sábado, 27 de setembro de 2008

Em busca de um eixo


Marco Aurélio Nogueira
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Foi preciso que Soninha Francine, candidata do PPS à Prefeitura de São Paulo, associasse a Câmara Municipal paulistana a um “balcão de negócios” para que os eleitores se lembrassem de que existem vereadores na capital do Estado. Segundo a candidata, ali é bastante usual a prática de aprovar projetos em troca de cargos, favores e propina. Não foi propriamente uma declaração inédita ou contrária à voz do povo. Mas caiu como uma bomba no plenário do órgão.

A poucos dias do primeiro turno das eleições, os vereadores paulistanos assistem a um prolongamento constrangedor da situação de intransparência em que se encontram, como se entre o Palácio Anchieta e a cidade existisse uma névoa espessa a bloquear a visão dos cidadãos. A opinião pública é indiferente aos vereadores, que são por ela vistos como representantes de si próprios, incapazes de exercer papel positivo na vida urbana, no controle dos atos do prefeito ou no processamento das demandas da população. Poucos eleitores sabem em quem votaram nas últimas eleições, quem foi eleito e em quem votarão no próximo dia 5.

Entre os 55 vereadores paulistanos há, evidentemente, pessoas de mérito, combativas e verdadeiramente preocupadas com a cidade, a começar da própria Soninha, mas não somente dela. Mas estes políticos não parecem ter força e articulação suficientes para dar à Câmara maior peso e relevância, nem para desfazer a imagem negativa e a indiferença popular que a cerca. Se levarmos em conta a complexidade dos problemas urbanos de São Paulo, a dimensão da cidade e as tensões que atravessam o cotidiano de seus moradores, é fácil perceber o prejuízo que se tem com esta situação, que despoja a população de uma instância confiável de representação política.

Devemos, com certeza, relativizar o argumento, pois o problema não se esgota na referência a uma suposta má qualidade dos representantes. Tem que ver com o conjunto do sistema político e não pode ser compreendido fora dele. Expressa a resistência notável de uma cultura política de tipo clientelista e fisiológico que remonta ao Brasil colonial e se reproduz como praga pelas frestas da condição ultramoderna em que passamos a viver, ajudando a dramatizá-la e sendo ao mesmo tempo turbinada por ela. Reflete a perda de eixo das instituições políticas em geral, que ficaram vazias de poder, pobres de imaginação e impotentes diante da força do mercado e da fragmentação social, que não se deixa articular nem dirigir.

Olhando as coisas mais em detalhe, a situação é produto de um sistema eleitoral que personaliza as disputas e incentiva os candidatos a constituírem - para si, e não para seus partidos - nichos de legitimação e conquista de votos que, com o passar do tempo, acabam por corporativizar os parlamentares e atrelá-los a uma lógica particularista cega para o coletivo. Vítimas não inocentes deste sistema, os partidos são por ele arrastados e condicionados. Não participam das eleições como forças ideológicas ou programáticas coesas, não se comportam como expressão de um movimento orgânico dotado de opinião, mas somente como instrumentos de luta pelo poder. Enredados pelos fios perversos do sistema e perdendo inserção na sociedade, deixam de selecionar seus candidatos ou de submetê-los a alguma coerência. Basta dar uma espiada nos personagens que passam pela propaganda gratuita para que se visualize a gravidade da situação. O cenário é marcado pelo mais puro bestialógico.

Os programas eleitorais também dão sua contribuição. São mais midiáticos do que políticos ou educativos. Têm maior qualidade na parte dedicada aos candidatos a prefeito, mas são simplesmente patéticos quando se trata dos candidatos à Câmara. Tratam-nos como secundários, aprisionando-os em camisas-de-força que facilitam as coisas para os mais inexpressivos e tolhem os talentosos. Não abrem espaços para debates que valorizem o trabalho legislativo e expliquem à população a sua importância. Não fomentam a discussão substantiva nem dizem ao eleitor qual a relevância e a posição que tal ou qual candidato tem no partido a que está vinculado.

O círculo se fecha depois das urnas. O sistema não cuida da qualificação dos eleitos. Não agrega nada à bagagem técnica e política com que chegam à Câmara. As sessões plenárias são o que são, não há o que esperar delas. Mas algo poderia acontecer fora delas. No entanto, são raras as tentativas de reproduzir no Palácio Anchieta as iniciativas tomadas, por exemplo, pela Assembléia Legislativa de São Paulo e pelo Congresso Nacional para melhorar a formação e a atualização dos quadros parlamentares, tanto dos políticos quanto dos assessores. Cursos, seminários, debates, conferências, muita coisa poderia ser feita para dar maior consistência às bancadas e aos vereadores.

Haverá, certamente, quem questione este diagnóstico, considere-o exagerado e injusto para com as coisas boas que existem na Câmara. É inegável que lá dentro há vida inteligente e que ao longo do tempo os vereadores têm ajudado a escrever a história política e administrativa da cidade. A Câmara Municipal é um espaço estratégico mal aproveitado, um recurso carregado de potência represada e subutilizada. Tão logo encontre um eixo político que a organize e a politize de forma substantiva, produzirá resultados. Para que isso aconteça precisa entrar na agenda democrática, ser discutida, analisada, criticada.

No mínimo por ter destacado a questão, o alerta de Soninha veio em boa hora. Pode ter sido genérico e impreciso, mas criou um fato e deu aos eleitores uma oportunidade a mais para que reflitam sobre o voto que depositarão nas urnas em 5 de outubro. No curto prazo, não é de prever que a qualidade se altere a ponto de modificar o rumo das coisas. Mas oportunidades existem para serem aproveitadas, e é da concatenação delas no tempo que nascem as grandes transformações.

Marco Aurélio Nogueira, professor de Teoria Política da Unesp, é autor dos livros Em Defesa da Política (Senac, 2001) e Um Estado para a Sociedade Civil (Cortez, 2004)

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