segunda-feira, 28 de julho de 2008

DEU NO VALOR ECONÔMICO


NOSSO QUINHÃO DE RUINDADES
Fábio Wanderley Reis


O noticiário do período recente, em particular o relativo à operação Satiagraha da Polícia Federal, tem exibido de modo especialmente agudo várias faces sombrias da vida brasileira e os grandes desafios correspondentes. A desigualdade social e suas ramificações no plano da cultura; a penetração das instituições em geral pelas consequências negativas da desigualdade, incluídos os órgãos da aparelhagem política do Estado e mesmo os da Justiça (note-se o impacto, registrado por todos, do fato de que se prendam banqueiros ou os "homens de qualidade" de sempre); a questão das reformas político-institucionais em geral: em primeiro lugar, serão realmente necessárias ou, como querem alguns, estaremos apenas, parafraseando Drummond, provando, entre ruindades, as que nos foram legadas - vale dizer, experimentando, como todo mundo em diferentes momentos, nosso quinhão de dificuldades no processo de construção institucional? Em segundo lugar, na suposição de que reformas sejam necessárias, ou de que seja necessário agir, como obter reformas institucionais efetivas? Será possível alcançá-las com "meras" mudanças em dispositivos legais ou será preciso antes alguma mudança de sentido "estrutural" e cultural mais profundo?

Reformas, desigualdade e valores culturais

Seja como for, são nítidos os reflexos institucionais gerais da desigualdade e da cultura da desigualdade. É provavelmente irrelevante, por exemplo, a celeuma em torno das "fichas sujas" com relação a um Congresso em que, para começar, um país de educação precária se faz representar, de maneira amplamente predominante, por gente de educação universitária. Quanto à Justiça, cabe assinalar o que Beatriz Magaloni (citada em M. Taylor, "Judging Policy", 2008) apontou há pouco quanto à operação da Justiça na América Latina em geral, a saber, a tendência ao divórcio entre a (eficiente) dimensão "madisoniana" relativa ao equilíbrio e ao controle recíproco entre os poderes, por um lado, e, por outro, a (deficiente) dimensão "hobbesiana" relativa à garantia de direitos básicos na vida cotidiana dos cidadãos. No caso brasileiro, é patente que aos integrantes do "povão" (para usar a distinção a que recorri na semana passada) se abrem duas possibilidades nas relações com a Justiça: ou a de aparecerem como vítimas ou autores e réus de crimes violentos ou, quando se trata da Justiça atenta aos direitos civis do cidadão, a de surgirem como pano de fundo ou como meros figurantes, como acontece com os "nativos" em certos filmes americanos, a contrastar com a relevância e a qualidade de gente real dos protagonistas hollywoodianos - o equivalente da parcela dos brasileiros assimilável à condição de "povo" soberano. Já quanto aos meios de comunicação, por seu turno, apesar da abundância relativa do noticiário negativo que envolve todas as categorias sociais, é bem claro que a cobertura ampla e de repercussão vai também para os eventos protagonizados pelos "mais iguais". Naturalmente, o que vimos agora deixa transparecer o lado transformador disso justamente ao destacar os "mais iguais" (os homens de qualidade) como delinquentes presumíveis às voltas com a Justiça. Mas não é de estranhar que, como Maria Inês Nassif assinalava no Valor de 24 de julho e como costuma repetir-se, o foco inicial em Daniel Dantas como acusado tenha logo se deslocado para a própria Polícia Federal, o Ministério Público e o Governo, em consonância com o Judiciário como eficiente contrapeso madisoniano.

É preciso reconhecer que o aspecto cultural da realidade que vivemos não mudará sem mudança profunda no substrato de desigualdade material e intelectual, além do componente racial do legado escravista. Apesar de indícios preciosos da emergência de certa "inclusividade" que torna "incorreta" a face cultural mais odiosamente rombuda da desigualdade, a possibilidade de contemplar a superação mais efetiva do quadro geral negativo, em suas várias dimensões, certamente requer -- além de que se conte com a sorte - uma perspectiva de longo prazo.

Quanto à conexão entre as mudanças que caberia desejar e a ação no plano político, é sem dúvida necessário denunciar, como tenho às vezes salientado, a distorção da postura radical inclinada a rechaçar a ação que busca avanços tópicos em qualquer campo em nome da necessidade de fazer "tudo", ou muito mais. Mas é preciso superar também a passividade a que induziria a perspectiva de "nosso quinhão de ruindades" acima mencionada. Entre os cientistas políticos brasileiros, por exemplo, essa perspectiva tem levado, às vezes, a uma combativa disposição anti-reformas. No entanto, em alguns dos melhores trabalhos de pesquisa relevantes para o problema geral, como os de Argelina Figueiredo e Fernando Limongi, um ânimo que resulta simpático ao anti-reformismo se tem combinado, de modo inconsistente, com resultados em que se revelam justamente os avanços (quanto a problemas como a disciplina do comportamento partidário nas votações do Congresso, ou a dinâmica mais proveitosa no plano da política orçamentária) permitidos por alterações nos mecanismos legais pertinentes, seja ao nível dos dispositivos constitucionais ou de meras resoluções administrativas do próprio Congresso Nacional, por exemplo.

Não é preciso confundir a busca de melhorias e reformas com a torta visão negativa da política como tal. E, além da pressão direta de dispositivos legais apropriados sobre os interesses de atores supostamente guiados por interesses estreitos, cabe contar com algo de maior alcance: a possibilidade de que a alteração gradual das expectativas que tais dispositivos promovam venha talvez a ajudar no processo de amadurecimento de mudanças consistentes e duradouras no plano dos próprios valores e da cultura em sentido pleno.

Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras

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