quinta-feira, 2 de outubro de 2008

20 ANOS DE CONSTITUIÇÃO (8)

142 dispositivos à espera de regulamentação
Lourival Sant’Anna e Eugênia Lopes

Dos 250 artigos da Constituição, 133 (53%) foram aprovados com a ressalva de que estavam sujeitos a regulamentação por leis a serem aprovadas no futuro pelo Congresso. Muitos artigos abrigavam mais de uma menção à necessidade de regulamentação. Nos 20 anos desde a promulgação da Carta, 209 dispositivos foram regulamentados, ficando 142 (39%) pendentes. A maior parte dos que restaram provavelmente nunca será regulamentada.

“Questões controversas exigem tempo para reflexão e negociação política, mas 20 anos é um prazo extremamente longo e isso acaba devolvendo ao Judiciário uma força arbitral”, afirma o ministro Celso de Mello, o mais antigo do Supremo Tribunal Federal (STF). “É incompreensível a inércia do Congresso na regulação de preceitos constitucionais necessários ao exercício de direitos básicos.”

Um exemplo da ação do Supremo diante do que Mello chama de “omissão” do Congresso ocorreu no caso do direito de greve dos servidores públicos civis. Coube ao STF definir as regras, usando por analogia a legislação aplicada na iniciativa privada. “A omissão do Congresso culmina por frustrar o exercício geral do direito de greve do servidor.”

Para entender por que tanta lei foi empurrada para o futuro é preciso voltar a 1988. “A Constituição foi feita num momento em que não havia um grupo hegemônico, no meio de uma transição negociada cujo protagonista (o presidente eleito Tancredo Neves) tinha morrido”, recorda Floriano Peixoto de Azevedo Marques, especialista em Direito Público. O presidente José Sarney, o deputado Ulysses Guimarães, os diversos grupos e lobbies tinham uma fatia de poder, mas não o suficiente para conduzir acordos a um desfecho que lhes fosse favorável.

Constituições, como leis, são acordos. Elas costumam tratar apenas de princípios, já que é impossível chegar a acordos de uma vez sobre tudo. Além de impossível, é indesejável, porque questões específicas mudam com o passar do tempo e Constituições devem ser feitas para durar. Com a falta de confiança que havia no futuro da democracia brasileira e no próprio Congresso, recém-saído do ciclo de governos militares, os constituintes - e a miríade de grupos sociais que participaram ativamente da elaboração da Carta - decidiram que era preciso colocar tudo na Constituição.

Como nas outras Constituições brasileiras, uma “comissão de notáveis” entregou um texto básico, do qual os constituintes poderiam partir, mas isso foi rejeitado como “ingerência”, recorda o tributarista Antonio Carlos Rodrigues do Amaral. Ao fim, chegou-se a um “monstrengo”, diz o estudioso, de mais de mil artigos, que entraria para o Guinness como a maior Constituição da história da Humanidade. Para evitar o ridículo, muitos artigos foram escondidos dentro de outros artigos, e é por isso que cada um tem tantos parágrafos, incisos, etc.

Essa “solução” não resolveu o problema político de alcançar acordos para tantos temas. A saída encontrada foi postergar essas decisões. Da fase do “tudo precisa estar na Constituição”, passou-se para o “tudo precisa ser regulamentado”, descreve Azevedo Marques. É por isso que a Constituição está repleta de expressões como “na forma da lei” ou “na forma que a lei estabelecer”. O especialista acredita que, em termos qualitativos, 80% do texto esteja regulamentado. O resto simplesmente ficará sem regulamentar - ou porque não devia ter entrado na Carta, ou porque é impossível de pôr em prática, ou porque não interessa a nenhum governo.

Na avaliação de quatro especialistas ouvidos pelo Estado, nenhum direito importante garantido pela Constituição tem sido violado pela falta de regulamentação do um terço que resta. O vácuo é aproveitado por alguns advogados, principalmente do governo, para deixar de assegurar direitos maximalistas ali incluídos, como as garantias de educação e saúde universais. Demandado na Justiça para cumprir essas obrigações, o Estado alega que falta regulamentação. O ônus político é então jogado sobre o Congresso, responsabilidade difusa que não atrapalha a carreira política de ninguém - ao contrário do que aconteceria se a culpa fosse do Executivo. “O Congresso é um vilão útil”, conclui Azevedo Marques.

Dentre os dispositivos nunca regulamentados estava, por exemplo, o que previa que a taxa de juros anual nunca poderia exceder 12% - um evidente absurdo. “Grande parte dessas leis não havia por que fazer”, avalia Carlos Ari Sundfeld, especialista em Direito Público. “Isso só criou oportunidades para pessoas que têm interesses ficarem invocando essas normas para gerar conflitos.” Sundfeld acrescenta: “Não estamos sofrendo por falta de leis, mas por excesso.”

Celso de Mello admite que há dispositivos supérfluos à espera de regulamentação. Cita o artigo 244, que prevê a elaboração de lei para a “adaptação dos logradouros, dos edifícios de uso público e dos veículos de transporte coletivo atualmente existentes a fim de garantir acesso adequado” a portadores de deficiência física. “Há regras na Constituição que não precisavam estar previstas nela”, diz. “Essa é uma delas: bastava fazer uma lei.”

“Nossa cultura nos leva a transferir os problemas da Constituição para a regulamentação”, afirma Rodrigo Muzzi, especialista em Direito Comercial. “Mas a Constituição será melhor compatibilizada se o Judiciário assumir seu papel de intérprete, como vem fazendo.”

Há casos em que o Congresso decide não decidindo. Emenda constitucional introduziu em 1996 a necessidade de lei para regulamentar a criação de municípios. A lei nunca foi votada. Foi um artifício para estancar, sem proibir explicitamente, a criação desenfreada de municípios, que cria despesas sem receitas correspondentes para atender a interesses políticos locais. Não funcionou. “Não é problema de falta de lei”, diz Sundfeld. “Ao não fazer a lei complementar, o Congresso proibiu a criação de municípios e eles continuam sendo criados por desobediência.” Em outubro de 2007, o Supremo deu prazo até abril para a Câmara regulamentar o dispositivo, sob pena de os municípios criados voltarem a ser distritos.

Alguns dos 142 dispositivos da Constituição de 1988 que estão à espera de regulamentação até hoje

Lei que regula a eleição indireta para presidente da República e vice-presidente, caso ambos os cargos fiquem vagos nos dois últimos anos de mandato (artigo 81)

Direito de greve para servidor público (artigo 37)

Lei que limite a compra de terras por pessoas físicas e jurídicas estrangeiras (artigo 190)

Licença-paternidade (artigo 7)

Criação de municípios (artigo 18)

Autonomia universitária (artigo 207)

Imposto sobre grandes fortunas (artigo 153)

Critérios de avaliação para demissão de servidores públicos (artigo 41)

Criação de fundos para a previdência do servidor público e dos trabalhadores da iniciativa privada (artigos 249 e 250)

Critérios para inelegibilidade de candidatos com ficha suja (artigo 14)

Regulamentação do adicional de remuneração para atividades penosas, insalubres ou perigosas (artigo 7)

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