Política e cultura, segundo uma opção democrática, constitucionalista, reformista, plural.
quarta-feira, 27 de janeiro de 2021
Merval Pereira - Indigestão cívica
Elio Gaspari - Fora Bolsonaro, para quê?
Mourão
é apenas vinho da mesma pipa da safra de 2018
Por
estranho que pareça, o grito de guerra “Fora Bolsonaro” é falta de agenda, como
era falta de agenda o “Fora Temer”. O governo do capitão é desastroso no varejo
e no atacado. Diante de uma pandemia, todas as suas ideias e iniciativas
estavam erradas. Sua “nova política” aninhou-se no Centrão, o Brasil virou um
pária. A tragédia do Amazonas mostrou que o pelotão palaciano gosta de ficar
zangado; com João Doria, com a Pfizer, com a China e com quem disser que eles
não sabem trabalhar. Mesmo assim, o capitão chegou ao Planalto pela vontade de
57,8 milhões de eleitores, e a Constituição diz que pode ficar lá até o dia 1º
de janeiro de 2023.
O
grito de “Fora Bolsonaro” é falta de agenda porque não tem base nem propósito.
Não tem base parlamentar, e isso foi informado pela senadora Simone Tebet. Não
tem base popular porque 28% dos entrevistados pelo Datafolha ainda acham que
ele está fazendo o certo no combate à Covid. Sua popularidade está derretendo.
O capitão é rejeitado por 40%, mas ainda tem o apoio de 31%. Admitindo que a
velocidade desse desgaste prossiga, em um mês ele ainda terá 25% de
admiradores.
No mundo dos sonhos de quem grita “Fora Bolsonaro”, se ele for embora, as coisas melhoram. Se isso acontecer, para a cadeira vai o general Hamilton Mourão. Ele é um vice singular. Nada tem a ver com seus antecessores que foram catapultados à cadeira de presidente. Michel Temer e Itamar Franco tinham identidades políticas. Mourão é apenas vinho da mesma pipa da safra de 2018. Foi escolhido numa reunião matutina porque o príncipe de Orleans e Bragança achou que ainda se vivia no Império. Itamar fez discretos acenos à oposição. Temer chegou a anunciar um plano de governo. Para o bem ou para o mal, o general tem sido um fiel comandado do capitão.
Rosângela Bittar - Com as mãos ao alto
A
capitulação da Câmara significa muito mais do que engavetar o impeachment
As
lideranças políticas estão a cinco dias da rendição ao presidente Jair
Bolsonaro, o que se consumará ao elegerem o novo comando do Poder
Legislativo. A confirmarem-se as prévias, estarão os parlamentares promovendo
sua incorporação às vilanias do governo. Tiremos desta grave onda de
cumplicidade o Senado, onde a extremada independência de cada um supera
qualquer imposição de compromissos da cúpula.
Na
Câmara, porém, é outra a essência do poder. As indicações de insidiosa
conspiração parlamentar fazem o favoritismo do candidato Arthur Lira,
patrocinado por Bolsonaro com todas as garantias de sucesso. Inclusive os
habituais objetos da feira de trocas de favores, avançando pela coação em casos
de resistência.
À população, traída, resta levantar as mãos ao alto enquanto alimenta a esperança de reversão do golpe legislativo, pela traição. Embora o momento exija coragem e não esta covardia marota, os deputados, em maioria, estão levando na displicência esta grave iminência de desastre político.
Como
se fosse natural, os brasileiros amanhecem o dia temendo a morte, que já levou
220 mil cidadãos por idiossincrasias, crendices e incompetência do governo. Têm
crescido os protestos de rua e manifestos propondo o impedimento do
presidente. Crimes de responsabilidade foram cometidos, sobretudo na
gestão da crise sanitária mundial. O País tinha, até agora, no Judiciário e no
Legislativo, sua fresta de oxigênio.
Mas a Câmara parece disposta a sujeitar-se e debandar. Sem ter consciência de que está prestes, inclusive, a referendar o projeto de reeleição de Jair Bolsonaro para continuar o desgoverno que vem liderando.
A capitulação da Câmara significa muito mais do que engavetar o impeachment. O compromisso inclui a aprovação de políticas contrárias aos interesses da população.
Luiz Felipe D’Ávila - Três medidas para enfrentar o populismo
Para
derrotá-lo, a união do centro em torno de propostas factíveis e um candidato
competitivo
A
democracia necessita de civilidade, instituições e lideranças exemplares para
prosperar. Os valores e princípios que moldaram o florescimento da liberdade,
do Estado de Direito, da igualdade de oportunidades e da criação de riqueza por
meio da economia de mercado livraram milhões de pessoas de três males que
acometeram a humanidade durante séculos: a tirania, a miséria e a barbárie.
Mas
as democracias não são perfeitas. Elas enfrentam crises que as obrigam a rever
crenças, valores e leis. Nos Estados Unidos, a escravidão era um direito
constitucional no século 18, mas foi abolida na segunda no século 19. O apartheid racial
só foi sepultado em 1964, quando se aprovou a Lei dos Direitos Civis. Em 2008
os americanos elegeram Barack Obama, o primeiro presidente negro do País.
Crises
costumam liberar os glóbulos brancos das democracias, permitindo que elas
evoluam de maneira gradual para adaptar as instituições, as leis e os costumes
aos novos tempos. A democracia norte-americana deve sair mais forte da era
Trump. O presidente que dizimou a civilidade na política e buscou destruir a
credibilidade das instituições foi expurgado do poder pelos eleitores. O
Partido Republicano, que agiu de maneira oportunista e abandonou suas bandeiras
para surfar no populismo de Trump, foi dilacerado. As fissuras internas entre a
ala histórica e os trumpistas demandarão um penoso esforço para desintoxicar o
partido do populismo e resgatar seus valores e ideais. A intolerância e o ódio
desencadeados pelo populismo acirraram a divisão política, econômica e social,
obrigando os Estados Unidos a enfrentar os reais problemas: a questão racial, a
crescente desigualdade de oportunidades e a raivosa política de identidade que
minou a civilidade e a tolerância no País.
Joe Biden assumiu a presidência dos Estados Unidos prometendo restaurar a decência na política. Não há missão mais importante neste momento. Restaurar a decência significa respeitar a Constituição, as leis e as instituições, e não se sublevar contra elas quando as decisões não nos agradam. Implica honrar o mandato, travando o debate político no âmbito das regras do jogo, da civilidade e da cordialidade, e repudiando os atalhos do ódio e da intolerância, que esgarçam a confiança na democracia. Requer esclarecer a opinião pública e ter a coragem de frustrar alguns eleitores para defender os interesses da nação e das futuras gerações.
Fábio Alves – Perdendo o bonde
Brasil está perdendo o bonde do crescimento acelerado da economia global
É
cada vez maior o número de fundos de investimentos nacionais que está alocando
uma parcela grande de suas carteiras em ativos no exterior, diante da percepção
de que o Brasil está perdendo o bonde da elevada liquidez
internacional, dos estímulos fiscais em países desenvolvidos e do maior
otimismo com o crescimento acelerado da economia global em 2021.
Por
enquanto, se esses gestores nacionais ainda não migraram em massa para posições
apostando na derrocada de ativos domésticos, muitos deles reduziram
significativamente a tomada de risco no Brasil, deixando de aproveitar uma
possível alta da Bolsa brasileira ou valorização do câmbio.
Ou seja, os ativos brasileiros estão ficando para trás e podem não aproveitar o
vento a favor dos mercados globais.
Na semana passada, por exemplo, o Ibovespa caiu 2,47%, acumulando uma perda de 6,25% em apenas duas semanas. Enquanto isso, os índices das principais Bolsas americanas renovaram recordes históricos de alta no período, com o S&P 500 subindo 1,94% na semana e o Nasdaq saltando 4,19%. Já o dólar valorizou-se 3,30% na semana passada, elevando os ganhos a quase 6% em apenas 22 dias de janeiro e deixando o real brasileiro como a moeda com pior desempenho entre as emergentes.
Antonio Corrêa de Lacerda* - Governo Biden e o programa econômico Buy American
Lição
para o Brasil é de que não se deve abrir mão dos próprios interesses em prol de
aparente modernidade
O
novo governo dos EUA, de Joe Biden,
deve implementar um programa já anunciado na sua campanha que visa a promover a
compra de produtos de origem local. O Buy American não é propriamente
novo, já fora implementado em vários outros governos, tanto de republicanos
como de democratas.
O
programa tem um impacto econômico expressivo. São cerca de US$ 400 bilhões de
compras do governo federal, montante que pode ser significativamente ampliado
para alguns trilhões, se vier acompanhado de investimentos voltados para
combater os efeitos da crise da pandemia. Uma vez adotado, terá impactos
significativos, considerando seu efeito multiplicador para a atividade
econômica como um todo e a geração de empregos.
A iniciativa é acompanhada de perto pelos parceiros comerciais dos EUA, pois na prática poderá significar restrições de acesso de exportadores ao mercado. Na verdade, embora haja limitações de restrição de mercados anteriormente assumidas pelos norte-americanos na Organização Mundial do Comércio (OMC), sempre há brechas para a adoção de alguma forma de protecionismo.
Roberto DaMatta* - Furando as bichas e outros bichos...
Os
'grandes' jamais entram em fila porque todos conhecem seus privilégios. Eles
sempre são os primeiros a ter o privilégio de furar todas as bichas (filas)
Tendo
sido caluniado como homofóbico por um ator, devo explicar o meu título.
No
livro Fila e Democracia (Rocco, publicado em 2017), escrito com
Alberto Junqueira, explicamos que “bicha” é um sinônimo para um aglomerado em
fileira, tal como revela a morfologia das cobras e dos vermes. Nas democracias,
é normal enfileirar-se; no Brasil, porém, a “bicha” é sinal de inferioridade.
“Tenho que entrar numa fila!”, reclamamos reveladoramente.
Os
“grandes” jamais entram em fila porque todos conhecem seus privilégios. Eles
sempre são os primeiros a ter o privilégio de furar todas as bichas (filas).
Aristocratas não esperam. A reunião só começa quando eles chegam. Eles são a
cereja do evento social.
Sem
tempo a perder com inferiores (tal como aconteceu comigo numa reitoria,
conforme relato no meu recém-publicado Você Sabe Com Quem Está Falando?:
Estudos Sobre o Autoritarismo Brasileiro), esses velhacos têm todo o tempo para
a nobre arte de coçar o saco ou de “ficar sem fazer nada”...
Do alto dos seus cargos, eles só olham para nós, os comuns (sujeitos da “gripezinha”), quando precisam. Afora isso, sabemos que esperar, obedecer e servir definem subordinação. Os criados correm; aos superiores cabe o privilégio de serem lentamente servidos. Se furamos todas as filas, pois furar e desobedecer são sinais de superioridade, como esperar por uma vacina que confirma o horror: o fato de que, quando chega a nossa vez, o que queremos acabou?
Luiz Carlos Azedo - A vacina dos camarotes
A
política de saúde pública de Bolsonaro, por exemplo, é inspirada na Lei de
Murici: “Cada um sabe de si”, a máxima do coronel Pedro Tamarindo na debandada
da terceira campanha de Canudos
Uma
das características da pandemia de coronavírus, que certamente será objeto de
muitos estudos e pesquisas, é a desigualdade social escancarada que nos revela.
A cortina foi rasgada pelo auxílio emergencial: a iniquidade chegava a 56
milhões de pessoas, dos quais 2,6 milhões em São Paulo e 1,6 milhão no Rio de
Janeiro, cidades ícones do Sul Maravilha, segundo dados do Portal da
Transparência de junho do ano passado. O número de “invisíveis” dependentes dos
recursos governamentais ultrapassava meio milhão de pessoas em Salvador (762
mil), Fortaleza (747), Manaus (634 mil) e, pasmem, Brasília (562 mil). No time
das 10 cidades com maior número de “flagelados” da crise sanitária, constavam,
também, Belo Horizonte (494 mil), Belém (453 mil), Recife (420 mil) e Curitiba
(339 mil).
Vejam bem, não estamos falando do Brasil profundo, mas das principais cidades brasileiras, que lideram o nosso desenvolvimento econômico e social, os principais polos da transição do Brasil rural para o urbano, na marcha forçada do nosso modelo nacional-desenvolvimentista. Esse processo melhorou a vida das pessoas da porta para dentro, principalmente da classe média. Entretanto, o crescimento acelerado das cidades deteriorou as condições urbanas e deixou ao abandono a vida banal das periferias e morros, degradando a vida coletiva da porta para fora. Principalmente depois do Plano Real, a economia informal e o empreendedorismo mascararam a gravidade do problema, mitigado, ainda, pelo programa Bolsa família, até que veio a recessão provocada pela pandemia, que destruiu empregos e também provocou um “apagão” de capital.
Ricardo Noblat - A dieta de um governo viciado em leite condensado
Enquanto
isso, o Programa Carro-Pipa...
Ex-usuário
de cloroquina, droga que até hoje prescreve para quem queira se curar da
Covid-19, o presidente Jair Bolsonaro nunca escondeu sua dependência do leite
condensado, engolido a seco ou na companhia de um pedaço de pão. Já correu
atrás de uma ema com uma caixa de cloroquina na mão. Costuma fartar-se de leite
condensado durante encontros com os filhos.
Os
gastos com a cloroquina foram jogados na sua conta e ele não reclamou. Pelo
contrário: assumiu a paternidade dos milhões de doses produzidas às carreiras
pelo Exército e distribuídos em todo o país. Quanto aos gastos com leite
condensado, que segundo o site Metrópoles ultrapassaram
no ano passado a casa dos R$ 15 milhões, Bolsonaro preferiu jogar na conta das
Forças Armadas.
É
a lei da compensação. Há mais de 3 mil militares em posições de destaque no
governo. Nem na época da ditadura de 64 foram tantos. Em compensação… São
obrigados a socorrer o presidente da República sempre que ele se vê em apuros.
Foi o que fez o general Fernando Azevedo e Silva, ministro da Defesa: matou no
peito e chutou a bola para fora da grande área.
Com base no Painel de Compras do Ministério da Economia, Metrópoles mostrou que em 2020 todos os órgãos do governo pagaram, juntos, mais de R$ 1, bilhão em alimentos, um aumento de 20% em relação a 2019. Fora o arroz, feijão, carne, batata frita e salada, houve espaço no carrinho para geleia de mocotó, pão de queijo, pizza, vinho, bombom, chantilly, sagu e até chiclete.
Hélio Schwartsman - Pacto com o diabo
O
diabo é que a realidade nunca se ajusta a nossas narrativas ideológicas
Um
ideólogo em busca de um argumento não hesita nem em fazer pacto com o diabo.
Durante décadas, a direita “laissez-faire” apontava a Suécia como uma espécie
de capeta estatizado. O país, afinal, era o paradigma das social-democracias
europeias, caracterizadas por governos grandes, por vezes intrusivos, altas
cargas tributárias e generosos programas sociais cheios de regulações.
Depois
da Covid-19, tudo mudou. A Suécia, muito por causa da influência e do prestígio
de seu epidemiologista-chefe, Anders Tegnell, decidiu tomar um caminho
diferente do da maioria dos vizinhos. Não
determinou nenhum isolamento obrigatório, e quase todas as
atividades foram mantidas. Apenas recomendou que todos fossem responsáveis.
Bruno Boghossian – Sociedade ilimitada
Investigação contra Pazuello amarra Bolsonaro e militares até o fim
Em
momentos críticos, Jair Bolsonaro tenta se agarrar aos militares para
sobreviver. Quando o Supremo estava em seu encalço, em abril do ano passado, o
presidente protagonizou
uma manifestação golpista na porta do quartel-general do Exército.
Agora, acuado pela crise do coronavírus, ele busca refúgio mais uma vez nas
Forças Armadas.
Na
segunda (18), Bolsonaro quis desviar o foco de seus fracassos na pandemia com a
conhecida pregação de que homens de farda decidem
se um povo viverá numa ditadura. "Nós, militares, somos o último
obstáculo para o socialismo", disse. Dias depois, ele apresentou a
Aeronáutica como parceira no fornecimento de oxigênio para uma Manaus asfixiada
pela negligência oficial.
Em busca de proteção, Bolsonaro transformou os militares em sócios paritários do desastre nacional ao mandar Eduardo Pazuello para a cadeira de ministro da Saúde. A abertura de uma investigação no STF sobre a omissão do general na pandemia torna esse vínculo irreversível.
Ruy Castro - Novos xingamentos contra Bolsonaro
A
pecha de corruptor, covarde e traidor se junta às outras para definir o pior
presidente do país
Desde
sua posse, Jair Bolsonaro já foi chamado de cretino, grosseiro, despreparado,
irresponsável, omisso, analfabeto, homófobo, mentiroso, escatológico, cínico,
arrogante, desequilibrado, demente, incendiário, torturador, golpista, racista,
fascista, nazista, xenófobo, miliciano, criminoso, psicopata e genocida. Os
autores dessas desqualificações são cidadãos comuns que escrevem mensagens para
os jornais, produzem memes e entopem as redes sociais. Está tudo registrado e
seria divertido ver o governo processar tal multidão.
Nenhum
outro governante brasileiro foi agraciado com tantos epítetos, a provar que a
língua é rica o bastante para definir o pior presidente da história do país.
Mas é inútil, porque nada ofende Bolsonaro. Ele se identifica com cada desaforo.
Afinal, foi quem rebaixou o Brasil ao nível de estrebaria de quartel, ao inundar os lares com um vídeo sobre golden shower, chamar um jornalista para a briga (“Minha vontade é encher a sua boca de porrada!”) e ejacular mais palavrões numa reunião ministerial do que em todas as reuniões ministeriais somadas desde 1889.
Fernando Exman - Obstáculos à proposta de autonomia do BC
Agenda
liberal terá novo desafio a partir de fevereiro
A
agenda liberal da equipe econômica passará em fevereiro por um novo teste de
estresse, para usar um termo familiar aos agentes do mercado e também ao Banco
Central - interessado direto no assunto.
Tão
logo seja definida a sucessão de Rodrigo Maia (DEM-RJ) na presidência da Câmara
dos Deputados, haverá mais clareza em relação ao futuro do projeto que dá
autonomia formal ao BC. Ele é visto como prioridade pela equipe econômica e o
próprio presidente Jair Bolsonaro apoiou em público a iniciativa quando seu
mandato chegou ao centésimo dia. Na ocasião, inclusive, enviou seu próprio
projeto à Câmara. Era um tempo em que a ala liberal do governo tinha mais
prestígio.
O
problema é que a proposta nunca foi popular na ala desenvolvimentista, que vem
dando sinais diários de força, e ela acabará sendo debatida em meio a um
cenário de possível alta de juros. Isso coloca um novo ingrediente na
discussão, que corre o risco de se tornar mais passional. O ambiente já está
acirrado. No Brasil de hoje, enquanto os efeitos devastadores da crise
continuam presentes no dia a dia do cidadão, as forças políticas têm preferido
usar até seringas e vacinas para inocular o vírus da politização e dividir a
população.
Num
contexto como este, ganha sempre aquele que prefere interditar o diálogo. A
visita de um presidente do BC ao Palácio do Planalto em dia de reunião do Copom
pode acabar gerando críticas à autoridade monetária, embora esse tipo de
encontro tenha ocorrido em outras gestões da mesmíssima maneira.
A tramitação da proposta se dará ao ritmo da batuta do novo presidente da Casa, o grande responsável pela definição da pauta, mas não terá como avançar se o governo não incentivá-la com assertividade.
Cristiano Romero - No reino das estatais
Com
tantos assuntos mais prementes, é difícil entender por que as privatizações são
o tema que gera as discussões mais acaloradas
Não
há tema que provoque discussões mais acaloradas neste país do que o das
privatizações. É difícil entender o porquê, uma vez que existem dezenas de
assuntos muito mais prementes. Aliás, basta fazer esta afirmação para que o
interlocutor imediatamente nos acuse de ter interesses escusos.
Seria
desnecessário citar as mazelas nacionais que demandam enfrentamento urgente,
uma vez que todos as conhecemos, afinal, elas integram a paisagem nacional
desde sempre - entre outras, o racismo estrutural, a extrema violência
decorrente dessa chaga secular, a desigualdade de renda, a discriminação contra
mulheres, LGBT, indígenas, pobres, nordestinos e imigrantes de países não
europeus, a concentração de renda, a baixíssima qualidade do ensino básico e
fundamental prestado por escolas públicas, a apropriação do orçamento público
por grupos de interesse específico e a falta de saneamento básico para a
maioria da população.
Empresas
estatais parecem povoar o "inconsciente coletivo" do brasileiro,
tamanha é a sensibilidade da discussão sobre o status quo nessa área. No
entanto, sabemos que é falsa a ideia de que a maioria dos 210 milhões de
brasileiros seja favorável à manutenção do modelo estatal que começou a ser
erigido na década de 1930 e atingiu o ápice na década de 1970, decaiu depois em
consequência da falência do modelo estatizante evidenciada pela crise da dívida
em 1982 e voltou a crescer durante os dois governos do PT (de 2003 a 2016).
Como a Ilha de Vera Cruz é repleta de contradições, Dilma Rousseff (PT), presidente mais afeita ao estatismo desde a redemocratização, privatizou os maiores aeroportos, em meio a protestos de sindicatos ligados a seu partido e à estatal Infraero. Registre-se, também, que a presidente teve coragem de levar ao Congresso e aprovar o projeto de lei que criou o Funpresp, o fundo de pensão dos funcionários públicos federais, iniciativa que, finalmente, regulamentou a reforma da Previdência aprovada em 2003, destinada a igualar as regras de aposentadoria do funcionalismo com as do INSS.
Nilson Teixeira - Retomada forte é improvável
É
provável o início de um ciclo de aperto monetário ainda neste semestre, quiçá
neste trimestre
A
restrição fiscal torna improvável que o consumo do governo cresça muito neste
ano. Ao mesmo tempo, a limitada abertura comercial do país e as exportações
mais concentradas em commodities indicam uma atividade no curto prazo menos
elástica ao aumento da demanda global. Assim, as exportações líquidas
dificilmente crescerão o suficiente para estimular muito a economia em 2021, a
não ser pelo efeito-base positivo.
O
comunicado e a ata da reunião de janeiro do Copom retiraram a orientação sobre
a estabilidade da taxa Selic por um período mais longo e indicaram riscos
inflacionários mais significativos do que os assinalados anteriormente. Isso
elevou a probabilidade do início de um ciclo de aperto monetário ainda neste
semestre, quiçá neste trimestre. Um aumento de juros desaceleraria a atividade,
ainda mais se o ciclo for concentrado neste ano, mesmo se inferior aos 600
pontos base apreçados na curva de juros até o fim de 2022.
Em um contexto de dúvidas sobre a implementação de ajustes na economia, uma alta da taxa Selic dificultaria um recuo relevante dos juros mais longos, mantendo alto o custo dos investimentos. A elevada capacidade ociosa na economia, o início claudicante da vacinação e os repetidos atritos políticos reforçam a percepção de que é improvável o início de um vigoroso ciclo de investimentos.
Zuenir Ventura - A crise e o culpado
O
responsável é quem escolheu Pazuello
Pouco
antes de o procurador-geral da República, Augusto Aras, solicitar ao STF — e
conseguir — a abertura de inquérito para apurar a conduta de Eduardo Pazuello
durante a crise da saúde no Amazonas, o próprio ministro da Saúde embarcava
para Manaus para “ficar o tempo que for necessário”, sem previsão de “voo de
volta”.
Enquanto
isso, movimentos de direita e esquerda saíam às ruas de 18 capitais, apoiando a
vacinação e pedindo o impeachment de Bolsonaro, que respondeu com ironia: “Vi
uma carreata monstro de uns dez carros”. Na verdade, ele viu mal. Em São Paulo,
a fila de carros na Avenida Paulista era de perder de vista e, no Rio, a
carreata formava uma fila de quatro quilômetros de automóveis, motos e
bicicletas.
Os protestos aconteceram num momento desfavorável para Bolsonaro, em que a sua popularidade está em queda. Duas recentes pesquisas do Datafolha justificam o mau humor que atrapalhou sua visão. Uma aponta o aumento dos descontentes: 40% da população avaliam sua atuação como ruim ou péssima, ao contrário dos 32% da edição anterior da sondagem, no começo de dezembro.
Míriam Leitão - O confuso caso da vacina particular
As
empresas que não quiseram participar da compra das vacinas ficaram preocupadas
com o preço. Se aceitassem seguir com a ideia, iriam inflacionar o produto,
porque ele custa cinco vezes mais do que o valor pelo qual a AstraZeneca está
negociando. O outro motivo do racha é que algumas companhias queriam doar
integralmente. O objetivo era ajudar o SUS neste momento de crise de
suprimento. E existem problemas legais.
Há
outras divisões, segundo empresários. A iniciativa corre o risco de ficar
governista demais, até porque o presidente da Fiesp, Paulo Skaf, quer tomar a
frente.
—
O Skaf está totalmente alinhado com o governo, que politizou muito essa questão
e nosso interesse era ajudar o Brasil — me disse um deles, falando do seu
desconforto.
Ontem,
depois que o plano deu sinais de fracasso, Skaf disse que as empresas só
comprariam o que não fosse oferecido ao governo. O fato é que existem outros
movimentos de empresários agindo de forma mais discreta e com mais interesse
público neste momento de crise aguda. O objetivo é ter todos os grupos
prioritários vacinados até agosto. Mas gostariam de duas coisas.
— Não queremos entrar na briga política e não queremos passar a ideia de que estamos fazendo isso para proteger apenas nossos funcionários, numa espécie de grande fura-fila. O preço complicou ainda mais porque estaríamos inflacionando a vacina e legitimando intermediários que desconhecemos. Além disso, a Europa está tendo problemas para receber essas vacinas — disse um dos executivos cuja empresa saiu do grupo.
Ligia Bahia -Poucas vacinas na mão
Num
contexto de esforços para o acesso universal, pega muito mal comprar um lote
particular com valores sujeitos a ágio
Primeiro,
a boa notícia. Os resultados de estudos realizados em Israel, que já vacinou
75% dos idosos e 25% da população, evidenciam que a chance para teste positivo
para Covid-19 é muito menor entre os imunizados. O impacto positivo da
vacinação permite prever a redução das internações e mortes. Ainda é cedo para
prever a eficácia na prevenção da infecção. Vai demorar para determinar se as
pessoas vacinadas deixam de transmitir o vírus, mas já dá para comemorar. A
segunda informação é que foram detectadas variantes (mutações) do agente
biológico que causa a doença, inclusive no Brasil. Há evidências de que as
vacinas conseguem atuar sobre essas linhagens. Mas o país ainda conta com
poucas vacinas e doses. A vacina funciona. Porém atrasos de entrega e escassez
são obstáculos para o recuo da transmissão.
O Brasil tem duas vacinas e distribuiu 8, 8 milhões de doses (6,8milhões pelo Butantan e 2 milhões pela Fiocruz). Cada pessoa necessita de duas doses, e os produtos distintos não admitem intercâmbio. É possível alongar para três meses o tempo entre o recebimento da primeira e da segunda dose da vacina denominada Oxford-AstraZeneca. Incertezas sobre prazos e quantidades a ser entregues ocorrem em todo o mundo. Mas aqui estamos fazendo as contas de trás para frente. O rateio para estados e municípios, a cada remessa de cada vacina, impede a elaboração de um cronograma e a distribuição racional de cada vacina.
O que a mídia pensa: Opiniões / Editoriais
Para
o País que trabalha e produz, está claro que não se deve contar com um governo
que não existe mais, se é que algum dia existiu
A palavra do presidente Jair Bolsonaro não vale nada. Diz algo num dia para desmentir suas próprias declarações no dia seguinte, desmoralizando-se como chefe de governo. Bolsonaro tornou-se sinônimo de caos – sua especialidade desde que aprontava como militar indisciplinado.
A
rigor, sua gestão nem pode mais ser chamada de “governo”, pois um governo
presume alguma direção, projetos claros e liderança política razoavelmente
sólida. Bolsonaro não inspira nada disso: é, ao contrário, fonte de permanente
inquietação e desorganização.
Para
o País que trabalha e produz, está claro que não se deve contar com um governo
que não existe mais, se é que algum dia existiu. Pior: é preciso encontrar
maneiras de defender a vida e o patrimônio da dilapidação institucional e
administrativa promovida pelo bolsonarismo.
Raros
são os ministros de Bolsonaro que se salvam. A mediocridade é tamanha que o
País aplaude quando um ministro não faz mais que sua obrigação e não atrapalha
seu setor. Em áreas estratégicas, como Educação, Saúde, Meio Ambiente e
Relações Exteriores, há mais do que simples incapacidade: Bolsonaro colocou ali
ministros cuja missão parece ser a de ajudá-lo a vandalizar o Brasil.
De
vez em quando, alguém lembra do dever de chamar esses sabotadores à
responsabilidade. Atendendo a uma representação do partido Cidadania, que acusa
o almoxarife que comanda a Saúde, Eduardo Pazuello, de omissão diante da crise
de desabastecimento de oxigênio para doentes de covid-19 em Manaus, a
Procuradoria-Geral da República requereu ao Supremo Tribunal Federal (STF) a
instauração de inquérito.
Não deve ter sido fácil para o procurador-geral da República, Augusto Aras, fazer o requerimento, mas, premido pela indignação nacional, decidiu afinal tomar alguma providência, e o ministro do STF Ricardo Lewandowski rapidamente atendeu ao pedido de inquérito.
Poesia | Charles Baudelaire - Embriaguem-se
É preciso estar sempre embriagado. Aí está: eis a única questão. Para não sentirem o fardo horrível do Tempo que verga e inclina para a terra, é preciso que se embriaguem sem descanso.
Com quê? Com vinho, poesia ou virtude, a escolher. Mas embriaguem-se.
E se, porventura, nos degraus de um palácio, sobre a relva verde de um fosso, na solidão morna do quarto, a embriaguez diminuir ou desaparecer quando você acordar, pergunte ao vento, à vaga, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo que flui, a tudo que geme, a tudo que gira, a tudo que canta, a tudo que fala, pergunte que horas são; e o vento, a vaga, a estrela, o pássaro, o relógio responderão: "É hora de embriagar-se!
Para não serem os escravos martirizados do Tempo, embriaguem-se; embriaguem-se sem descanso". Com vinho, poesia ou virtude, a escolher.