quarta-feira, 9 de julho de 2008

DEU NO VALOR ECONÔMICO


O PARADOXO DE URIBE
Cláudio Gonçalves Couto


A libertação de Ingrid Betancourt do cativeiro em que era mantida pelas Farc foi, inegavelmente, uma retumbante vitória do presidente colombiano, Álvaro Uribe, e uma acachapante derrota da guerrilha. Esta já vinha bastante debilitada nos últimos tempos em virtude de três fatores indissociáveis: (1) a forte ofensiva militar que o governo da Colômbia tem promovido contra ela desde o início da administração de Uribe; (2) a perda de seus principais líderes, alguns deles mortos em ações inseridas no bojo da própria ofensiva militar; (3) a desmoralização do movimento perante a população colombiana e no exterior. Esta desmoralização, por sua vez, é uma decorrência tanto da perda de sentido de movimentos armados desse tipo num contexto de difusão de regimes democráticos mundo afora, quanto dos expedientes específicos de que lançam mão as Farc para atingir seus objetivos: o seqüestro de civis e o estabelecimento de laços com o narcotráfico.

Deste modo, o resgate de Betancourt e outros quatorze seqüestrados - sejam lá quais tenham sido os verdadeiros expedientes de que lançou mão o governo colombiano para sua consecução - não pode ser compreendido senão num contexto de debilitação constante da organização que os mantinha reféns. Alguns falam na mobilização de milhões de dólares para subornar guerrilheiros venais; outros apontam uma conspiração que já se havia armado há mais tempo, aguardando apenas o momento propício para o bote; é há ainda quem, num arroubo de formalismo jurisdicista, chegue até mesmo a criticar a farsa do helicóptero militar pintado de branco como forma de enganar guerrilheiros incautos, apontando-a como uma violação de leis internacionais que regulam conflitos armados; sem mencionar, claro, as justificáveis suspeitas de que tenha havido participação militar americana no episódio, apesar das negativas oficiais colombianas (o embaixador americano em Bogotá falou em sentido contrário a elas). Tudo isto é de somenos importância diante de um fato irretorquível: o presidente Uribe tem tido sucesso em sua empreitada de derrotar as Farc por meio da força.

A vitória de Uribe tem um alcance muito mais importante do que a mera debilitação de um grupo verdadeiramente criminoso - pois que se respalda num discurso de reivindicação de legitimidade política para o uso da força, mas que na verdade tem-se mantido vivo em decorrência de práticas que o colocam ao lado de meliantes comuns. Ora, os reféns políticos das Farc - incluídos aqueles agora libertados - não passam de 50. Já os seqüestrados comuns - com fins de extorsão das famílias - são mais de 700. Como neste caso não se pode falar em algo minimamente próximo de "prisioneiros políticos" ou "prisioneiros de guerra", torna-se difícil categorizar a ação da guerrilha de outra forma que não seja como meramente criminosa. O mesmo vale no que concerne ao envolvimento dos guerrilheiros com o tráfico de armas e drogas.

Derrota das Farc é uma vitória da soberania

Todavia, a ação de Uribe tem mais importância do que a derrota de um bando de meliantes porque, a despeito de seu banditismo, as Farc há muitos anos impedem o pleno exercício da soberania pelo Estado colombiano - por deter o monopólio do uso (reivindicado como) legítimo da força em vasta parte do território daquele país. Caso venha a derrotar de forma definitiva os narcoguerrilheiros, o presidente Uribe tornará viável, após muitas décadas, o exercício da soberania estatal. Considerando este fato, torna-se realmente curioso que alguns critiquem a estratégia colombiana de aceitação da ajuda militar americana como uma perigosa concessão ao "imperialismo" estadunidense. Ora, o imperialismo é algo indesejável na medida em que leva à violação da soberania nacional; mas, na medida em que o "imperialismo" surge como força auxiliar na luta pelo restabelecimento do poder soberano solapado pela ação de guerrilheiros ao longo de anos, fica claro que o perigo real é outro.

Sendo assim, se de fato vencer ou, ao menos, estabelecer as condições efetivas para uma eventual vitória final, como parece ser o caso, Uribe lançará as bases para que o Estado colombiano se estabeleça de forma definitiva em toda a amplitude de seu território. Isto, por si só, já lhe garantiria o título histórico nada desprezível de "estadista" - se por isto entendermos uma definição para aqueles que constroem, ou reconstroem, Estados.

Todavia, nem tudo são flores. Surfando na onda da imensa popularidade auferida com suas seguidas vitórias contra as Farc (além do bom momento econômico vivido pela Colômbia e da redução da criminalidade urbana), Uribe também lança as bases para um projeto pessoal de poder que não é nada atraente - ao menos de uma perspectiva preocupada com a democracia. Não há democracia plena sem um Estado efetivo, mas um Estado efetivo, por si só, não é condição suficiente para a democracia. Outros estadistas, na América Latina e alhures (vejam-se os casos de Vargas, Bismarck, Atatürk etc.), ao mesmo tempo em que erigiram Estados, fizeram-no sem dar a menor importância à construção de instituições democráticas - muito pelo contrário. Cada um deles, a seu modo, procurou reforçar o próprio poder como forma de viabilizar a continuidade de sua portentosa obra, mas também para assegurar simplesmente a sua própria condição de governante inconteste.

Comparado aos grandes construtores de Estados que a história nos legou, Uribe vive uma situação potencialmente menos perigosa para a democracia: a Colômbia é, dentre os países latino-americanos, um dos que têm regimes competitivos mais longevos - ao lado da Costa Rica e da Venezuela. Todavia, isto por si só não é garantia de que a democracia perdure ou de que não sofra fortes abalos - como mostra o exemplo venezuelano, com Chávez. Aliás, por ironia, é justamente a popularidade do presidente que parece ser a principal fonte da ameaça ao "governo do povo": hoje, 79% dos colombianos apoiariam um terceiro mandato para o presidente colombiano. Paradoxalmente, se isto vingar, Uribe pode começar a desconstruir por uma via o que tão bem sucedidamente vem construindo por outra: o fortalecimento do Estado democrático na Colômbia.

Cláudio Gonçalves Couto é professor de Ciência Política da PUC-SP e da FGV-SP. A titular da coluna, às quartas-feiras, Rosângela Bittar, está em férias

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