terça-feira, 14 de dezembro de 2021

Cristovam Buarque* - "contrarrevolução"

Correio Braziliense

O Brasil atravessa uma contrarrevolução: retrocessos no padrão civilizatório. A eleição de um ministro evangélico para o Supremo Tribunal Federal poderia ser sinal de avanço se o novo ministro tivesse dito que sua escolha era vitória da República laica ao quebrar o predomínio histórico do catolicismo. Mas a comemoração em função de sua denominação religiosa indica passo atrás no que deveria ser um passo à frente.

Quebrar o quase monopólio católico seria um avanço, dividir o Supremo por religião é atraso. Ainda mais se o novo ministro servir para compor aliança contra as outras denominações que compõem o imaginário religioso brasileiro: as matrizes africanas, o judaísmo, o islamismo, o budismo e o pensamento ateu. Um ministro evangélico não ameaça conquistas, mas reconhecer que se fez ministro por ser "terrivelmente evangélico", e não por ser "terrivelmente jurista" pode indicar parte de uma contrarrevolução em marcha.

Merval Pereira - Guerra de narrativas

O Globo

A verdade, como definiu o austríaco Karl Popper, é inalcançável, o mais perto que se chegue dela é insuficiente. Mas é possível saber quando se apresenta o falso. Outro dia, Ruy Castro escreveu sobre a mudança no sentido das palavras nos dias de hoje, e a mais política delas é “narrativa”, que ganhou a conotação de uma versão falsa sobre determinado assunto. Pois estamos em meio a uma guerra de narrativas na disputa presidencial, que se tornará cada vez mais acirrada à medida que a campanha eleitoral acelere.

Os três candidatos que aparecem à frente nas pesquisas de opinião —Lula, Bolsonaro e Sergio Moro — estão envolvidos nos mesmos episódios históricos que serão determinantes na decisão do eleitor, e as narrativas se sucedem, às vezes coincidentes entre dois deles, para tentar desmoralizar o adversário, às vezes disparatadas entre si.

Carlos Andreazza - O pouso alegre dos Pachecos

O Globo

Deu neste GLOBO, no último sábado, em reportagem de Patrik Camporez: “Retomada da execução do orçamento secreto privilegia aliados do governo e do Congresso”.

Era só o que a cúpula do Parlamento e o Planalto, mas sobretudo a dupla Rodrigo Pacheco e Arthur Lira, buscavam com, respectivamente, o ato e o decreto que propuseram ao Supremo, ambos com a declarada — e falsa — intenção de dar transparência às emendas do relator: garantir a circulação discricionária dos dinheiros já empenhados no Orçamento de 2021 e assegurar que a máquina do orçamento secreto gire no ano eleitoral de 2022. Conseguiram, os senhores do orçamento público.

Com todos os olhares presos ao debate sobre transparência no manejo desses recursos orçamentários, transparência prometida para futuro vago, e dificultada relativamente ao passado, afinal formalizado o conceito público da meia transparência, passou despercebida a dimensão autocrática da emenda do relator, que distribui bilhões ao arrepio da equitatividade — para uns, porque votam comigo, e não para os outros.

Míriam Leitão - A truculência do ataque à imprensa

O Globo

Não é normal nem aceitável que um brutamontes, ostentando uma arma no coldre, ameace bater em jornalistas porque eles estão tentando entrevistar o presidente da República. Não é normal nem aceitável que uma repórter seja agarrada pelo pescoço por um segurança presidencial, naquele golpe chamado “mata-leão”. São servidores com salários pagos com os nossos impostos e só estão em torno de Jair Bolsonaro em atos de campanha antecipada porque ele exerce a Presidência. Proteger o presidente não é o mesmo que atacar os jornalistas. E os seguranças têm essa liberdade porque são estimulados pela violência do próprio presidente da República.

Vai começar um ano tenso, em que Bolsonaro vai escalar as agressões, porque ele é assim e porque ele está em desvantagem nas intenções de voto. Já sabemos que usará a encenação de valentia contra repórteres desarmados para animar os seus seguidores mais destemperados.

Zuenir Ventura - As agressões e os prêmios

O Globo

Equipes da TV Aratu, afiliada do SBT, e da TV Bahia, afiliada da Globo, foram agredidas por seguranças e apoiadores do presidente Jair Bolsonaro neste domingo em Itamaraju, no sul da Bahia, região fortemente atingida pelas chuvas da última semana. O repórter Chico Lopes, da TV Aratu, levou tapa de um funcionário da segurança do presidente. Enquanto ele ameaçava os jornalistas, um apoiador de Bolsonaro furtou o microfone da repórter Camila Marinho, da TV Bahia. Em defesa da colega, Chico reagiu e foi ofendido pelo homem, que, contido por pessoas próximas, seguiu, de longe, proferindo ameaças e ofensas. Bolsonaro chegou a pedir calma ao segurança.

O que há de novo nessas cenas, que repetem um pouco os encontros do presidente com jornalistas — basta lembrar a recente visita a Roma —, é o emprego pela primeira vez do mata-leão, um tipo de estrangulamento usado nas artes marciais japonesas que consiste em imobilizar o oponente pelas costas. Camila Marinho chegou a sofrer o golpe.

Alvaro Costa e Silva – Os reis do garimpo

Folha de S. Paulo

Governo promove farra do garimpo de ouro na Amazônia

Para quem já admitiu que "o garimpo é um vício, está no sangue", o compadre Grota deve ser um herói, merecedor de ocupar a galeria dos maiorais, ao lado do ditador Augusto Pinochet, do torturador Brilhante Ustra e do Major Curió, também torturador e líder garimpeiro.

Compadre Grota é o nome de guerra de Heverton Soares, um dos narcotraficantes —o outro é Silvio Berri Júnior, ex-piloto de avião de Fernandinho Beira-Mar— apontados pela Polícia Federal como chefes de organizações criminosas no Pará e que ganharam do governo o direito de explorar uma área de mais de 810 hectares de garimpo de ouro.

Cristina Serra - Três meninos do Brasil

Folha de S. Paulo

Um país que não protege suas crianças, como as de Belford Roxo, morre com elas

Eles se chamavam Lucas, Alexandre e Fernando Henrique, tinham entre 8 e 11 anos de idade, moravam em Belford Roxo, Baixada Fluminense. No fim de 2020, saíram de casa para jogar bola. Nunca mais voltaram. Quase um ano depois, a polícia informa que eles foram torturados e assassinados por terem furtado dois passarinhos do tio de um traficante.

A história dos três meninos é de um grau tão desmedido de barbárie que é até difícil pensar e escrever sobre ela. Porque dói pensar sobre o Brasil em que Lucas, Alexandre e Fernando Henrique viviam. A brutalidade interrompeu a vida deles num cruzamento entre miséria, desigualdade, violência, crime, abandono, indiferença e tudo o mais que compõe o cenário onde parte da sociedade brasileira, majoritariamente pobre e negra, é largada aos deus-dará. "E se Deus não dá?", pergunta a canção de Chico Buarque.

Robert L. Funk* - O Chile e o problema da nova esquerda

O Estado de S. Paulo.

Uma análise da plataforma eleitoral de Gabriel Boric revela poucos indícios de radicalismo

No calor do debate eleitoral, é comum escutar opositores do candidato presidencial chileno Gabriel Boric acusá-lo de ser “controlado pelos comunistas”. Alguns dizem que, apesar de gostar de Boric pessoalmente, “o problema é quem está em seu entorno”. Esses comentários ressoam uma antiga antipatia contra o Partido Comunista do Chile, permitindo que oponentes classifiquem Boric como um político de extrema esquerda e definam a eleição como uma batalha entre dois extremos.

O curioso dessa dinâmica é que ela tenta colar em Boric políticas e atitudes que claramente não lhe pertencem. Como representante de uma nova esquerda no Chile, Boric tem criticado há muito a centro-esquerda que governou o país por grande parte das três últimas décadas, acusando os políticos desse campo de serem tímidos demais e “neoliberais”. Mas, ao mesmo tempo, Boric também tem se mostrado disposto a questionar a implícita atitude de superioridade moral que emerge de sua geração.

“Há realmente uma impressão na minha geração”, afirmou ele, em 2017, “de que a história começou em 2011. A Frente Ampla deve ter cuidado para manter a política no campo da política, não da moral.”

Como resultado, Boric tem se oposto com frequência a posições que o Partido Comunista sustenta (ou vice-versa) – como a oposição de Boric aos regimes venezuelano, cubano e nicaraguense ou seu apoio ao pacto multipartidário que colocou em marcha a atual Assembleia Constituinte no Chile.

Eliane Cantanhêde - Eleição de 2022 será campeonato de rejeições

O Estado de S. Paulo.

A eleição de 2022 não será para construir horizontes, será para destruir adversários

Foi-se o tempo em que os brasileiros discutiam quem consideravam o melhor candidato, mais experiente, preparado, confiável, honesto e, só de quebra, davam uma estocada nos que não gostavam de jeito nenhum. Agora, os eleitores só criticam, atacam, quando não odeiam. A eleição de 2022 será um campeonato de rejeições.

Esse movimento começou, ou se intensificou, em junho de 2013, com os protestos espontâneos contra tudo e contra todos, embalados pela internet e ao largo dos partidos políticos. A negação da política deu no que deu, mas só piora.

Novas pesquisas deverão confirmar, nesta semana, altos índices de rejeição. O presidente Jair Bolsonaro, por exemplo, teve 59% e foi o campeão nesse quesito no Datafolha de setembro. Tudo é possível, mas é difícil um candidato com esse índice vencer no final.

Ana Carla Abrão - O Brasil não merece a insistência em erros

O Estado de S. Paulo.

O Brasil não merece insistir nos mesmos erros, estejam eles à direita ou à esquerda

Não é de hoje que o Brasil decepciona. Já se vão décadas. Mesmo em períodos em que alguns acreditavam que estávamos a brilhar, embalados pela ilusão do pré-sal e pelo boom dos preços das commodities, falhamos. Desperdiçamos a oportunidade de avançar e nos afundamos na corrupção. Comparados aos nossos pares emergentes, cuja renda per capita cresceu 5,12% entre 2003 e 2011, comemoramos 2,94% de crescimento sem olhar para o lado e ver que o mundo também crescia e, de forma acelerada, nos deixava para trás. Entre 2012 e 2021 a diferença se consolida com a retração de 0,54% do PIB per capita frente aos 3,28% de crescimento nos nossos pares.

Nesse período, apesar do sucesso dos programas de transferência de renda no Brasil, em particular do Bolsa Família, a redução da pobreza foi muito mais intensa nos outros países emergentes, em particular na China, que retirou mais de meio bilhão de chineses da miséria. Nos números da desigualdade, a queda quase contínua que se observa desde o pósreal foi revertida a partir de 2014. Daí em diante só se agravou, com a pá de cal sendo a pandemia, que tornou mais pobres os pobres. Devolvemos o que levamos décadas para, a duras penas, melhorar.

Andrea Jubé - De Médici para Alckmin: apressa-te lentamente

Valor Econômico

Getúlio também ganhou apelido de “chuchu” na eleição

A paciência é uma virtude para poucos. Exercida com sabedoria, pode converter-se em arte, como os afrescos de Giorgio Vasari no Palazzo Vecchio, em Florença.

No século XVI, o duque Cosme I de Médici encomendou a Vasari um mural que representasse seu modo de agir e pensar como governante. O resultado foram tartarugas com velas enfunadas pelo vento sobre suas carapaças.

Os insólitos desenhos estão acompanhados de uma inscrição latina: “festina lente”, atribuída ao imperador Augusto. A tradução é uma contradição: apressa-te lentamente.

A tartaruga simboliza a lentidão e as velas ao vento, a velocidade. Na concepção do duque florentino, esse paradoxo é uma aula de política: o governante deve pensar e refletir antes de agir.

Fabio Graner - Custo do trabalhador está muito baixo no Brasil

Valor Econômico

Pandemia agravou trajetória que já era de queda no país

Mesmo com recuperação neste ano, a mão de obra brasileira ainda está com um custo bem barato em termos históricos. Calculado pelo Banco Central, o chamado Custo Unitário do Trabalho (CUT) fechou outubro em 90,6 pontos. A alta é de 26,3% em 2021, mas está bem abaixo da média histórica (110,1 pontos) e também do período entre 2015 e a pandemia (118,4 pontos), quando esse indicador já teve um ajuste relevante para baixo.

O CUT é um dos elementos de análise do ambiente para as empresas em um país. Seu movimento reflete uma combinação de fatores. Um dos motivos para o indicador seguir abaixo dos seus níveis históricos é a taxa de câmbio, pois ele é calculado em relação ao dólar. A outra razão é a perda de renda de boa parte dos trabalhadores que segue em curso, mesmo parcialmente dissipada neste ano com o arrefecimento da pandemia.

Maria Clara R. M. do Prado - Taxa de câmbio e eleição

Valor Econômico

O ambiente de recessão tende a bater de novo à porta, sendo que agora em um quadro eleitoral que promete emoções

Há consenso de que o país deve vivenciar em 2022 uma das mais tumultuadas eleições majoritárias dos últimos tempos. No cenário político que já se advinha confuso, o preço mais importante a ser acompanhado, com potencial de comprometer ainda mais os fundamentos da economia brasileira, será a taxa de câmbio.

Como qualquer outro preço que se forma a partir das forças do mercado, o valor do real face ao valor das demais moedas fortes, aquelas que detêm o inabalável poder da conversibilidade, tende a seguir em processo de forte desvalorização. Já em princípio, estará contaminado pelo aumento da inflação interna que por sua vez carrega as expectativas da deterioração fiscal em uma fase complicada de interrupção das cadeias de suprimento, além dos altos custos de produção provocados em boa parte, justamente, pela perda do poder de troca cambial do real desde o início da pandemia.

O que pensa a mídia - Editoriais / Opiniões

EDITORIAIS

Passaporte forçado

Folha de S. Paulo

Medida contra a Covid é correta, mas vem do STF em meio a tensão com Bolsonaro

Jair Bolsonaro esperneou a fim de evitar que seu governo exigisse certificado de vacinação de viajantes que pretendam entrar no Brasil. Vociferou contra o dito passaporte, que chamou de "coleira", e mais uma vez contestou os benefícios da imunização contra a Covid-19.

Dedicou-se, como de hábito, a atacar princípios de razão, prudência e boa administração. Acabou sendo vencido duas vezes.

Pressionado pelos próprios ministros, permitiu a edição de uma portaria que exige testes negativos e certificados de vacinação de quem viaje para o Brasil por via aérea ou terrestre. Na falta do documento de imunização, quem pretenda entrar no país por aeroportos terá de se submeter a uma quarentena de cinco dias.

Os viajantes devem, além do mais, apresentar uma declaração escrita de que concordam com essas e outras políticas sanitárias. A portaria entraria em pleno vigor no sábado (11). Seus efeitos foram suspensos devido ao ataque de hackers a sites do Ministério da Saúde, o que impossibilitou o acesso aos certificados de vacinação.

De todo modo, era evidente a insuficiência da decisão, pois não se esclareceu como os turistas seriam triados nem como a quarentena seria cumprida e fiscalizada.

Poesia | Fernando Pessoa - Ode marítima

Sozinho, no cais deserto, a esta manhã de Verão,
Olho pró lado da barra, olho pró Indefinido,
Olho e contenta-me ver,
Pequeno, negro e claro, um paquete entrando.
Vem muito longe, nítido, clássico à sua maneira.
Deixa no ar distante atrás de si a orla vã do seu fumo.
Vem entrando, e a manhã entra com ele, e no rio,
Aqui, acolá, acorda a vida marítima,
Erguem-se velas, avançam rebocadores,
Surgem barcos pequenos detrás dos navios que estão no porto.
Há uma vaga brisa.
Mas a minh’alma está com o que vejo menos.
Com o paquete que entra,
Porque ele está com a Distância, com a Manhã,
Com o sentido marítimo desta Hora,
Com a doçura dolorosa que sobe em mim como uma náusea,
Como um começar a enjoar, mas no espírito.

Olho de longe o paquete, com uma grande independência de alma,
E dentro de mim um volante começa a girar, lentamente.

Os paquetes que entram de manhã na barra
Trazem aos meus olhos consigo
O mistério alegre e triste de quem chega e parte.
Trazem memórias de cais afastados e doutros momentos
Doutro modo da mesma humanidade noutros pontos.
Todo o atracar, todo o largar de navio,
É — sinto-o em mim como o meu sangue —
Inconscientemente simbólico, terrivelmente
Ameaçador de significações metafísicas
Que perturbam em mim quem eu fui…

Ah, todo o cais é uma saudade de pedra!
E quando o navio larga do cais
E se repara de repente que se abriu um espaço
Entre o cais e o navio,
Vem-me, não sei porquê, uma angústia recente,
Uma névoa de sentimentos de tristeza
Que brilha ao sol das minhas angústias relvadas
Como a primeira janela onde a madrugada bate,
E me envolve com uma recordação duma outra pessoa
Que fosse misteriosamente minha.