quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

Merval Pereira: Sem gosto

O Globo

A estratégia do ex-presidente Lula de chamar o ex-tucano Geraldo Alckmin para seu vice aparentemente é boa para dar a sensação ao eleitorado de centro-direita de que seu eventual terceiro governo não será radical. Mas qual é a garantia de que Alckmin representará o grupo político que o apoiava? Qual será o papel dele num governo petista? 

A aparência, porém, é diferente da realidade. Sempre houve composições partidárias heterodoxas na recente política brasileira, mas sempre a composição tinha o objetivo de melhorar a governança do eleito, fossem eles os ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso ou Lula, pois ambos fizeram composições com consequências claras. Até mesmo Tancredo Neves foi buscar na dissidência da Arena seu vice, a fim de poder governar.
O então presidente da Arena, José Sarney, rebelou-se contra o governo militar do general João Figueiredo e levou consigo para a Frente Liberal um grupo de políticos de peso que deu a vitória a Tancredo no Colégio Eleitoral. Sarney acabou presidente da República com a morte de Tancredo. Com o Plano Real, Fernando Henrique poderia ter vencido a eleição sem o apoio do PFL, mas, para governar, foi buscar no maior partido de direita na ocasião seu vice, Marco Maciel.

Malu Gaspar: A democracia e o cheque em branco

O Globo

Há um certo encanto nos setores progressistas, e de modo geral entre todos os que desejam ver Jair Bolsonaro fora do Palácio do Planalto, com a chapa Lula-Geraldo Alckmin em 2022.

Para muita gente, é um lance genial, tacada de mestre, a vacina da Pfizer contra a imagem de um Lula extremista, a verdadeira frente ampla que faltou em 2018. Se até Alckmin, um dos maiores antipetistas do passado, está “lulando”, por que não o resto do eleitorado?

De fato, é excelente para a democracia que dois atores tão relevantes da política se proponham a um diálogo e a uma aliança, especialmente neste estágio preocupante da vida nacional. Sem dúvida é boa jogada tanto para Lula como para Alckmin.

Os benefícios para o primeiro estão descritos acima. O segundo anda descrente de suas chances de vitória na eleição para o governo paulista no ano que vem. Vê na dobradinha com Lula a oportunidade de voltar a ter protagonismo nacional sem precisar disputar voto com a potente máquina estadual comandada por João Doria e Rodrigo Garcia.

O risco é se deixar levar pelo otimismo e esquecer de fazer perguntas cruciais. Ok, Lula e Alckmin se juntarão para ganhar de Bolsonaro e salvar a democracia. Mas em que bases será construída essa aliança? Para fazer o que a partir de 1º de janeiro de 2023? O que significa afinal essa “guinada para o centro” que Lula se propõe a dar?

Míriam Leitão: O orçamento das escolhas erradas

O Globo

O presidente Bolsonaro fez uma intervenção explícita e truculenta na Polícia Federal. Desde aquela reunião ministerial em 2020 na qual ele avisou “vou interferir”, já houve de tudo na PF. Troca de comando por diretores submissos, exoneração e remoção de delegados, punição para os que desagradam o presidente. Agora, no orçamento do ano eleitoral, o presidente ofereceu aos policiais federais um “cala boca”. Esse foi o único assunto pelo qual Bolsonaro se mobilizou, chegando a telefonar para o relator e pedir. Não é por acaso. É mais do que o atendimento de interesses corporativistas. Bolsonaro quer agradar à Polícia Federal e à Polícia Rodoviária Federal porque quer contar com as forças de segurança para seu projeto autoritário. A intervenção e o reajuste se completam como parte do mesmo plano. E ele usa o orçamento para isso.

O investimento público no ano que vem será o menor da história. A maior fatia irá para o Ministério da Defesa, como foi no ano passado. É parte do mesmo projeto. A bolsonarização é o nível mais degradante a que chegaram as Forças Armadas desde o fim da ditadura. Como é uma corporação fechada, sabe-se que há divergências internas, mas elas não são explícitas.

Igor Gielow: O valor do chuchu

Folha de S. Paulo

Na aliança com Lula, ex-governador cumpre sua sina de picolé sem gosto, mas a custo baixíssimo

Grande novidade desta etapa embrionária da corrida de 2022, ao lado da entrada de Sergio Moro no páreo, o balé entre Luiz Inácio Lula da Silva e Geraldo Alckmin para que o ex-tucano vire o vice do petista engrenou.

Desde o ponto em que era um balão de ensaio, observadores se perguntam o que cada lado tinha a ganhar, dado que Alckmin parecia sair de uma posição algo confortável para disputar o governo paulista.

Após o jantar em que ele cruzou o Rubicão com Lula no domingo (19), a única certeza é a de que os grandes favorecidos com essa novela estão no chamado campo vermelho.

Bruno Boghossian: Alckmin e o efeito Biden

Folha de S. Paulo

Nos EUA, democratas ampliaram base com candidato entediante para vencer a insensatez de Trump

Nos primeiros lances do processo de escolha de um candidato a presidente para a eleição de 2020, o Partido Democrata se dividiu. Uma ala queria Bernie Sanders, que conseguia energizar sua base com uma plataforma de justiça social e valores progressistas. O campo moderado tentava vender Joe Biden como uma escolha segura e previsível –um candidato entediante para enfrentar a insensatez de Donald Trump.

Um cálculo simples levou à opção pelo atual presidente americano. O partido precisava ampliar seu eleitorado para não repetir a derrota da disputa anterior. Biden foi um aceno a americanos que não se identificavam com itens da plataforma democrata, mas aceitavam votar num nome mais suave com o objetivo de tirar Trump do poder.

Ruy Castro: Governo a coices

Folha de S. Paulo

Golpe com os cascos traseiros? Estilo de Bolsonaro? Sim, e também o recuo da arma ao detonar

"Coice. S. m. Pancada que certos quadrúpedes, especialmente os equinos, desferem com os cascos traseiros firmando as patas dianteiras no chão." Com poucas alterações, é como os dicionários Aurélio e Houaiss definem uma prática dos cavalos, jumentos, mulas e outros equídeos. A diferença é que esses infelizes —a espécie animal mais brutalizada pelo homem na história— fazem isso como autodefesa. Mas as futuras edições dos dicionários terão de acrescentar uma nova acepção ao verbete: "Sistema de governo a patadas inaugurado por Jair Bolsonaro (2019-22) para intimidar os adversários, destruir as instituições democráticas e tentar se eternizar no poder no Brasil."

Desde sua posse na Presidência, há quase três anos, não se passou um dia em que Bolsonaro não escoiceasse contra algo ou alguém. É como ele se comunica com o mundo —falando através de uma ferradura. Mas será um erro compará-lo aos irracionais em que se inspira. Cada golpe de seus cascos é pensado antes de desferido e programado de modo a que o alvo o receba pelas costas.

Vinicius Torres Freire: Mais gente na UTIs de Covid em SP

Folha de S. Paulo

Novas hospitalizações vão a 400 por dia; já foram 3.000, mas é preciso vacinar crianças

Mais gente voltou a ser internada em UTIs de Covid no estado de São Paulo. O aumento parece agora inequívoco e da ordem de 50% desde 10 de dezembro. É preciso dizer desde já que esses "50%" não são alarmantes como teriam sido em momentos mais terríveis da doença. Ainda assim, é preciso tomar medidas como a vacinação de 20 milhões de crianças, logo, o que Jair Herodes Bolsonaro quer atrapalhar.

Pelo menos por enquanto, não é assim tão alarmante. Trata-se de um crescimento de cerca de 270 novas internações em UTI por dia para algo perto de 400. O estado já teve 3.000 novas internações por dia em fins de março, pico do horror.

Mas parece haver pelo menos um repique da doença, a partir de patamar menor. Os dados de internados em UTIs da cidade de São Paulo seguem mais ou menos a mesma tendência.

William Waack: Os perdedores de Lula

O Estado de S. Paulo

Os grupos que estiveram contra o petismo em 2018 ainda não sabem como se rearticular

A força de Lula nas pesquisas criou até aqui dois relevantes grupos de perdedores. Um é o segmento de agentes da economia nos setores financeiros, da agro indústria e indústria que viram em 2018 em Bolsonaro a possibilidade de transformação da economia brasileira. O outro é a atual geração de comandantes militares opostos ao lulopetismo por razões ideológicas mas, também, por considerarem que tinham um projeto melhor de País.

Ambos retardaram demais o abandono da barca bolsonarista, na qual subiram por um misto de circunstâncias e conveniências – e falta de lideranças.

Ambos pareciam emprestar ao governo Bolsonaro impulsos de modernização e eficiência de planejamento e gestão. O fracasso do presidente expôs também as dificuldades desses dois grandes segmentos em articular agendas abrangentes.

A adesão desses vários agentes a Bolsonaro foi mais circunstancial do que de fundo. Empresários e empreendedores tinham a esperança de um ambiente de negócios melhor em todos os sentidos (alguns acreditavam até em aumento de produtividade geral da economia, estagnada há décadas). Os militares viram inicialmente em Bolsonaro sobretudo um freio à volta do PT ao poder, depois do desastre dilmista.

José Serra*: O futuro é agora

O Estado de S. Paulo

Sistema eleitoral está no topo da lista de problemas perenes de nossa democracia, exigindo enfrentamento imediato

O Natal é depois de amanhã e o ano novo está próximo. Muitos aproveitam para um retrospecto ou para alinhar propósitos. Prefiro falar do futuro, um grande desafio, já que em nosso país nada é hoje previsível nem garantido, e no próximo ano passaremos por uma troca geral de poderes no Executivo e no Legislativo.

Tendo de enfrentar em nosso dia a dia uma sucessão de impasses, é impossível planejar bem o amanhã quando não se sabe como terminará o dia, seja do ponto de vista sanitário, de segurança jurídica ou de segurança econômica. E isto mesmo sobre questões consensuais, como a urgência de adotar um programa de renda básica ou de aumentar a qualidade, a eficiência e a honestidade do serviço público.

Incerteza sobre o futuro não justifica inação. Temos um conjunto de problemas permanentes que, enquanto não forem reconhecidos e bem debatidos, jamais serão enfrentados, negociados e compactuados. O contexto de uma campanha presidencial pode ser ocasião para essa reflexão que, infelizmente, não está sendo encarada pelas candidaturas já anunciadas.

Maria Cristina Fernandes: Raspado o tacho, que venha o eleitor

Valor Econômico

No Orçamento de 2022, os “investimentos” do Congresso e da União se equivalem. Só a chegada do sócio majoritário, o eleitor, pode chacoalhar esta sociedade

O Orçamento aprovado para o último ano do governo Jair Bolsonaro tem o dom da ubiquidade. Não apenas resume 2021 como antecipa o ano que está para começar e ainda dá pistas sobre a encrenca à espera do herdeiro em 2023.

Trata-se de uma peça orçamentária fruto de acordo com o Executivo. E isso não é óbvio. Basta lembrar que aquele em vigor foi aprovado apenas no fim de março deste ano. Boa parte das contendas derivou da disputa pelo comando da Comissão Mista de Orçamento, reflexo da eleição para as mesas diretoras, principalmente a da Câmara.

Com a eleição de um comando parlamentar mais alinhado ao Planalto, deu-se a convergência que explica quase tudo. Do represamento dos 143 pedidos de impeachment que se acumularam nesses três anos de bolsonarismo, mais da metade dos quais apresentados este ano, até o arrefecimento das pressões contra Paulo Guedes.

O ministro da Economia começou o ano na berlinda e o terminou nos braços do Centrão. E não foi o bloco que mudou. Foi Guedes quem fez concessões. A lista é infinita, mas o Orçamento lhe oferece um bom resumo.

A pedra estava cantada desde reação do Congresso à sua offshore. A montanha pariu um rato. O ministro foi ouvido em comissão na Câmara, confessou evasão fiscal, não convenceu da inexistência de conflito de interesse e foi embora como se nada tivesse acontecido. O presidente da Câmara, Arthur Lira (PL-AL), achou que já estava tudo explicado e dispensou seus esclarecimentos ao plenário.

Cristiano Romero: Brasil: quem paga ‘pra’ gente ficar assim?

Valor Econômico

Depois do “boom”, da recessão e do ajuste, para aonde vai o Brasil?

O Brasil é um país tão acostumado ao desassossego que difícil mesmo é ter estabilidade por muito tempo. Depois que os militares devolveram a Presidência da República aos civis, em 1985, o período mais estável, tanto do ponto de vista político quanto econômico, se deu entre 1995 e 2010, durante os quatro mandatos dos presidentes Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Observar em perspectiva como conquistamos a estabilidade e por que ela vem sendo ameaçada há quase dez anos é um exercício útil neste fim de 2021, véspera de um ano eleitoral cujo desenlace é impossível antecipar neste momento.

A transição do regime militar para o democrático se deu num ambiente econômico conturbado. A inflação de 1984 chegou a 192,1% e, em 1985, primeiro ano de um governo civil depois de 21 anos de ditadura, esticou para 226%. Depois da longa e profunda recessão de 1981-1983, provocada pelos efeitos da segunda crise mundial do petróleo em sete anos, o Produto Interno Bruto (PIB) voltou a crescer de forma acelerada - no biênio 1984-1985, avançou 5,3% e 7,9%, respectivamente - mas, com inflação naquele nível, nem a turma do IBGE, responsável pelo cálculo das contas nacionais, quis saber de comemoração.

Maria Hermínia Tavares*: No Chile, novos ventos à esquerda

Folha de S. Paulo

Desde já a vitória de Boric mostra que outra esquerda é possível

O discurso de Gabriel Boric, tão logo as urnas o transformaram no 66º presidente do Chile, é bem mais do que uma bela peça de retórica política. Traz um cardápio completo e coerente de compromissos de uma esquerda sintonizada com o mundo. Além disso, é inédito por estas bandas, dada a forma como une, em pé de igualdade, a defesa do ambiente, o reconhecimento de direitos de grupos identitários e a promessa de políticas de proteção social que desde sempre caracterizaram a social-democracia.

Aos 35 anos, o jovem presidente eleito foi bem claro ao falar de um Chile verde frente às ameaças trazidas pela crise climática; do papel político das mulheres e de seu direito ao próprio corpo; do combate à violência e à discriminação contra minorias; do apreço pela riqueza cultural dos povos originários, do compromisso com a garantia dos direitos humanos; e da importância da segurança cidadã e da luta contra o narcotráfico.

Guga Chacra - Chile pode virar ‘Portugal’

O Globo

Não sabemos se o presidente eleito do Chile, Gabriel Boric, terá sucesso em seu governo. Enfrentará uma série de obstáculos. Mas podem ter certeza de que o jovem líder chileno não é similar a figuras esquerdistas no poder em outros países da América Latina como Venezuela, México, Nicarágua e Peru. O futuro ocupante do Palacio de La Moneda, em Santiago, está mais em sintonia com a esquerda europeia, como a portuguesa.

Pedro Castillo, presidente do Peru, é marxista. Isso não significa em hipótese alguma que carregue bandeiras da esquerda europeia e dos EUA. O líder peruano se posiciona contra o direito ao aborto, à legalização da maconha e ao casamento entre pessoas do mesmo sexo. Religioso, gosta de ler passagens bíblicas. Compare com Boric, um agnóstico assumido que adota posições antagônicas às do seu vizinho do Norte.

López Obrador, do México, foi eleito como esquerdista por suas posições econômicas. Mas, assim como Castillo, pode ser descrito como extremamente conservador nos valores. Além disso, o presidente mexicano é entusiasta de Donald Trump e se aliou ao então presidente americano para renegociar o Nafta e implementar políticas restritivas a imigrantes na fronteira. Na pandemia, segue como um notório negacionista.

O que pensa a mídia: Editoriais / Opiniões

EDITORIAIS

O festival da bondade orçamentária

O Globo

Talvez a única virtude da Lei Orçamentária de 2022, recém-aprovada no Congresso, seja ter sido concluída antes do exercício a que se destina — é preciso reconhecer. Mas é só. A razão para a presteza insólita nada tem de virtuoso. Trata-se da avidez com que, uma vez rompido o teto de gastos, Brasília se lançou afoita, na antessala do ano eleitoral, sobre a chance de distribuir agrados. O principal mecanismo para isso são as emendas parlamentares que somarão R$ 37,5 bilhões, incluindo aí as famigeradas emendas do relator, o mecanismo por trás do orçamento secreto, no total de R$ 16,5 bilhões. Mesmo que, graças à ação do Supremo Tribunal Federal (STF), estas últimas se tornem mais transparentes, ainda permitirão ao governo enviar dinheiro a todo tipo de interesse paroquial que lhe traga dividendos políticos.

O festival da bondade orçamentária não ficou por aí. O fundão eleitoral foi orçado em R$ 4,9 bilhões, quando R$ 2,1 bilhões (valor gasto em 2018 corrigido pela inflação) bastariam para bancar as campanhas. Os policiais federais levaram um reajuste que custará R$ 1,7 bilhão aos cofres públicos. Apenas extinguindo as emendas do relator, esse aumento descabido para a PF e restringindo o fundão, teria sido possível economizar R$ 21 bilhões dos R$ 113 bilhões estimados para o estouro do teto.