quinta-feira, 10 de julho de 2008

DEU NO JORNAL DO COMMERCIO (PE)


DEMOCRACIA E DIREITOS SOCIAIS
Roberto Cavalcanti de Albuquerque


Em uma democracia moderna, o poder político, sobre ser exercido direta ou indiretamente pelo povo, deve ser empregado em seu benefício. Esse postulado foi enunciado por Péricles no século V a.C. quando afirmou que Atenas era uma democracia porque seu governo beneficiava os muitos e não os poucos. Uma democracia, a ateniense, direta é certo, mas na qual o povo era constituído apenas pelos homens com mais de 20 anos – excluídos as mulheres, os escravos, os estrangeiros.

No século 18, um mínimo de suficiência econômica pareceu condição essencial ao exercício do voto. Hamilton afirma em O federalista que "um poder sobre a subsistência de um homem equivale a um poder sobre sua vontade". E Kant considerou em A ciência do direito que o voto "pressupõe a independência ou auto-suficiência do indivíduo". Por isso a propriedade foi qualificação necessária à cidadania ativa, negada aos escravos, mulheres e despossuídos.

No século 19, a democracia foi estendida ao econômico-social, de modo a evitar que abrigasse, ou até estimulasse, desigualdades e injustiças impedindo ou viciando a liberdade política. Para Mill, a liberdade e a igualdade devem abarcar todos os homens e mulheres, independentemente de berço, raça, título ou fortuna. Antecipando-se aos direitos sociais contemporâneos, ele afirma: "Não deve haver párias em uma nação civilizada e madura. Nem pessoas desqualificadas, salvo por sua própria culpa". O socialismo prosperou nesse caldo de cultura, radicalizado por Marx (1875) em extremado igualitarismo, expresso no conhecido lema "de cada um segundo sua capacidade a cada um segundo suas necessidades".

Como desdobramento dessa evolução conceitual, passou-se a pleitear do Estado um sistema de ensino tão universal quanto o direito do voto, além de capaz de assegurar um padrão mínimo de escolaridade a todos. Somente a "educação liberal" – liberal porque voltada para formar o bom julgamento e a consciência crítica, ou seja, a inteligência do homem livre – poderia preparar o indivíduo ao exercício da cidadania. A Constituição brasileira, que completa 20 anos neste 2008, contempla amplamente esse e outros direitos sociais em seu generoso texto – tão generoso nos fins que comina quanto desatento em prover os meios para alcançá-los.

A filosofia política contemporânea enfatiza o exame da legitimidade e permanência da democracia e dos direitos sociais na sociedade "pós-metafísica". Ela rejeita o direito natural e vivencia profunda crise do espírito. O advento em governos populares, republicanos e representativos do nazismo e fascismo demonstrou o quanto equivocadas podem ser as escolhas eleitorais e os acordos políticos e quão frágeis são as democracias.

Dois destacados pensadores, John Rawls (Uma teoria da justiça, 1999) e Jürgen Habermas (Direito e democracia, 1997) dedicaram-se a esse tema. Suas idéias convergem. Para eles, o direito e a justiça fundamentam-se na autonomia moral dos cidadãos, nascem da cooperação e interação entre eles e se estabilizam em clima de liberdade e igualdade onde o uso da razão se orienta para o bem público. Cidadãos autônomos, agindo coletivamente, tornam-se intersubjetivamente responsáveis pelos princípios e normas a que eles individualmente se submetem. Devem movê-los a visão de seu próprio bem (do que é bom para eles) e o sentimento de justiça (sendo diferente do bom, o justo deve ser prioritário).

Para fortalecer as democracias não basta a vigência plena do Estado de Direito. Uma cultura política democrática e uma sociedade civil ativa e emancipada do Estado são igualmente necessárias. Elas são o espaço público da justificação que valida e legitima a moral, as leis e a justiça. Para Rawls e Habermas, a democracia é proposta de vida ética visando à realização do potencial de cada um em clima de dignidade e segurança. A Constituição deve ser o projeto de um Estado de Direito radicalizado pela democracia. A comunidade de princípios que assim se forma não se baseia em identidade compartilhada, mas na diversidade e pluralidade de modos de ser, ver, sentir e pensar que florescem com a liberdade. As liberdades fundamentais devem ser vistas em seu conjunto, colocando num mesmo plano os direitos políticos, civis e sociais.

» Roberto Cavalcanti de Albuquerque, ensaísta, é diretor do Instituto Nacional de Altos Estudos, Inae-Fórum Nacional (Rio de Janeiro)

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