quinta-feira, 17 de julho de 2008

RECONCILIAR O RIO DE JANEIRO COM A CONSTITUIÇÃO DE 1988
Marcelo Baumann Burgos1


O Rio foi uma das cidades que mais fez pela conquista da Constituição de 88.

Partiu dela boa parte da energia cívica que tomaria conta do país na década de 1980, quando a Cidade se viu tomada por um intenso e diversificado associativismo em torno dos bairros e das favelas, da questão operária, ambiental, da infância, das questões da mulher e racial. Em torno desses movimentos sociais se aglutinaram partidos de centro e de esquerda, além das universidades e dos intelectuais. Toda essa mobilização andou junto com uma participação eleitoral de clara oposição ao regime militar e com a luta pela redemocratização, que culmina na memorável mobilização das Diretas – Já, em 1984, que levou mais de um milhão de pessoas no comício da Candelária.

Tamanha importância na reconstrução do projeto de país fez do Rio um dos principais, senão o principal, centro de animação e inspiração do núcleo dogmático da Carta de 88, cujo espírito foi insculpido no seu generoso preâmbulo, que instaurou os “direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social”.

Ironicamente, vinte anos depois da promulgação da Carta Cidadã, constata-se, com desalento, que nenhuma das grandes cidades brasileiras parece estar tão distante do ideário de 88 quanto o Rio de Janeiro. Com índices insuportáveis de violência, uma sociabilidade marcada pela baixa civilidade, e politicamente loteado em territórios dominados por “donos do pedaço”, o Rio pouco conseguiu se beneficiar dos incentivos à participação democrática inscritos em uma Constituição de notável inspiração municipalista.

Ao contrário, a Cidade parece estar se afastando daquilo que Luis Roberto Barroso chamou de “sentimento constitucional”, quando definiu a capacidade da Constituição para “simbolizar conquistas e mobilizar o imaginário das pessoas para novos avanços”. E, não por acaso, o Rio de Janeiro é uma das cidades onde os mecanismos de judicialização da política e da vida social – última retaguarda da democracia constitucional – mais vêm sendo utilizados, através do recorrente recurso ao Tribunal de Justiça para a apreciação de ações diretas de inconstitucionalidade questionando normas aprovadas pela Câmara, do uso intensivo de ações populares e civis públicas interpelando a improbidade administrativa e a omissão do poder público, da presença marcante do Ministério Publico na regulação de conflitos da cidade, em áreas como meio ambiente, e direitos de minorias e de segmentos fragilizados como crianças e idosos, e, ainda, da crescente dependência da ação fiscalizadora da representação política exercida pelo Tribunal Regional Eleitoral.

De fato, a Cidade parece estar abandonando suas melhores tradições cívicas.

Com uma administração pública afastada da sociedade civil organizada, e com baixa capacidade de reação política através da via partidária, sua população não ocupou, senão muito timidamente, os espaços participativos abertos pela Carta de 88, seja em torno dos conselhos populares – em áreas estratégicas como educação, saúde e infância –, seja através do Plano Diretor, instrumento criado para a regulamentação democrática da vida citadina. Tampouco apostou em canais alternativos para a discussão pública de temas relacionados à “função social da cidade” de que falam a Constituição e o Estatuto da Cidade, como são os fóruns populares, o orçamento participativo, as audiências públicas ou, ainda, as mídias alternativas.

Uma cidade desanimada e amedrontada é o legado das duas últimas décadas, e que, por isso mesmo, acompanha passivamente a tendência de fragmentação territorial, cujos efeitos se fazem sentir na crescente submissão de favelas, loteamentos e bairros às milícias, aos seguranças privados, e a gangsters que usurpam o espaço da política para se apoderar de parcela da Cidade.

Levada ao limite, essa tendência pode destruir a possibilidade de um projeto comum de Cidade.

Prova maior de sua impotência diante desse quando de ameaça à Cidade é a sua crônica incapacidade para superar sua principal questão urbana, que é a relação com as favelas.
Diversamente do que as melhores expectativas acalentadas nos anos de 1980 faziam esperar, as favelas não foram integradas à Cidade, ou pelo menos não foram integradas à Cidade da Constituição. Malgrado o investimento em urbanização e em política e ações sociais, que melhoraram sua infra-estrutura urbana e o acesso a oportunidades e equipamentos coletivos de seus moradores, mais do que nunca as favelas têm sido tratadas como territórios à margem da Constituição e do Estado Democrático de Direito. Ao jugo do tráfico e da milícia, que submete a população desses territórios a toda sorte de arbítrio, se junta a ação imprudente e igualmente arbitrária do Estado, através das polícias civil e militar. Evidências fortes disso são, para citar apenas os mais recentes, os lamentáveis e injustificáveis episódios como o da desastrosa e trágica atuação do Exército no Morro da Providência, que resultou na morte de três jovens; e, principalmente, a mega-operação policial realizada em junho de 2007, no Complexo do Alemão, que envolveu cerca de 1200 policiais, e que deixou um rastro de sangue, com vários feridos, inclusive crianças, e 19 pessoas mortas com claros sinais de execução, além de uma incomensurável seqüela psicológica em uma população de mais 70 mil habitantes. O descompasso entre o custo humano desse tipo de operação e o seu resultado prático fica evidente quando se considera que o saldo da operação teria sido a apreensão de apenas 14 armas.

A experiência vivida pelos moradores do Alemão não encontra nenhum respaldo na Constituição, e nem mesmo se tivesse sido decretado o “estado de defesa”, previsto em seu artigo 136 – o que já seria um absurdo – nem assim os direitos à vida, e à integridade física e psíquica de toda uma população poderiam ter sido violados como foram. O mais grave, porém, é que a afronta à Constituição não encontrou na Cidade, senão em setores isolados, a reação indignada que dela se deveria esperar.

Com o novo ciclo eleitoral, abre-se uma janela de oportunidade para a Cidade, pois uma nova câmara e um novo prefeito poderão jogar um papel importante na sua reanimação, despertando a memória cívica que nela ainda repousa. Para tanto, seria importante que a Cidade conseguisse viver o processo eleitoral, debruçando-se sobre temas municipais como a questão da educação pública, excessivamente fechada no interior de escolas que já não pretendem funcionar como pólos de civismo; a questão do transporte público, há muito refém dos lobbies de empresários e do laissez faire das kombis e vans; da segurança pública, que longe de ser matéria exclusivamente estadual e federal pode e deve ser estruturada segundo uma perspectiva preventiva de alcance municipal; da saúde pública, que reclama políticas de aproximação com a
população; da questão habitacional, que deve incluir a participação dos moradores das favelas na discussão sobre o problema da favelização; e, ainda, da questão metropolitana, que carece de uma atuação mais positiva do Município do Rio na sua condução.

Mas, o que é realmente indispensável nesse momento é reconciliar a Cidade com a Constituição que ela tanto ajudou a criar, através do fortalecimento daquilo que Luiz Werneck Vianna define como as “duas democracias” que ela encerra: a da dimensão participativa e a da dimensão representativa. Por isso, antes mesmo de pensar na reforma das políticas públicas setoriais, será necessário lutar para devolver à Cidade o direito de acesso à Política, da qual ela está momentaneamente privada. Para tanto, será preciso criar mecanismos e espaços de comunicação que permitam que os diferentes segmentos da Cidade voltem a se encontrar e a conversar, incorporando, desta vez, os interesses e as opiniões dos novos seres citadinos oriundos dos segmentos emergentes das favelas e periferias. Somente assim será possível formular uma nova imaginação sobre a Cidade, e construir uma agenda pública que a reconcilie
com os valores supremos de que falam o preâmbulo da Constituição.

1 Sociólogo, professor da PUC-Rio, assessor da UNIG e membro do Centro de Estudo de Direito eSociedade (CEDES/IUPERJ)

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