sábado, 4 de outubro de 2008

20 anos de Constituição


Almir Pazzianotto Pinto
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO


A Constituição da República Federativa do Brasil completa amanhã, 5 de outubro - dia de eleições -, seu 20 º aniversário. A atual Lei Orgânica da Nação é mais longeva que as de 1934, 1937, 1946, 1967 e 1969 - se temos a Emenda nº 1/69 como documento constitucional, como ocorre em relação à Carta Imperial de 25 de março de 1824, editada por dom Pedro I, e a Carta de 10 de novembro de 1937, decretada por Getúlio Vargas.

A Constituição de 1824 foi mais do que simplesmente duradoura, pois assegurou estabilidade ao Império e conviveu com o período da Regência, tida como a “experiência republicana”, entre 7 de abril de 1831, data da abdicação, e a ascensão ao trono de dom Pedro II, em 1840. Recebeu a emenda determinada pelo Ato Adicional aprovado pela Lei nº 16, de 12 de agosto de 1834, interpretada mediante a Lei nº 105, de 12 de maio de 1840.

Contribuiu decisivamente para a longevidade de 65 anos, segundo a observação de Octaciano Nogueira, o artigo 178, cujo texto rezava: “É só Constitucional o que diz respeito aos limites, e attribuições respectivas dos Poderes Politicos, e aos Direitos Politicos, e individuaes dos Cidadãos. Tudo, o que não é Constitucional, póde ser alterado sem as formalidades referidas, pelas Legislaturas ordinarias.”

Redigida sob poderosa influência de Ruy Barbosa, a Constituição republicana de 1891 vigorou por 40 anos, sendo emendada unicamente em 1926. Denominada “Constituição Literária” pelo ministro Aliomar Baleeiro, tinha 94 artigos, acrescidos de oito disposições constitucionais transitórias. Não obstante a clareza e o estilo invejáveis, ao abandonar o modelo centralizador, inerente ao Império, investiu os Estados de acentuado grau de autonomia e criou governadores fortes, aptos a desafiarem o governo central. Incapaz de oferecer soluções para as crises que abalaram a Velha República, sucumbiu diante da Revolução de 1930.

Da Constituição de 1934 se pode dizer que nasceu morta. Getúlio, chefe do governo provisório, desejava permanecer no poder. Impedido de se reeleger, deu o golpe de 10 de novembro de 1937 e exerceu soberanamente a Presidência durante 15 anos, até ser deposto em 29 de outubro de 1945.

Traço dominante das Constituições tem sido o espaço vazio entre elas e o povo. Este assistiu - atônito e bestificado, como observou Aristides Lobo no episódio da Proclamação da República - a golpes, sedições militares e mudanças de regimes e de governos, em 1930, 1937, 1945, 1954, 1964, 1969 e 1985.

Pensada e redigida sob inspiração revanchista e utópica, a Constituição de 1988 passou ao largo das experiências de concisão e objetividade deixadas pela de 1824. A Assembléia Nacional Constituinte visou a torná-la original, como escreveu o dr. Ulysses Guimarães no preâmbulo A Constituição Coragem, ao destacar que, “diferentemente das sete Constituições anteriores, começa com o homem. Graficamente testemunha a primazia do homem, que foi escrita para o homem. Que o homem é o seu fim e sua esperança. É a Constituição Cidadã”.

Faltou-lhe, ademais, projeto com os princípios básicos que lhe indicasse os rumos, ausência não suprida com a indicação de inócuo Conselho de Notáveis.

A Constituinte foi composta segundo os critérios prevalecentes no Congresso Nacional: reduzido número de cardeais e numeroso baixo clero. O artificialismo das legendas partidárias deu, por sua vez, ensejo à eleição de pessoas de nulos ou escassos conhecimentos da técnica constitucional, carentes de experiência, inconsistentes no plano das idéias, convivendo com astutos profissionais da política, carreiristas e oportunistas.

Da Torre de Babel em que o Congresso se converteu não se poderiam aguardar bons frutos. Normas programáticas sobre proteção do emprego, modernização da estrutura sindical, direito de greve do servidor público, defesa do trabalhador contra a automação adormecem à espera de regulamentação. Em outros aspectos a Constituição é inoperante, como ao afirmar que saúde, educação, segurança são direitos de todos e dever do Estado. Assistência médico-hospitalar, acesso às boas escolas, proteção contra o crime são privilégios de quem pode pagar. O cidadão que não dispõe de meios para recorrer a médicos e hospitais de renome aguardará a vez no Sistema Único de Saúde (SUS), em longas filas de espera.

Prescrições referentes a meio ambiente, família, infância, adolescência, idosos são modelos da prolixidade constitucional inócua. Quem desconhece as queimadas e a extinção da fauna selvagem? Quem ignora a desagregação da família e o abandono da infância, responsáveis pela criminalidade entre adolescentes? Quem não sabe da violência contra crianças ou não ouvir falar da prostituição de meninos e meninas, do uso de menores no tráfico de drogas?

Corrigida por 62 emendas - uma das quais invalidou o princípio do direito adquirido e outra que permitiu a reeleição de chefes do Poder Executivo -, a Constituição conserva, não obstante, o cancro da medida provisória. A reiteração de notícias acerca do terceiro mandato presidencial é manifestação alarmante da fragilidade da lei que deveria estar acima da vontade dos governantes, ser respeitada, estável e duradoura.

A Constituição não se limitou às regras sobre a estrutura do Estado e os direitos dos cidadãos. Sugeriu o nascimento, como produto de simples “vontade política”, da sociedade ideal e utópica, titular de ilimitados benefícios, independentemente do esforço de cada um e da cooperação de todos.

Enfim, com todos os seus senões, é a Constituição que temos e devemos preservar.

Almir Pazzianotto Pinto foi ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST)

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