segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

Fernando Gabeira - Um homem sentado no destino do país

- O Globo

Não há o que temer ao despachar figuras nefastas como Trump e Bolsonaro

Às vezes, é preciso escrever com simplicidade, sem o rigor das páginas editoriais ou a complexidade das teses dos cientistas políticos. Escrever apenas isto: há um homem sentado sobre o destino do Brasil, e suas pesadas e incômodas nádegas não permitem avanço e provocam mortes.

Nem sempre é fácil se livrar desse fardo. Nos Estados Unidos, finalmente, Trump será despachado, como um desses espíritos que se recusam a desencarnar.

Muitos viram na invasão do Capitólio apenas um problema para Biden. Não perceberam que se viviam ali os estertores de uma época, num dia cheio de boas-novas, como as eleições na Geórgia, que garantem aos democratas a maioria no Senado.

Manifestações às vezes enganam. Já participei de centenas na vida. Nem todas sobrevivem na balança da história. Sua fumaça confunde o que sobe e desce, o que nasce e morre no instante.

Não há o que temer no processo de despachar essas figuras nefastas, desde que, é claro, se façam previsões corretas e preparações adequadas.

Quando o coronavírus era uma realidade apenas em Wuhan, escrevi um artigo sobre ele. Previ que, em caso de chegada ao Brasil, a única resposta teria de ser nacional e solidária.

Bolsonaro sabotou essa resposta. Como se não bastasse, demitiu os ministros da Saúde que a aceitavam. Fomos reduzidos a reações atomizadas que, embora fiéis à orientação científica, não têm a mesma eficácia de uma coordenação central.

Demétrio Magnoli - Vale tudo

- O Globo

Pandemias enlouquecem pessoas sãs

O governo Bolsonaro, sabotador profissional de cada uma das medidas restritivas destinadas a conter a pandemia, decidiu subitamente adotar uma iniciativa sanitária extremada que viola o direito fundamental dos brasileiros de regressar ao país. O veículo do crime é a Portaria 648, de 23 de dezembro. Ela exige, de todos os passageiros de voos destinados ao Brasil, a apresentação de teste PCR negativo no embarque.

Assinada pelo ministro André Mendonça, da Justiça, por Eduardo Pazuello, do Ministério da Saúde, e por Antônio Barra Torres, da Anvisa, a portaria é um atestado de analfabetismo funcional. No artigo 7, aparece a exigência ilegal. Contudo, antes, o caput explicita que o documento somente “dispõe sobre a entrada no País de estrangeiros”, uma limitação de abrangência reafirmada no artigo 3, segundo o qual “as restrições de que trata esta Portaria não se aplicam ao brasileiro, nato ou naturalizado”. O que vale, afinal?

Nessas plagas por onde cavalgou Abraham Weintraub, esqueça a lógica interna do texto. “Um manda, e o outro obedece”, ensina o rebaixado general Pazuello, um filósofo da nacionalidade. Assim, na prática, explica o Itamaraty, devem-se ignorar tanto o caput quanto o artigo 3. Vale o artigo 7, que efetivamente desloca o controle imigratório brasileiro da PF para as companhias aéreas, numa modalidade inédita de parceria público-privada. Sem o PCR negativo realizado até 72 horas antes do embarque, brasileiros não retornam — a não ser, claro, a bordo de jatinhos privados, pois a portaria renega o princípio da igualdade perante a lei.

E se, em algum lugar do mundo, não há teste disponível no prazo definido? Ou se o teste dá resultado positivo? Nessas hipóteses, o cidadão terá embarque recusado — e deve reclamar ao bispo do aeroporto.

Cacá Diegues - Uma nova democracia

- O Globo

O fracasso da invasão do Capitólio se deu graças à aliança entre democratas e republicanos

Pouco antes da conquista do planeta pelo coronavírus, pegava fogo o debate sobre a crise da democracia. Da versão política de Steven Levitsky à nênia econômica de Thomas Piketty, os pensadores ocidentais se dividiam entre a desconfiança num sistema de lógica tão frágil e a inesperada ascensão de gente como Boris Johnson, Matteo Salvini e sobretudo Donald Trump. Este último trazia a chave que abriu a caixa de Pandora do delírio antidemocrático, iniciado com a crise de 2008. A decadência desse baile de máscaras ideológico nos pegaria em cheio — a eleição, no Brasil, de Jair Bolsonaro, dez anos depois da inauguração dos novos tempos.

Como disse Manuel Castells, “a desconfiança nas instituições (...) nos deixa órfãos de um abrigo que nos proteja em nome do interesse comum”. Não há interesse comum quando os “representantes do povo” administram seus próprios sonhos em nome das sociedades que supostamente representam. O movimento antidemocrático é a inversão da energia popular: não cabe aos líderes realizar os “sonhos do povo”, mas orientar o povo sobre quais devem ser seus sonhos. É daí que nascem os “brexits”, rompimentos indesejáveis, xenófobos e populistas, que não podem ser condenados por ter sido escolhidos por eleitores.

O surgimento de um personagem excessivo, narcisista e grosseiro como Bolsonaro, que chega ao poder com uma ideologia semelhante à de Trump, pretende liberar energias reprimidas. E nos ameaça, para o futuro próximo, com algo parecido com a invasão do Capitólio. “A chave do sucesso de Trump”, escreve Matt Taibbi, “é a ideia segundo a qual as velhas regras de decência foram feitas para os perdedores que não têm o coração e a coragem de ser eles mesmos”. Essa é a mensagem do trumpismo numa era “narcisista de massa”, bem adequada a ela. O apoiador herda, por transição natural, o poder do apoiado, o herói político que o salvará não apenas da fome, mas também da insignificância de onde só pode se embasbacar com o universo estratosférico dos heróis inatingíveis da Marvel.

Ricardo Noblat - As veias abertas de um governo em agonia

- Blog do Noblat / Veja

A ordem é produzir fumaça para esconder o que acontece

A cada dia, aumenta a agonia do presidente Jair Bolsonaro e do seu governo com a retomada do avanço da pandemia do coronavírus. O próprio ministro da Saúde, o general Eduardo Pazuello, admitiu que ainda não se trata de uma segunda onda do mal, mas da primeira que ainda não quebrou de todo.

O Brasil é o terceiro país com o maior número de casos, atrás apenas de Estados Unidos e Índia. E o segundo em número de mortes, atrás apenas dos Estados Unidos. Foram 483 nas últimas 24 horas, de um total de 203.140, com pouco mais de 8 milhões e 100 mil infectados.

O vírus pisou no acelerador duas semanas após o início das festas de fim de ano. A tendência é que os números cresçam ainda. É por isso que os nervos do presidente e dos que o cercam estão à flor da pele. E, à falta de vacina, a ordem é produzir fumaça para desviar a atenção sobre o que acontece.

Recentemente, Bolsonaro disse a um grupo de devotos à entrada do Palácio da Alvorada que o Brasil está quebrado e que ele não pode fazer nada. Significa então: o país quebrou no colo dele. Porque antes não estava quebrado. No Congresso, ninguém o impediu de governar. Tampouco na justiça.

O que ele fez em dois anos? Nada, além de armar as pessoas como sempre defendeu, entregar a Amazônia aos cuidados dos desmatadores, a Educação a uma penca de ministros ineptos, a Cultura a quem tem horror a ela, e pôs nas Relações Exteriores um capacho, orientando-o a se curvar aos Estados Unidos.

Carlos Pereira - Não consegue ou não sabe governar?

- O Estado de S. Paulo

Problemas de governabilidade têm origem nas escolhas equivocadas de presidentes

O presidente Jair Bolsonaro parece ter “jogado a toalha” ao se referir às dificuldades econômicas que o Brasil tem enfrentado e afirmar, de forma peremptória: “o Brasil está quebrado... Eu não consigo fazer nada”.

Discursos de vitimização, de impotência governativa ou de transferência de responsabilidade para outros Poderes sob o argumento de que o governo estaria impedido de governar não são novidade em regimes democráticos e muito menos em sistemas presidencialistas multipartidários, como o brasileiro.

Um exemplo extremo é o do ex-presidente Getúlio Vargas que, em carta-testamento, invocou “as forças e os interesses contra o povo” para justificar seu suicídio em meio a uma grave crise política de seu governo minoritário, agravada após o atentado perpetrado contra o principal líder da oposição, o jornalista Carlos Lacerda.

De forma similar, em sua carta de renúncia à Presidência, o ex-presidente Jânio Quadros argumentou que estaria sendo impedido de governar por “forças ocultas”. Ele desprezou as regras do jogo político, não negociou com os partidos e tentou governar apesar do Legislativo. O descaso de Jânio com o Congresso Nacional era patente.

Rolf Kuntz - Ameaça é crime, no Código Penal. Ameaça de golpe também é?

- O Estado de S. Paulo

Trump fracassou, no golpe, mas convém tomar cuidado com seus imitadores

Vitória de Bolsonaro: o Brasil superou a marca de 200 mil mortes pela covid, resultado favorecido por seu negacionismo, por seu desleixo em relação à máscara, por sua presença em aglomerações e pela recusa a coordenar o combate à pandemia. Exemplos indignos de um governante foram acompanhados de manifestações de desprezo à vida alheia, sintetizadas em duas palavras famosas: e daí?

Foi uma grande semana para o chefe do desgoverno brasileiro. Seu guia intelectual, moral e político, Donald Trump, atiçou um assalto ao Congresso, tentou impedir a certificação da vitória de Joe Biden e estimulou Mike Pence, vice-presidente da República e presidente do Senado, a inverter o resultado da eleição. Pence recusou-se a cumprir a calhordice. Nos Estados Unidos a tentativa de golpe fracassou, mas sobrou a inspiração. Lá pode ter falhado, mas falhará no Brasil?

Algo “pior” poderá ocorrer por aqui, avisou Bolsonaro, se ainda houver voto eletrônico em 2022, isto é, se a sua vontade for descumprida. “Se nós não tivermos o voto impresso em 22, uma maneira de auditar o voto, nós vamos ter problema pior que o dos Estados Unidos”, disse ele àquele auditório disposto a aplaudir qualquer barbaridade pronunciada por seu líder.

Mais que um aviso, foi uma evidente ameaça. Assim o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, interpretou – corretamente – a fala de Bolsonaro. Afinal, que rebanho golpista ousará atacar o Congresso Nacional, e talvez o Supremo Tribunal Federal, sem a liderança de um candidato a tiranete, saudoso da ditadura militar e defensor da tortura?

Pelo Código Penal, ameaça é punível com detenção, de um a seis meses, ou multa. O crime é caracterizado no artigo 147: “Ameaçar alguém, por palavra, escrito ou gesto, ou qualquer outro meio simbólico, de causar-lhe mal injusto e grave”. Qual o freio aplicável a quem anuncia algo “pior” que os eventos de quarta-feira em Washington – invasão e depredação do Congresso e tentativa de mudar, num golpe, o resultado da eleição?

Marcus André Melo* - O Capitólio e a turba

- Folha de S. Paulo

Interpretações controversas da invasão do congresso americano

A invasão do Capitólio dos EUA por extremistas instigados por Donald Trump deflagrou debates intensos entre analistas sobre suas causas e implicações sobre a democracia nos EUA. Dois cientistas políticos têm recebido grande atenção por terem se não previsto pelo menos antecipado os contornos gerais dos acontecimentos.

O primeiro é Cas Mudde (Universidade da Geórgia), que há quase três décadas estuda a direita radical. Em sua coluna no jornal The Guardian, Mudde argumenta que a invasão reflete a ascensão da extrema direita radical. E cita episódios semelhantes que ocorreram na Alemanha e Holanda.

A direita radical tem sido exitosa porque, embora represente fração pequena da sociedade, explora uma suposta "white victimhood" (vitimização branca), com a complacência da direita não radical, com quem comunga uma visão do mundo à direita, e de setores liberais e da mídia, que não os denunciam; e acabam endossando a ideia de que esse grupo pequeno é "o povo" ou grupos que são deixados para trás e padecem de "ansiedade econômica". Esses grupos temem tornarem-se vítimas dos métodos violentos da turba, o que acaba os levando a não lhes fazer oposição.

Tudo isso faz sentido, mas a questão fundamental não é respondida: por que a direita tradicional teme a turba e passou a agir desse modo? A conclusão de que "chegamos até aqui acima de tudo devido a um longo processo de covardia, falhas e oportunismo míope da direita tradicional" não é um argumento para uma questão complexa, mas uma acusação.

Celso Rocha de Barros* - Golpismo de Trump animou Bolsonaro

- Folha de S. Paulo

Os dois deveriam ser presos por tentativa de golpe de Estado

invasão do Congresso americano por extremistas de direita inspirou uma nova onda de entusiasmo golpista entre os bolsonaristas, que nunca deixaram de ser inimigos da liberdade por terem se vendido ao centrão.

Jair Bolsonaro foi o único chefe de Estado do mundo que apoiou a invasão liderada por milícias racistas, neonazistas e/ou adeptas da teoria da conspiração QAnon. Bolsonaro foi o único chefe de Estado do mundo que apoiou uma manifestação de gente vestindo a camiseta “Camp Auschwitz”. Enquanto a invasão acontecia, Bolsonaro disse que houve fraude na eleição americana (é mentira) e declarou que “se nós não tivermos o voto impresso em 2022, nós vamos ter problema pior que os Estados Unidos”.

As instituições deles são mais fortes do que as nossas. Alguns dias antes da tentativa de golpe, os últimos dez secretários de Defesa americanos (tanto republicanos quanto democratas) assinaram um artigo dizendo que “Os militares americanos não têm nenhum papel na determinação do resultado das eleições americanas”. Nenhum foi ao Twitter reclamar do julgamento do Lula, nenhum virou assessor de Toffoli durante a campanha eleitoral. E sem apoio de militar ou policial, cachorrinho de Olavo não se cria.

Catarina Rochamonte - Trump: a insanidade populista

- Folha de S. Paulo

O inimigo interno, que se beneficia da sociedade livre e plural, está à espreita

Capitólio foi invadido por americanos tomados de furor fanático, o que mostra o estrago causado pelos inimigos internos das democracias, subjugadas em seus próprios territórios por extremismos ideológicos que se tocam e se correspondem na presunção de verdade e na intolerância que vê na sua visão de mundo a única digna de ser defendida, esquecendo-se que a virtude das democracias liberais é o triunfo do pluralismo de ideias e da busca do consenso por argumentação; não por violência ou intimidação.

A aventura autoritária insuflada por Trump não se deveu ao fato de ser ele um político de direita. À direita ou à esquerda, os governantes, quando imbuídos de algum zelo democrático, permitem a alternância de poder sem sabotá-la com narrativas fantasiosas que incitam ódio e revolta. A atitude de Trump deveu-se, antes, a uma loucura ambidestra: o desvario do poder. Tomado por essa loucura, o líder populista constrói narrativas conspiratórias e, sustentado pela massa, vai com ela até onde der.

Bruno Carazza* - O tribunal do Facebook

- Valor Econômico

Decisão de banir Trump é o maior fato político dos últimos tempos

Daron Acemoglu e James Robinson, autores do best-seller Por que as Nações Fracassam?, apresentaram uma hipótese bastante convincente para explicar o subdesenvolvimento econômico de povos e países. De acordo com os professores do MIT e da Universidade de Chicago, a concentração de poder nas mãos de elites política e econômica gera os incentivos institucionais para um ciclo vicioso difícil de ser rompido, em que se os mais ricos extraem renda da população e grupos políticos se perpetuam no poder.

Nos últimos anos, um novo debate tem agitado não apenas a academia, mas principalmente os meios políticos e empresariais, e tem a ver não diretamente com o funcionamento dessas engrenagens descritas com farta evidência empírica pelas pesquisas de Acemoglu & Robinson, mas com esse jogo de interação entre variáveis econômicas e políticas. Trata-se do incontrolável poder de influência das gigantes de tecnologia em nossas vidas.

Segundo levantamento do Global Digital Overview 2020, 5,2 bilhões de pessoas possuem celular, o que representa quase 70% da população mundial. 4,5 bilhões de terráqueos têm acesso à internet (59%) e 3,8 bilhões têm contas em redes sociais - praticamente a metade dos habitantes do planeta.

Além da ampla penetração, estamos cada vez mais conectados à rede. Em janeiro de 2020, as pessoas de 16 a 64 anos passavam em média 6 horas e 43 minutos por dia utilizando a internet. No caso brasileiro, estamos em terceiro lugar do ranking global, atrás apenas dos filipinos e dos sul-africanos. Em média, passávamos 9 horas e 17 minutos de frente para a tela - índice que deve ter aumentado ainda mais desde o início da pandemia.

As redes sociais nos fisgaram oferecendo tudo ao alcance de poucos cliques: a interação com familiares e amigos, a oportunidade de nos divertir e ler notícias de vários canais e até mesmo a possibilidade de participar de debates políticos num alcance nunca antes imaginado.

Sergio Lamucci - Problemas à vista na relação com os EUA

- Valor Econômico

Governo brasileiro não fez nenhum gesto para se aproximar de Biden

A menos de dez dias da posse de Joe Biden como presidente dos EUA, o governo de Jair Bolsonaro segue distante da nova administração americana. Não construiu pontes com o novo líder americano, fazendo questão de reafirmar os seus laços com Donald Trump, que se recusa a reconhecer a derrota nas eleições e termina o governo apostando ainda mais na divisão do país, ao ter incitado a invasão do Congresso.

Essas atitudes de Bolsonaro vão dificultar a relação do Brasil com os EUA, por mais que Biden seja visto como um político pragmático. O Brasil ficará ainda mais isolado no cenário externo, enfrentando problemas especialmente por causa da atitude do governo Bolsonaro em relação ao ambiente, que será uma das prioridades do novo presidente americano.

Na semana passada, Bolsonaro voltou a questionar o processo eleitoral dos EUA, afirmando que a causa da crise americana é “basicamente a falta de confiança no voto”. Segundo ele, “lá, o pessoal votou e potencializaram o voto pelos correios por causa da tal da pandemia, e houve gente lá que votou três, quatro vezes, mortos que votaram. Foi uma festa lá. Ninguém pode negar isso daí.” A apoiadores, o presidente disse ainda o Brasil terá “um problema maior que os EUA” em 2022, caso não haja uma mudança no sistema eleitoral por aqui, com o voto impresso.

Bolsonaro usa o exemplo do pleito americano para mais uma vez colocar em xeque a credibilidade das eleições brasileiras, indicando que poderá repetir a estratégia de Trump no ano que vem, se o resultado for desfavorável a ele. O presidente já disse várias vezes que houve fraudes nas eleições de 2018, em que venceu Fernando Haddad (PT) com grande folga. Com essa estratégia, Bolsonaro subordina os interesses do país aos seus interesses pessoais.

O que a mídia pensa: Opiniões / Editoriais

Ano novo com mais pobres – Opinião | O Estado de S. Paulo

Sem o auxílio emergencial e com desemprego ainda muito alto, as famílias pobres – e muito pobres – poderão ter um ano muito penoso.

O Brasil entra em 2021 com cerca de 40 milhões de pessoas na miséria, indisfarçável legado de quase um ano de pandemia e de dois anos de desgoverno. O último balanço oficial, relativo a outubro, apontou 14,06 milhões de famílias em extrema pobreza, isto é, com renda de até R$ 89 por pessoa. Esse contingente, o maior desde 2014, correspondia a 39,99 milhões de pessoas. Os dados são do Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico), elaborado pelo Ministério da Cidadania. As famílias nessa condição eram 13,50 milhões no começo de 2020, antes da pandemia, e 13,07 milhões em janeiro de 2019, início do mandato do presidente Jair Bolsonaro. A covid-19 agravou um quadro já em deterioração.

As condições de emprego já eram muito ruins quando os primeiros casos de covid-19 foram identificados no Brasil. No trimestre encerrado em fevereiro de 2020 estavam desocupados 12,3 milhões de trabalhadores, número correspondente a 11,6% da força de trabalho. A taxa foi pouco inferior à de um ano antes, de 12,4%.

Em 12 meses o novo governo havia sido incapaz de movimentar a economia e de expandir as oportunidades de ocupação, apesar do apoio manifestado pelo setor empresarial. O primeiro ano se encerrou com crescimento econômico de apenas 1,6%, inferior ao de 2018, embora o presidente Michel Temer tivesse encontrado enormes dificuldades no final de seu mandato.

As famílias em extrema pobreza identificadas em outubro eram 47% do total. Na faixa seguinte, com renda per capita de R$ 89,01 a R$ 178, havia 2,9 milhões, ou 10% das famílias. Na faixa seguinte, com renda de R$ 178,01 a meio salário mínimo, estavam 21%, ou 6,3 milhões. Na faixa seguinte, com ganho pessoal acima de meio salário mínimo, ainda se poderia encontrar um grande número em condições muito modestas.

Poesia | Fernando Pessoa - Poema em linha reta

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das
etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.