sábado, 30 de agosto de 2008

Anarquia e sindicalismo


Almir Pazzianotto Pinto
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Poucos movimentos sociais provocaram tanto sobressalto ao País como se deu com o anarcossindicalismo, nas primeiras décadas do século passado. O temor governamental era tamanho que em 7 de janeiro de 1907, imediatamente após a aprovação da primeira lei sindical, o presidente Affonso Penna sancionou o Decreto nº 1.641, que providenciava "a expulsão de estrangeiros do território nacional". Poderiam ser banidos aqueles que comprometessem a segurança ou a tranqüilidade pública e, também, os condenados em tribunais estrangeiros por crimes ou delitos de natureza comum.

Em janeiro de 1921, o presidente Epitácio Pessoa aprovou os Decretos 4.247 e 4.269. O primeiro impunha controles à entrada de estrangeiros considerados perniciosos à ordem pública e nocivos à segurança nacional. O segundo, conforme dispunha a ementa, regulava a "repressão ao anarquismo".

Qualificava-se como anarquismo "provocar diretamente, por escrito ou qualquer outro meio de publicidade, ou verbalmente, em reuniões realizadas nas ruas, nos teatros, clubes, sedes de associações, ou quaisquer lugares públicos, ou franqueados ao público, a prática de crimes tais como dano, depredação, incêndio, homicídio, com o fim de subverter a atual organização social".

As penalidades variavam da prisão celular por seis meses a quatro anos e, nos casos mais graves, autorizava-se o fechamento de associações, sindicatos e sociedades civis, com o exílio dos acusados.

Coube a anarquistas, comunistas, socialistas, da integridade de J. Mota Assunção, Gigi Damiani, Neno Vasco, Oreste Ristori, Edgard Leuenroth, Astrojildo Pereira, a tarefa de estimular a fundação das primeiras organizações proletárias no Brasil. Traziam, dos países de origem, ideais libertários e de sindicalismo revolucionário, inspirados em Bakunin, Kropotkin, Proudhon, Faure, Malatesta, Ferrer.

Quem tiver interesse em conhecer o papel desempenhado pelos anarquistas na criação das entidades sindicais deve consultar as obras de John W. Foster Dulles, Everardo Dias e Paulo Sérgio Pinheiro sobre as lutas sociais travadas, no Brasil, até o início da década de 1930.

Inimigos do Estado, utópicos, radicais, moralistas, anticlericais, dotados de invulgar coragem, os anarquistas - como os antigos socialistas e comunistas - sonhavam com uma sociedade justa, em que todos vivessem de forma decente, livre e digna.

Positivista, estancieiro e caudilho, adversário de todas as variantes esquerdistas, Getúlio Vargas assumiu a Presidência da República em novembro de 1930, comprometido com a idéia da domesticação dos movimentos sociais e do sindicalismo emergente, tarefa iniciada mediante a criação do Ministério do Trabalho. Passo a passo, a liberdade de organização foi sendo estrangulada e substituída pelo modelo corporativo-fascista, tributário dos interesses do Estado. Dele aflorou a figura do pelego, dirigente desprovido de coluna vertebral, submisso às solicitações patronais, vassalo do governo e mantido pelo Imposto Sindical.

A Constituição de 1988 iniciou, mas não concluiu o desmonte da estrutura fascista criada pelo Estado Novo. Ao invés de modelo democrático, sofreu a inseminação de uma espécie corrompida de anarcossindicalismo, caracterizado pela proliferação de entidades artificiais, usadas como balcões de negócios e rampas de acesso a partidos políticos.

A palavra anarquia significa sistema social baseado na absoluta igualdade entre os indivíduos, tendo como aspiração o desaparecimento do poder de coação, inseparável do ordenamento jurídico. No sentido pejorativo e vulgar, porém, o termo traduz um quadro de desordem e indisciplina, pela ausência de lei ou omissão das autoridades.

Na esfera sindical, regredimos de fases em que o sindicalismo era levado a sério para o peleguismo e a anarquia, parteiros de entidades cujos objetivos nada têm que ver com os trabalhadores e os interesses nacionais.

Ante o perigo de ser tido como patrocinador de negociatas envolvendo registros e bases territoriais, o Ministério do Trabalho pensou em reagir, com a aprovação de portaria disciplinadora de ambas as matérias. Como se sabe, porém, portaria é, por definição, "o instrumento pelo qual ministros, secretários de governo, ou outras autoridades, expedem instruções sobre a organização e o funcionamento de serviços e praticam outros atos de sua competência". O ato em causa extravasou os limites das atribuições ministeriais, como deixou patente, em artigo publicado pela revista Trabalho, o desembargador José Carlos Arouca, do Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo (TRT-SP).

O governo pensa em resolver o problema, que aflige empregados e empregadores, os quais já não sabem quem os representa, com quem dialogar, negociar e para quem recolher a Contribuição Sindical obrigatória, tantas se tornaram as invasões de categorias profissionais e de empresas, praticadas por entidades recém-nascidas, nebulosas e dirigidas por pessoas obscuras.

Ensina a Bíblia, contudo, que não se deve coser tecido novo em roupa velha, ou guardar vinho fresco em tonéis envelhecidos. A estrutura sindical herdada do Estado Novo não comporta reforma, e os problemas que apresenta jamais alcançarão solução por meio de portarias.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva perde excelente oportunidade de enriquecer a biografia ao consentir que a estrutura sindical sobreviva cambaleante e corrupta, sob a direção - salvo as exceções de praxe - de notórios e vitalícios pelegos.

Almir Pazzianotto Pinto é ex-ministro do Trabalho e ex-presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST), aposentado

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