentar repetir esse caminho e ter sucesso, ao contrário do republicano?

Bolsonaro é talvez o líder que mais claramente copiou Trump. Minha esperança é que o fracasso de Trump os desencoraje, e talvez inspire a oposição brasileira. Os democratas pararam Trump em parte porque uniram a esquerda e o centro. Se a oposição do Brasil não se unir, acho que Bolsonaro pode ter sucesso (na reeleição). A outra grande questão no Brasil são os militares. O exército poderia se recusar a cooperar com uma aventura autoritária, como nos Estados Unidos, ou ajudar Bolsonaro a ter sucesso?

Ricardo Noblat - Avança o plano de Bolsonaro de armar os brasileiros

- Blog do Noblat | Veja

O crime organizado e as milícias agradecem

No país dos mais de 200 mil mortos pelo vírus sem que o governo tenha feito grande coisa para evitar, quase 180 mil novas armas de fogo foram registradas na Polícia Federal no ano passado – um recorde em relação à série histórica que começou em 2009.

Foi um aumento de 91% em relação ao ano anterior, onde o registro de 96.064 armas representou uma alta de 84% em comparação com 2018, ano em que foi eleito presidente o ex-capitão Jair Bolsonaro, afastado do Exército por má conduta.

Dito de outra maneira: nos primeiros dois anos do mal militar que planejou explodir bombas em quartéis nos anos 80 do século passado, 273.935 novas armas foram registradas pela Polícia Federal, 183% a mais do que em 2018 e 2017. Taokey?

Não só mais armas, mas armas com maior potencial de fogo, um número maior delas compradas por cidadãos. E também mais munições para cada portador de arma. Bolsonaro chegou a zerar o imposto de importação de revólveres e pistolas.

Míriam Leitão - Diplomacia sem pé nem cabeça

- O Globo

O presidente Bolsonaro mandou uma carta ao primeiro-ministro da Índia pedindo ajuda para receber as vacinas da Serum. É mais um erro da diplomacia. Esta semana o ministro Eduardo Pazuello telefonou para o ministro da Saúde indiano, Dr. Harsh Vardhan, para pedir o envio das doses, dois milhões ao todo. Tudo o que ouviu foi que esse era um assunto comercial. Educadamente, o ministro indiano indicou que era preciso concluir primeiro a negociação com a empresa. A Serum é privada, e não havia recebido o pagamento e o governo da Índia não tinha o que fazer a respeito. Ontem, o Brasil programou o pagamento.

Esse é só um pequeno exemplo da falta de noção do governo brasileiro, que despreza a tradição da nossa diplomacia profissional. Quem conversa com representantes de outros países em Brasília ouve uma série de histórias das falhas nas regras básicas. Uma delas é a de que nenhum ministro liga para ouvir um não. Para isso existem os contatos precursores. E o que Vardhan disse foi que Pazuello se acertasse com a empresa e se houvesse algum entrave burocrático na exportação aí o governo indiano poderia ajudar. Não disse assim com essas palavras porque ele é diplomata de carreira. Conhece os códigos.

Adriana Fernandes - A corrida política pelo auxílio

- O Estado de S. Paulo

Congresso precisa retomar os trabalhos. A agenda do País é urgente demais para esperar

Cacique do MDB, o senador Renan Calheiros chamou pelas redes sociais de “pasmaceira que não resolve nada” o quadro atual em que problemas pendentes se acumulam exigindo resposta do Congresso para o plano de vacinação contra a covid-19, o auxílio emergencial e o Orçamento deste ano. 

A cobrança do senador e de um número cada vez maior de parlamentares é pelo fim do recesso parlamentar para o enfrentamento da situação de calamidade que passa o País e que não terminou com a virada de 2020 para 2021. Já há requerimento para uma convocação extraordinária do Congresso para discutir um novo decreto de calamidade e a prorrogação do auxílio.

Era de se esperar que isso de fato fosse acontecer para o Congresso acompanhar de perto e pressionar o governo a correr com as medidas necessárias nesse janeiro tenebroso.

Vamos lembrar que no início da pandemia o Congresso teve papel fundamental na aceleração da ação do governo Bolsonaro para a adoção das medidas que impediram um desastre ainda maior. Mais uma vez, porém, uma eleição está no caminho das decisões urgentes. 

João Gabriel de Lima - Os populistas e seus moinhos de vento

- O Estado de S. Paulo

Nomear e cultivar inimigos é a estratégia clássica do populista

 “Procure o inimigo!” Jânio Quadros sacava seu bordão quando tinha que comunicar alguma medida impopular e pedia aos assessores que dourassem a pílula. Ficou famoso o episódio em que, ao anunciar um aumento na gasolina, jogou a culpa nos... Estados Unidos. No Brasil sempre pega bem responsabilizar os “americanos”, embora a maior parte de nossos problemas seja fruto de nossa própria incapacidade em resolvê-los.

Nomear e cultivar inimigos é a estratégia clássica do populista – aquele tipo de governante que, na definição dos cientistas políticos, se apresenta como defensor do “povo” contra as “elites”. No rótulo de “elites” cabe quase tudo: os “globalistas”, sem levar em conta que a circulação de bens, pessoas e conhecimento é crescente e irreversível no mundo atual; os “comunistas”, embora eles sejam irrelevantes no ocidente desde o fim da União Soviética, há 30 anos; ou os “políticos” – apesar do fato incômodo de que todos os populistas são, antes de tudo, políticos.

Hélio Schwartsman - Caprichos vacinais

- Folha de S. Paulo

O próprio presidente trabalha para minar a confiança na vacinação

Numa cerimônia mais voltada a produzir fatos políticos do que a divulgar informações científicas, o governo de São Paulo finalmente anunciou que a Coronavac apresentou, no Brasil, uma eficácia de 78% na prevenção de doença sintomática. É um bom resultado; um pouco melhor do que o do imunizante da Universidade de Oxford/AstraZeneca —aposta do governo federal—, cuja eficácia foi estimada em 70%.

Politicamente, o governador de São Paulo, João Doria, se saiu melhor do que Jair Bolsonaro, já que o presidente, que jurara que jamais adquiriria a "vacina chinesa do Doria", teve de engolir a pirraça a seco e mandar comprar os imunizantes do rival paulista. Sorte de Doria, azar de Bolsonaro, já que, quando firmaram suas parcerias, era impossível saber qual vacina funcionaria melhor.

Cristina Serra - O instinto assassino de Bolsonaro

- Folha de S. Paulo

Ao confessar seu fracasso, ele deveria renunciar. Mas não tem hombridade para tal

Bolsonaro tem duas preocupações na vida: salvar a pele dos filhos suspeitos de cometer crimes e preparar as bases para um golpe na eleição de 2022. Como admitiu em cínica declaração, pelo país ele nada consegue fazer. Aí está uma verdade. Não consegue porque não é capaz. Seu governo será sempre associado a um recorde trágico: 200 mil brasileiros mortos, em menos de dez meses, pelo vírus que ele ajudou a espalhar com seus arrotos de ignorância.

Péssimo militar e parlamentar medíocre, Bolsonaro levou seu despreparo para o Planalto e se cercou de incompetentes como ele. O pascácio da Saúde desconhece a lei da oferta e da procura e não consegue marcar a data da campanha de vacinação. O da Economia não sabe o que pôr no lugar do auxílio emergencial. O vírus mata, a fome também.

Alvaro Costa e Silva - Bolsonaro, o vagabundo eficiente

- Folha de S. Paulo

Trabalhando pela destruição do país e a favor do vírus, o presidente tem sido incansável

Em maio de 2020, o Brasil já era o segundo país do mundo com o maior número de casos de infectados com o coronavírus: quase 400 mil pessoas. Na época, em seu comportamento-padrão durante toda a pandemia, Bolsonaro circulou pelo comércio de Brasília gerando aglomerações. Incrível, ele usava máscara. Mas logo a tiraria, ao parar numa barraquinha para comer um cachorro-quente na Asa Norte. Na primeira mordida, recebeu o carinho da torcida: "Vai trabalhar, vagabundo!".

A fama de vagabundo, de quem sempre viveu na e da política, o acompanha desde muito antes da eleição para presidente. Um deputado federal que, em 27 anos de legislatura, consegue aprovar dois projetos só pode ser um mito.

Seus filhos Flávio, Eduardo e Carlos têm afazeres mais urgentes --contar dinheiro em espécie, comandar o gabinete do ódio, dar curso de como se tornar um perfeito fascista, tirar fotos com Neymar. No Senado, na Câmara dos Deputados e na Câmara Municipal, eles seguem o estilo do papai nos tempos de baixo clero: apresentaram no ano passado 23 propostas, segundo levantamento do repórter Dimitrius Dantas.

Joaquim Falcão* - Democracia lá e cá

- O Globo

Nossas instituições de controle não conseguem tomar decisões claras, urgentes e definitivas

Claro que os Estados Unidos têm forte democracia. Claro que Joe Biden assumirá a Presidência. Mas o perigo não é esse. Mora ao lado. A democracia americana não foi forte suficiente para evitar preparadas e planejadas violências: política, digital e física. Sangue no Congresso. Tempos de infâmia, dizem os americanos.

As instituições rotineiras de controle não funcionaram, apesar de toda transparência, sintomas e indícios. Foram hábil e politicamente paralisadas por Trump e seguidores. A democracia americana não está preparada para os novos tempos. De tecnologia intensa, decisões rápidas e soluções complexas.

Denúncias contra a família Trump não foram conclusivas. Mentiras pela Presidência foram permitidas. Interferências externas em eleições estão no ar. Ataques a direitos humanos, de imigrantes, negros, islâmicos, crianças, white americans também.

O tempo da violência e da ilegalidade é instantâneo. O da legalidade, não.

A disseminação de fake news proliferou. Decisões da Suprema Corte foram contestadas nas palavras do presidente. A omissão no combate ao vírus é quase assassina. O nepotismo da Casa Branca reúne filhos, filhas, genros, como num cassino.

Há anos, o professor Terry Fischer, de Harvard, me disse: “O Estado de direito americano começou a cair”. Espantei-me. Referia-se ao fato de que Gore perdera para Bush não pelo voto. Mas por envergonhada decisão da Suprema Corte em favor de Bush.

Demétrio Magnoli* - Teatro da sedição

- Folha de S. Paulo

Futuro da democracia nos EUA depende do desenlace da guerra pela alma do Partido Republicano

 “Nunca concederemos”, exclamou Trump diante de uma malta de milicianos e supremacistas brancos reunidos no parque da Elipse, chamando-os a “marchar até o Capitólio”. Quase cem anos atrás, Mussolini deflagrou a marcha sobre Roma, mas ele mesmo não marchou, seguindo para o conforto de Milão. O presidente americano imitou a covardia do Duce, encerrando-se na Casa Branca enquanto seus vândalos percorriam a avenida Pensilvânia. A versão original foi uma sedição triunfante; a cópia, uma encenação que fugiu ao controle do mestre.

Cria corvos e eles te arrancarão os olhos —o provérbio espanhol explica a derrota de Trump. Os corvos violaram o roteiro, invadiram o Congresso e interromperam a sessão de certificação da vitória de Biden, alterando os termos da disputa pela hegemonia no Partido Republicano. No fim, lívidos, os principais líderes republicanos —o vice, Mike Pence, e o líder do Senado, Mitch McConnell— abandonaram o presidente e isolaram a camarilha de congressistas engajados na negação da democracia.

Trump não é um desequilibrado nem armou um golpe de Estado. A tocha que acendeu continua a queimar, apesar do fracasso de 6 de janeiro. O presidente sabe, desde novembro, que carece de meios para impedir a posse de Biden. O grito de fraude difundido pelo país destina-se a submeter o Partido Republicano, prendendo-o na jaula do nacionalismo branco. Trump 2024 —a campanha começou e seu estandarte é a restauração dos “direitos dos colonos”.

Bolívar Lamounier* - Estados Unidos e Brasil num mesmo espelho

- O Estado de S. Paulo

Temos na Presidência figura tão despreparada, ignorante e atrabiliária como Donald Trump

A invasão do Congresso americano, na última quarta-feira, por baderneiros a mando de Donald Trump foi a pior agressão às instituições americanas desde o macarthismo (de Joseph McCarthy, senador por Wisconsin) nos anos 1950.

Muito pior, porque o macarthismo era “apenas” um anticomunismo histérico, ao passo que o intento de Trump foi (quiçá ainda seja) se manter no poder por meio de um golpe de Estado, em claro desrespeito aos procedimentos institucionais do país. Brechas para tanto, em meu modesto entendimento, existem. A combinação norte-americana de voto direto e indireto (este no colégio eleitoral) é uma aberração, um arcaísmo concebido no século 18, que já devia ter sido extirpado há muito tempo. Vendo-se e reconhecido pelo mundo como um modelo político exemplar, os Estados Unidos nunca cogitaram de uma reforma política séria, o que até se pode entender, dada a riqueza e a virtual invulnerabilidade internacional do país durante mais de dois séculos. Fato é, não obstante, que a ascensão à presidência de um indivíduo despreparado e atrabiliário trouxe para a luz do dia os defeitos do sistema.

Em 1967 o cientista político Anthony Downs propôs deixar de lado a visão histórica autocondescendente dos americanos, substituindo-a por um lastro teórico mais sólido. Seu argumento, na verdade, era bem simples. Diferentemente dos países influenciados pela Europa, a política americana nunca foi permeada por enfrentamentos ideológicos. Seu sistema partidário sempre foi balizado por duas grandes organizações: democratas e republicanos. O sistema de governo presidencial completa o quadro. Um candidato que pretenda ser realmente competitivo tem de adotar uma plataforma convergente, moderada, sob pena de se isolar numa ponta minoritária. Tal argumento refletia fielmente o ocorrido em 1964, quando o senador sulista Barry Goldwater pretendeu encarnar uma posição direitista veemente e foi massacrado pelo moderado Lyndon Johnson.

Marcus Pestana* - Os EUA entre a loucura e o fascismo

A democracia é valor universal inegociável para aqueles que acreditam na liberdade como ambiente desejável para a construção do futuro da sociedade. A democracia moderna tem raízes na Inglaterra da Revolução Puritana, no século XVII, liderada por Cromwell, primeiro levante contra o absolutismo; na França, que em 1789, com sua revolução, derrubou a monarquia absolutista; e na consolidação da democracia norte-americana a partir da Guerra da Independência, da Revolução de 1776 e da Guerra de Secessão.

Em 1835, o maior intérprete da democracia americana, o jurista francês Alexis de Tocqueville, publicou o clássico “A Democracia na América”. A escravidão se concentrava no sul do país. E a valorização do indivíduo e da livre iniciativa empreendedora tomava conta do norte e do centro-oeste.

Tocqueville afirmou então: “Eu confesso que na América, eu vi mais do que a América; eu vi a imagem da democracia mesmo, com suas inclinações, seu caráter, seus preceitos, e suas paixões, o suficiente para aprender o que devemos temer ou o que devemos esperar de seu progresso”. 

Dora Kramer - Lote na lua

- Revista Veja

É fantasiosa a ideia de que a eleição na Câmara definirá o rumo de Bolsonaro

Francamente, alguém acredita que o rumo do governo e o projeto de reeleição de Jair Bolsonaro serão definidos pela presença de Baleia Rossi ou Arthur Lira na presidência da Câmara dos Deputados?

Os dados de realidade nem sempre são agradáveis e raramente se enquadram ao universo onde se batalha pela opinião do público. Portanto, há na plateia muita gente disposta a acreditar que com Rossi eleito o Brasil estará a salvo de Bolsonaro e cairá irremediavelmente sob o domínio do (des)governante de turno se o vitorioso for Lira.

Para frustração dos entusiastas dessas hipóteses, não ocorrerá uma coisa nem outra. Primeiro porque Bolsonaro não tem paciência nem competência para dominar a Câmara e, segundo, porque no campo das ideias os dois candidatos são muito parecidos.

Murillo de Aragão - Mudando de ideia para sobreviver

 

- Revista Veja

O governo deve deixar claro que a vacinação é, de fato, prioridade

Em política, mudar de ideia é quase inevitável. As circunstâncias e o acaso são os curingas da realidade. Mas, de modo geral, a mudança de ideia não é bem aceita pela opinião publica, sendo vista como um sinal de falta de coerência. Em política, porém, coerência e conveniência andam muito próximas da necessidade. São como os três mosqueteiros de Dumas. E, como na história, existe o quarto mosqueteiro, que é a oportunidade.

Na análise política, identificar os mosqueteiros é essencial para entender o que está acontecendo. A coerência é mantida pela conveniência e pela necessidade diante da conjuntura. Quando as circunstâncias mudam, a coerência é sacrificada e abre-se a oportunidade para mudanças.

Nenhum regime totalitário e dogmático do século passado deixou de mudar de ideia ao longo dos acontecimentos. Ao contrário, mudam com mais facilidade que os democráticos, pois controlam a expressão política da sociedade. Já na democracia, as quebras de paradigma são mais penosas porque o processo decisório é mais abrangente e envolve mais atores.

O governo Jair Bolsonaro viveu em 2020 um processo de mudança de ideias com sinais contraditórios. O ex-­presidente dos EUA Harry S. Truman teria dito “if you can’t convince them, confuse them” (“se não pode convencê-­los, confunda-os”) ao se referir à forma como a oposição tratava o seu mandato perante a opinião pública. Bolsonaro exerceu, de forma muitas vezes rude, o que o americano dizia. Mas não só ele. Lula foi mestre em tecer narrativas contraditórias às suas atitudes.

Há dois processos em curso confundindo o eleitorado. Um é a mudança de ideia materializada nos entendimentos com setores do centro político, prática que Bolsonaro já rejeitou com veemência. A necessidade prevaleceu sobre a coerência. Nada de novo, apesar do estranhamento. O outro processo está indefinido: a questão da imunização contra a Covid-19. Ao mesmo tempo que Bolsonaro diz que não se vacinará, ele já pôs verbas à disposição para os fármacos. Mas o programa de imunização não está posto, ao passo que países menos organizados avançam na questão. A ambiguidade no tratamento do tema pode penalizar a aprovação do governo.

Luciano Huck* -Escutar, pactuar e agir: sugestões para 2021

- Revista Veja

Muitas vidas teriam sido salvas se as autoridades tivessem ouvido mais os doentes, os profissionais de saúde e aqueles que trabalham em serviços essenciais

O ano de 2020 foi violento. Da porta para dentro de casa, um liquidificador de angústias, ansiedades, incertezas, reflexões profundas sobre valores e prioridades. Da porta para fora, toda sorte de maluquices, ataques à ciência, à democracia e às liberdades, desorganização total, mortes em números de zona de guerra.

Não cabe aqui nem minimizar nem varrer para debaixo do tapete a maior crise sanitária da história. Vivemos o mais doloroso evento para a humanidade desde a II Guerra no ano que passou. Isso fica ainda mais especialmente grave neste momento em que os números de casos e mortes voltam a se acelerar no Brasil.

Tenhamos consciência de que a vacinação, quando finalmente chegar, não nos fará esquecer tanto sofrimento. O ano de 2020 foi também de aprendizados e exercícios valiosos. Fez frutificar a solidariedade e multiplicar as redes de apoio. Reforçou a fé da sociedade na cooperação humana e na democracia. Mostrou a importância do Estado, na forma do SUS e na competência dos profissionais da saúde. Revelou a excelência de nossos cientistas e pesquisadores. Confirmou a capacidade das pessoas e das empresas de se desdobrarem para tocar a vida adiante, com engenho e determinação.

Essas lições igualmente vão ficar para sempre. Tenhamos isso em mente. Em 2020, o planeta foi forçado a parar. Em 2021, precisaremos, de algum jeito, forçá-lo a voltar a girar. Tal oportunidade é valiosa demais para aproveitá-la com os mesmos pensamentos, as mesmas idiossincrasias, as mesmas atitudes. Não podemos mudar o nosso passado, mas somos livres para escolher o nosso futuro.

Tenho conversado com muitos pensadores atuais, pessoas capazes de iluminar o pós-pandemia, e deles tirei sugestões para 2021, que vou resumi-las em três ensinamentos-convites que gostaria de compartilhar aqui.

O primeiro desses ensinamentos-convites é o de escutar. Escutar quem não tem sido ouvido. Escutar quem estudou. Escutar quem pensa diferente de você.

Minha carreira de comunicador foi construída prestando atenção no que os outros têm a dizer, em suas histórias, em suas dificuldades, sacrifícios e lições de vida. Nestes vinte anos rodando pelos quatro cantos do Brasil, em razão do meu trabalho na TV, tomei o pulso da realidade de um país potente, mas ainda vergonhosamente desigual. Aprendi muito com a nossa gente e continuo a aprender. Nosso povo tem muito a ensinar — sobretudo a quem se acha dono da verdade. Apurar os ouvidos é transformador. Se você escutar de verdade, não vai ter como ignorar os problemas que existem nem as propostas mais robustas e consequentes que surgem para enfrentá-los. Leva a gente a perceber que a realidade nada tem de binária.

O que a mídia pensa: Opiniões / Editoriais

Brasil precisa tomar cuidado com exemplo de Trump – Opinião | O Globo

Bolsonaro insinuou que aqui seria ‘pior’. País precisará estar preparado para resposta política e institucional

A sociedade e as instituições republicanas brasileiras precisam se preparar. Numa referência aos eventos desta semana nos Estados Unidos, o presidente Jair Bolsonaro insinuou que aqui ocorrerá o mesmo, caso perca a eleição em 2022: “Se não tivermos o voto impresso em 22, uma maneira de auditar o voto, vamos ter problema pior que os Estados Unidos”.

Veladamente, a declaração deixa claro que ele está disposto a, mais uma vez, imitar seu mentor americano e incitar atos violentos e antidemocráticos. Por sinal, nem é preciso que perca. Desde muito antes da invasão do Capitólio pelas hostes trumpistas, Bolsonaro semeia dúvidas sobre as urnas eletrônicas e, sem apresentar prova, já denunciou fraudes eleitorais no Brasil até em 2018, quando ele próprio venceu.

O Brasil tem um sistema eleitoral mais confiável, eficaz e seguro que o americano. Todos os testes e auditorias externas comprovam isso. É indigente o argumento de que é preciso ter um rastro físico de cada voto, já que as seções eleitorais imprimem uma lista que fica à disposição dos fiscais partidários. Na prática, o rastro físico já existe. Tanto que a imposição do voto impresso por um projeto de Bolsonaro foi vetada pela presidente Dilma e declarada inconstitucional pelo Supremo.

Poesia | Carlos Pena Filho - A Charles Baudelaire


Carlos também
embora sem
flores nem aves
vinho nem naves,

eu te remeto
este soneto
para saberes,
se acaso o leres,

que existe alguém
no mundo, cem
anos após

que não vaiou
e nem magoou
teu albatroz.