quinta-feira, 10 de julho de 2008


NA ESTATÍSTICA, MORRE QUEM RESISTE À PRISÃO
Maria Inês Nassif


Chamar a operação policial que resultou na morte de João Roberto Amorim Soares, de 3 anos, de "desastrosa", como o fez a Secretaria de Segurança Pública do Rio, é usar de um cruel eufemismo. Os desastres da política de segurança pública do Rio se repetem incansavelmente, governo após governo. A violência policial não é um fenômeno exclusivamente fluminense, isso é inegável, mas os números mostram que a vitimização da população "civil" (aquela que não é polícia, nem militar, nem bandida) no Estado atinge proporções assustadoras. Em 2007, segundo dados oficiais, a polícia matou cerca de 1300 pessoas no Estado do Rio; todas essas mortes foram classificadas como "resistência seguida de morte" e poucas resultaram em algum tipo de investigação dos envolvidos. É a polícia que mais mata no mundo.

Segundo relatório de 2007 da Anistia Internacional, nos anos de governo dos Garotinho (Anthony, de 1999 a 2001; Rosinha, de 2003 a 2006) a taxa de homicídios manteve a média de 6 mil assassinatos por ano; as mortes por ações policiais ficaram em cerca de mil anuais. As ocorrências registradas como "resistência seguida de morte" eram próximas a 300 em 1997 - marido e mulher mais do que triplicaram esses números. A Anistia Internacional também aponta a grande expansão de áreas controladas por milícias formadas por policiais, guardas prisionais e bombeiros fora de serviço no último ano do governo Rosinha, quando esses grupos conquistaram, no enfrentamento, áreas dominadas pelo tráfico. No último mês de 2006, as milícias controlavam 92 das 500 favelas da cidade. Sérgio Cabral, em seu primeiro ano de governo, superou a marca dos Garotinho em pessoas mortas em operações policiais. As milícias continuam onde estavam.

Para efeito de estatística, João Roberto, com seus três anos de idade, foi morto porque resistiu à prisão. Até pouco tempo, eram assim considerados também as vítimas de balas perdidas, em confrontos entre policiais e bandidos. A operação policial que resultou na morte do menino, e todas as outras que tingiram de sangue as páginas policiais dos jornais, são a prova da fragilidade da população "civil" frente a uma autonomia cada vez maior das forças de segurança - fruto de uma política militarista de segurança, da impunidade dos policiais e do apoio de parcela da sociedade a ações altamente ofensivas, desde que restritas geograficamente a regiões mais pobres.

O alto índice de criminalidade do Rio e o controle de favelas pelo tráfico, de um lado; e de outro o apelo de setores conservadores por medidas repressivas radicais, capazes de cortar "pela raiz" as razões da insegurança, transformaram a segurança pública do Rio em um instrumento de ação política. As grandes operações policiais e militares, que resultam na ocupação e isolamento de populações inteiras de favelas por dias, têm sido a resposta dada pelos governos à população que não mora nas favelas. Há um seccionamento sistemático das duas clientelas políticas. A violência policial, todavia, as une. Hoje, uma criança de classe média é vulnerável a uma ação policial assim como uma criança que mora na favela (embora existam mais chances do morador de favela ser atingido).

Grandes operações são apenas shows

Ignacio Cano, em estudo de 1997 ("Letalidade da ação policial no Rio de Janeiro"), faz um levantamento dos registros de óbito na capital entre janeiro de 1993 a julho de 1996 e chega a outros números que comprovam a truculência da ação policial. Segundo ele, os "opositores" mortos em ações policiais foram da ordem de 242; os feridos, 410; e os que escaparam ilesos, 294. Isto é, em operações teoricamente destinadas a prender transgressores da lei, a regra seguida pela polícia é matar. A maioria das vítimas morreu antes de chegar ao hospital. A análise dos laudos cadavéricos mostra o uso excessivo da força ou aponta sinais de execução (quatro disparos ou mais; tiros letais, nas costas ou na cabeça, em vez de disparos para imobilizar o "opositor", nas pernas, por exemplo). Em vários dos casos de policiais que atiraram pelas costas das vítimas, eles foram promovidos por bravura. Tanto no Rio como em São Paulo, segundo a Anistia, não mais do que 1% das ocorrências de morte em ações policiais vão a tribunais.

Os governos sucessivos do Rio não fizeram uma política de segurança eficiente - aliás, sequer chegaram a formular efetivamente políticas de segurança -, não controlaram suas polícias nem atenderam as populações carentes que precisam da presença física do Estado nas suas comunidades sob pena de ficarem reféns de traficantes ou milicianos. Para escamotear a ineficiência, o poder público do Estado dissemina a idéia de que polícia boa é aquela que atua "com rigor"; que política de segurança é operação militar em favela; que "bravura" policial é dar tiro nas costas. O Rio chega, dessa forma, a uma situação insustentável. O Estado, e em particular sua capital, são a prova mais acabada de que truculência, em segurança pública, não é sinônimo de eficiência. E que os shows pirotécnicos das grandes operações policiais-militares são apenas isso - shows pirotécnicos.

Geraldo Kassab

Cometi o erro, na coluna de 3/7, de chamar o prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab, de Geraldo Kassab - à la vice-governador de São Paulo, Alberto Goldman, misturei o nome do prefeito e candidato à reeleição pelo DEM e o do candidato tucano, Geraldo Alckmin. Peço desculpas a ambos.

Maria Inês Nassif é editora de Opinião. Escreve às quintas-feiras

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