quinta-feira, 21 de agosto de 2008


DO POETA QUE SE VAI PARA O ORUM
Antonio Risério*

Caymmi, embora único, é um produto típico da mestiçagem e do sincretismo baianos. Um mulato baiano de ascendência italiana (como o também sambista Carlos Marighella, seu contemporâneo), criado entre a capoeira, os afoxés, o samba de roda tradicional do Recôncavo Baiano, cânticos de orixás e formas musicais populares e eruditas da Europa, de Bach a Debussy, para não falar da literatura de Jorge Amado e da poesia de Lorca.

Costumo defini-lo como a expressão estética concentrada da cultura de uma cidade tradicional, a Salvador centenária e senhorial das primeiras décadas do século passado, principal núcleo urbano do recôncavo agrário e mercantil da Bahia. Caymmi, no veio mais baiano de sua obra, fala desse mundo “arcaico”, anterior à expansão nordestina do capitalismo brasileiro. Quando não se planta num lugar de certo sabor tribal, a comunidade de Itapoã, com seus ritmos recorrentes de vida.

E ele pôde ser expressão estética dessa cultura porque tinha uma intimidade essencial com suas linguagens. Com a fala do povo, o “sermo vulgaris” baiano. Com a poesia da capoeira e do samba. Com a religiosidade sincrética local. E sempre procurou recriá-las em sua lírica. Desse ponto de vista, aliás, sua proverbial “preguiça” será melhor vista como método de trabalho.

Caymmi demorava anos para fazer uma canção porque queria a palavra certa no lugar certo, como se ela tivesse estado sempre ali. Como se tivesse nascido naquele momento de uma canção. Essa busca da fluência da palavra cantada faz com que muitas de suas frases pareçam colhidas no ar. Mas elas resultam, na verdade, de um paciente artesanato verbal, feito por um criador que conhece as minúcias do seu ofício.

Interessante também notar que a poesia caymmiana é avessa à metáfora, mas buscando sempre o plástico, a recriação linguística da imagem visual. Além de mostrar um certo gosto pelo substantivo e, aqui e ali, se desmanchar em sufixos diminutivos de ternura.

Um aspecto fundamental (que é também um ensinamento) da criação caymmiana é que ela está, ao mesmo tempo, enraizada em solo ancestral e aberta ao horizonte contemporâneo. Fala de orixás, da arquitetura colonial, e vem do samba mais antigo do Recôncavo. Ao mesmo tempo, dialoga com a poesia modernista e se deixar banhar pelo impressionismo musical francês.

Não nos esqueçamos de que Itapoã era uma comunidade de pescadores místicos e artesanais, mas Caymmi a fez soar pela indústria do disco e pelas ondas eletromagnéticas da Rádio Nacional. Além de ter incursionado bem à vontade por um gênero novo, o samba-canção carioca.

Com o poder de sedução de sua estética mestiça, Caymmi, como João Gilberto, contribuiu para provocar alterações na estrutura da sensibilidade brasileira. E para promover uma mudança profunda e altamente significativa na hierarquia de nossas formas culturais.

Para dar um exemplo, quando ele lançou “Promessa de Pescador”, o canto a Iemanjá tinha algo de estranho e misterioso, de um modo geral, para ouvidos sudestinos. Mas quem diria isso hoje, quando Iemanjá é celebrada de uma ponta a outra do país? Naquela época, o candomblé ainda sofria perseguições policiais. Ainda podia ser tratado em termos de “resistência cultural”. Hoje, templos candomblezeiros são tombados oficialmente como patrimônio do povo brasileiro.

Quando Caymmi soou no Brasil Meridional, trazia a mensagem cálida e ecológica de um lugar idealizado, que parecia parado no tempo e viver em paz, imune a conflitos sociais. Caymmi reforçou assim, nacionalmente, o mito baiano. Era como se falasse de um espaço utópico: o lugar de nossa origem, premiado por belezas arquitetônicas e ambientais, onde vivia uma gente feliz, ensolarada e muito singular.

Naquela época, o mito não deixava de encontrar alguma correspondência na Bahia real. Hoje, não. A Bahia de Caymmi ficou definitivamente para trás. É uma Bahia que soa atualmente, também para os próprios baianos, como uma espécie de utopia. A utopia de um poeta erótico, culinário e ecológico. Poeta de cama, mesa e mar.

* Antonio Risério é poeta e antropólogo, autor de “Caymmi: Uma Utopia de Lugar” e “Uma História da Cidade da Bahia”.

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