segunda-feira, 18 de agosto de 2008

DEU NO JORNAL DO BRASIL


O PRÉ-SAL DA DEMOCRACIA
Wilson Figueiredo



Duas pesquisas simultâneas de opinião pública chegaram juntas à verificação de que o Brasil já tem uma classe média que ultrapassa a metade da população. Não se sabia mas se percebia que alguma coisa se passava na cabeça e no estômago do brasileiro. Apenas ninguém traduziu em conceitos os sinais antes que o IBGE e a FGV dessem a entender que a classe média estava aí para servir econômica e politicamente. A metade pode não ser suficiente mas já é referência digna neste "deserto de homens e de idéias", como observou com desalento Osvaldo Aranha, para engrenar um salto maior do que as pernas. Encheu-se o Brasil de homens mas faltaram idéias originais. Ninguém melhor do que o pequeno burguês, como é visto pelos localizados acima dessa faixa, e invejado pelos localizados abaixo do equador social, para assumir função histórica num país que não foi até hoje apresentado ao futuro, porque fatalmente um dos dois chega atrasado ao encontro e o outro desiste de esperar.

O que levou os dois institutos a atirarem juntos na mesma direção foi a conclusão, um pouco por acaso, para não dizer à brasileira, segundo a qual a parcela situada mais embaixo na escala social, batizada apenas com uma letra do alfabeto, já faz três refeições por dia (as noites não contam). Ora, ao alcançar esta marca, antes de tudo o brasileiro pode ser considerado cidadão e despertar para a responsabilidade política, com a qual ninguém nasce mas adquire, e quanto mais cedo melhor. Afinal, viver à margem da sociedade e dos semelhantes não é opção digna de animal gregário. A cidadania não o livrará, porém, de ser visto pelo foco clínico em que se distingue um pequeno burguês a olho nu, até aprender a usar corretamente os talheres à mesa, vestir-se de maneira apresentável (a ser definida pela moda), a partir das três refeições diárias, exceto nos regimes de emagrecimento. Aí já passa à categoria de burguês. Em seguida, a casa própria a perder de vista, e o automóvel, lhe completam o enxoval. Daí para cima, socialmente falando, a aferição seletiva tem critérios exclusivos. Já o burguês não é classificado apenas pela aparência, e sim pela renda.

Feita a apresentação, podem os políticos dispor, na caçada aos votos, de uma camada preciosa da cidadania emergente, cientificamente explorada, enquanto governo examina o que fazer no pré-sal que o separa do petróleo. Quando os dois se juntarem, pode ser que o Brasil faça pelo menos figura universal em números e se impunha nem que seja como novo rico, sempre melhor do que velho pobre, seja em olimpíadas esportivas ou no polimento da democracia resignada a esperar reformas. Há mais de duas décadas o Brasil está consolidando o estágio caracterizado pela aceitação da vontade política filtrada nas urnas. Tudo indica que o brasileiro se enfarou com a praxe republicana de contestar resultados eleitorais e reconheceu na maioria absoluta a primeira-dama da democracia representativa. Os golpes já deram o que tinham a oferecer e acabaram por tirar mais do que precisavam. As fraudes trocaram de roupa no intervalo. Firmou-se a convicção de que as urnas só passaram a falar a língua da democracia depois que se estabeleceu a certeza de que nada melhor do que um governo de esquerda ser sucedido por um de direita, ainda que (ou principalmente) com aparência de esquerda. Um verdadeiro milagre.

Coube ao governo Lula o mérito histórico de mostrar que esquerda e direita não foram varridas do mapa, e sim que a diferença caiu ao mínimo que poucos percebem. Tanto faz ser de esquerda como ter sido de direita. Sendo fictício o centro, de quatro em quatro anos, a esquerda e a direita vestem um novo sentido suficiente para fazer a felicidade de maior número. A maioria absoluta parece ter sido inventada na medida certa para o Brasil chegar à democracia. O vencedor chega na categoria de hóspede temporário. Os políticos estão em trajetória de baixa na opinião pública, mas ­ como dizia o ministro Delfim Neto no seu tempo - "deixem ir primeiro o bandido, depois a gente manda o xerife".

A atual tentativa democrática já faturou seis mandatos presidenciais, um indireto (de transição) e cinco pelo voto direto, sem o menor risco de retrocesso. É o mais novo capítulo que o ambidestro presidente Lula está rascunhando, ora com a mão esquerda, ora com a direita. Quer vacinar logo a classe média contra surtos de apoliticismo, que foi a dengue do século passado.

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