segunda-feira, 30 de junho de 2008

A TRANSIÇÃO BLOQUEADA

A TRANSIÇÃO BLOQUEADA
Gilvan Cavalcanti de Melo

“O Brasil é uma sociedade em construção que apresenta heterogeneidades brutais. Nesses casos, as responsabilidades do Estado enquanto regulador da sociedade são bem maiores. Ninguém pode corrigir as desigualdades que existem no Brasil a não ser através da intermediação do Estado. Não somente o mercado não poderá fazê-lo, como também ele tem a tendência de agravar as desigualdades sociais”(Furtado 1996)


A construção democrática da nação foi interrompida com o golpe militar de 1964 , quando se inaugurou um regime autoritário, afinal derrotado em 1985 no Colégio Eleitoral. Aqueles que acreditavam que a substituição do antigo regime traria a redefinição imediata do sistema político ficaram desiludidos. Quase dez anos decorridos da promulgação da Constituição de 1988, não foram suficientes para corrigir as deformações do passado e promover as reformas propostas para diminuir o peso da burocracia do Estado, restituindo-lhe a capacidade de regular a economia e praticar uma segura política de desenvolvimento sustentado, com melhor distribuição de renda.

Fernando Henrique Cardoso fortalecido com o êxito do plano real ,lançado meses antes de sua eleição, esperava vencer rapidamente as resistências dos grupos sociais patrimonialistas de tradição ibérica e conseguir aprovar os projetos de reforma fiscal, da previdência social e administrativa, obrigatórios para completar a estabilização da economia, recuperando a capacidade de poupança e reinaugurar um novo ciclo de crescimento econômico, acompanhado de desenvolvimento social mais igualitário, o qual estava ausente no passado, a tal ponto do país ocupar um dos primeiros lugares no mundo em desigualdades.

Passados quase três anos as reformas não foram concluídas. Anunciada no começo do Governo como terminada, a transição ainda não teve o epílogo. Mesmo quatro anos constitui um período de tempo muito curto para transformar uma nação complexa e paradoxal como o Brasil, ainda mais agravado pelo último ciclo de “modernização conservadora”. Uma tentativa de balanço deste período do governo não permite tirar conclusões definitivas, prontas, acabadas e sim provisórias; no máximo pode-se destacar algumas tendências e certos problemas.

Paradoxalmente o Brasil é, ao mesmo tempo, prisioneiro do sucesso do plano real e vítima de uma transição bloqueada. A eliminação de altas taxas de inflação se traduziu pôr um aumento do poder de compras das camadas mais pobres, gerando um crescimento de consumo .No início, sob o efeito simultâneo da estabilização monetária e crescimento econômico, houve uma redistribuição de renda em favor das camadas de trabalhadores de baixos salários e dos autônomos do setor informal .Um indicativo para demonstrar isso é o valor da cesta básica: no inicio do plano real valia R$ 106,90, e no dia 15 de setembro o custo era de R$ 109,70. Aumento de 3%(Jornal do Brasil 1997).Este impulso distribuitivo está esgotado? Recentemente o Ministro da Fazenda afirmou:
Ninguém em sã consciência poderia imaginar que a estabilidade econômica levaria, pôr si só, a um processo continuado de redistribuição de renda no país. O efeito inicial de melhora na distribuição de renda vem no período em que se baixa a inflação vergonhosa para uma inflação civilizada, depois precisa ser substituído pôr outras ações. (Malan 1997). Temendo uma aceleração e um superaquecimento da economia com reflexo no índice inflacionário o governo tomou algumas medidas restritivas que inibiu a expansão ,com as inevitáveis conseqüências para o nível de emprego e os salários. Só na grande São Paulo ,pôr exemplo, a massa salarial entre julho/94 e maio/97 baixou 14,8% e o salário médio, no mesmo período teve uma queda de 14,1%.(Desep/Dieese 1997).
A concentração de renda voltou a crescer, depois de uma queda no inicio do plano real. A distância entre ricos e pobres que era de 15.7 vezes em agosto de 1994, chegou em maio de 1996 a cair para 11,33 e já em maio deste ano voltou a subir para 13,23(Unicamp 1997).

Com a inexistência de uma reforma fiscal a área do governo responsável pela política econômica não tem a audácia de alterar a taxa de câmbio – tema de controvertida polêmica– aparentemente sobrevalorizada. O processo de abertura comercial acompanhou consigo uma grande expansão das importações alterando a posição da balança comercial ,tradicionalmente com superávit para torna-se até o momento deficitária. Assim o país depende cada vez mais de afluxo de capital externo para equilibrar seu balanço de pagamento e o serviço da divida externa.
As reservas em divisas alcançam um nível muito elevado, mas ao preço de elevadas taxas de juros. Com isto o Brasil passou a ser local particularmente atraente para os chamados capitais voláteis, com os riscos que isso possa acarretar. As altas taxas de juros provocam uma elevação muito grande da dívida pública interna do governo federal, estadual e municipal, levando os bancos estaduais a seu desendividamento, seguido de privatizações, tema polêmico e bastante difícil de administrar. Ao mesmo tempo, o fim da inflação elevada debilitou o sistema financeiro privado obrigando o governo a intervir para salvá-lo.
O tema dos direitos humanos ao qual o governo tem dado muita importância, constitui um domínio no qual realizam-se grandes avanços nesses quase três anos de mandato. Programas dedicados a esses direitos foram lançados ,contendo numerosas propostas de ação governamental em diversos campos que vai da proteção da segurança dos cidadãos, a reforma do sistema judiciário, a proteção do direito à igualdade de tratamento perante a lei, medidas com relação a criança e adolescente. O campo é muito vasto e não se pode esperar resultados grandiosos imediatos. Mas, a existência do programa dá uma clara sinalização do governo com o compromisso nessa direção.

A grande dificuldade será garantir progressivamente e de forma eficaz todos os direitos democráticos, aí incluídos os direitos econômicos, sociais e culturais para o conjunto da sociedade brasileira , num país tão profundamente desigual, com alta concentração de renda ,uma estrutura fundiária atrasada, disparidades enormes nos salários, um desemprego que já atinge níveis elevados nas grandes áreas metropolitanas, sem esquecer o subemprego crônico.

O país tem uma estrutura agrária atrasada. À primeira vista as condições são favoráveis para uma reforma fundiária democrática. É paradoxal ver milhões de trabalhadores sem terra e de outro milhões de hectares de terra sem uso, improdutiva. O momento é marcado por conflitos ,muitos deles violentos e a relação dos camponeses sem terra com o governo difícil. O governo proclama sua vontade de acelerar a distribuição de terras via assentamentos de famílias com objetivo de alcançar metas que ultrapassem todos os governos anteriores.
Mesmo assim esta ação constituirá uma realização bastante pequena, tendo em vista as reais necessidades concretas da nação e ,também, as reservas disponíveis.
O programa de apoio à agricultura familiar (Pronaf),é o reconhecimento tardio da importância do potencial deste segmento . Por muitos anos , a agricultura ficou entregue ao lucro das grandes explorações agrícolas e os recursos financeiros favorecendo a grande produção e a grande propriedade. Grande parte de milhões de brasileiros rurais vive em pequenas e médias propriedades familiares, em decadência pela ausência de medidas concretas de apoio. O Pronaf pretende interferir num setor socialmente frágil, no qual a reabilitação e modernização poderá traduzir-se numa redução do contigente de emigrantes que afluem às cidades ,aumentando o número de desempregados urbanos. No entanto, a aplicação do programa realiza-se de forma lenta, e os recursos colocados à sua disposição são pequenos se levado em conta a grandeza do problema.

Enquanto a questão agrária gera polêmicas, amiúde violentas, a reforma da educação provoca simpatias e amplas adesões. Os salários dos professores ,extremamente baixos em determinadas regiões do interior ,foram revalorizados com a criação de um fundo de desenvolvimento do ensino básico.
Todas as escolas primárias estão sendo equipadas com antenas parabólicas, aparelhos de televisão e outros equipamentos destinados a reciclagem dos professores e cursos para os alunos. Ao mesmo tempo iniciou- se uma discussão para a reforma da universidade, democrática, descentralizada, objetivando maior autonomia administrativa e financeira das unidades federais de ensino superior.

É necessário ressaltar os sucessos obtidos na área da política externa. O governo multiplicou seus deslocamentos para o exterior ,estabeleceu um diálogo com chefes de Estados e de governos da principais nações. Mas foi na América do Sul que desenvolveu o essencial de sua atividade, reforçando e ampliando o Mercosul, ao mesmo tempo, chamou para Brasília a instalação do secretariado permanente do Tratado de Cooperação da Amazônia. Também está contribuindo para criar uma matriz energética articulada em uma ampla aliança e cooperação sul-americana, estabelecendo uma premissa para a criação de uma área de livre comércio alcançando todo subcontinente. O Brasil se prepara, assim, para desempenhar um papel ativo no panorama internacional na qualidade de potência regional. Está em cena o tema do Estado -nação, seu papel no processo de globalização. É possível conciliar a globalização com as demandas de igualdade social dentro das fronteiras nacionais? Só o futuro dirá qual a resposta a esta indagação.

Política industrial, política de empregos, reforma agrária. É um projeto de conjunto e necessário. A tarefa é enorme, porque se trata de rejeitar a herança do passado, inclusive, o mais recente. Ao mesmo tempo escapar à lógica oculta de expansão econômica através da desigualdade social. Essas questões fundamentais poderiam ser objeto de debates e soluções se superassem as falsas dicotomias e as divisões conflituosas que colocam na conjuntura os neoliberais duros e puros, fundamentalistas do mercado, de um lado, e de outro uma esquerda fideísta da estadolatria e sectária.

Esses são os “fatos”. Essas são as “circunstâncias”. E como agiram os atores diante deles? Quando afirmei que era necessário indicar os sujeitos históricos (Melo 1997) queria me referir ao movimento real da sociedade que no passado participou do transformismo do autoritarismo ao Estado de direito, tais como os partidos políticos, o novo sindicalismo do ABC, os novos intelectuais, os novos empresários, os movimentos sociais de bairros e favelas, o sindicalismo rural, etc. Foram esses sujeitos que se colocaram na dianteira das grandes mudanças nas últimas décadas (Cardoso 1997). E, atualmente, como agem esses atores nas transformações que estão ocorrendo? pensam e atuam como se tivessem perdido suas idéias e valores (D`Alema 1997), não restando outra saída senão resistir às reformas e as “transformações moleculares”. Não entendem que a direção e o desfecho das mudanças estão vinculados ao agir dos sujeitos históricos diante das “circunstâncias”.
Esses atores sociais, em vez de defenderem o velho estatismo deveriam colocar em discussão o problema de um novo Estado democrático, sem corporativismo, que tendo como centro a cultura, a formação, a educação permanente dos indivíduos: condições para que o processo inovativo não empurre as pessoas para as margens, mas ofereça-lhes a possibilidade de viver melhor e de realizar plenamente a própria personalidade (D`Alema 1997).

28.09.97

Gilvan Cavalcanti de Melo
Membro do Diretório Nacional do PPS


Referências Bibliográficas

Cardoso, Fernando. Revista Veja nº 36 10.09.97
D`Alema, Massimo. Jornal Estado de São Paulo 30.08.97
_______________. Idem.
Furtado, Celso. Jornal dos Economista - nº 88 agosto de 1996
Malan, Pedro. Jornal do Brasil 16.09.97
Melo, Gilvan Cavalcanti. Reunião D.Nacional PPS -Brasília 20.a 22.06.97
Resenha Desep nº 11 de 13.08.97.
Unicamp. Pesquisa do Cesit (Jornal O Globo 10.08.97)

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