sábado, 25 de outubro de 2008

As restrições mentais do governo


Villas-Bôas Corrêa
DEU NO JORNAL DO BRASIL


Brasília não tem nenhuma culpa pela crise moral e ética que assola os três poderes. Uma cidade, um país é responsável pelos erros e falcatruas dos governos, sejam os que conservam a máscara democrática ou os que chafurdam nos pântanos das ditaduras.

O único caso que eu conheço de um país ser apontado como desequilibrado mental está no fundo do baú da memória dos velhos tempos do Congresso funcionando no Rio, ainda capital, e que o saudoso deputado Hermes Lima gostava de contar nas rodas de conversa na sala do café. Em reunião de uma Comissão para emitir parecer sobre uma proposta de reforma agrária, o venerando senador Clodomir Cardoso aparteou, sustentando que nenhum país realizaria um projeto como aquele. Hermes rebateu: "Este é o modelo do México". E Clodomir em cima da bucha: "Ora, o México! O México é maluco!".

Já não se pode dizer o mesmo das restrições mentais, expressão cunhada pelo talento do jornalista, escritor, acadêmico e autor das melhores prosas da crônica deste país, o mineiro Otto Lara Resende. Ao redigir o texto da entrevista do marechal Teixeira Lott, logo depois do golpe militar de 9 de novembro de 1955 – que derrubou o presidente João Café Filho, acusado de conspirar contra a posse do sucessor eleito, Juscelino Kubitschek – Otto hesitou diante da rudez da confissão do ministro da Guerra demitido pelo presidente em exercício, deputado Carlos Luz, de que mentira ao negar o fato ao general Fiuza de Castro, já nomeado para substituí-lo, quando perguntou, pelo telefone, se havia algum movimento de tropa. Otto buscou o sinônimo de mentira e não achou nenhum na longa lista de qualquer dicionário. E criou as restrições mentais, de longo consumo nas conversas políticas, com as mais variadas aplicações.

Retomamos o fio da meada. Brasília nasceu perfeita, em parto prematuro, antes de estar pronta para atender à justa urgência da volta do JK-65 da sua perdição. Riscada numa folha de papel pela genialidade de Lúcio Costa, com o traçado revolucionário da Praça dos Poderes reunindo as sedes do Executivo, de Legislativo e do Judiciário e onde começam as lar gás avenidas da Esplanada dos Ministérios, do setor bancário e as vias de toda uma cidade. E com o gênio de Oscar Niemeyer solto na criação de prédios e palácios, que são jóias da humanidade.

Posso depor, pois testemunhei os debates acalorados na Câmara dos Deputados, no Palácio Tiradentes. E mantenho duas convicções de mais de meio século. A primeira é que a oposição udenista, com a sua brilhante bancada de oradores, como nunca mais se viu outra igual ou parecida, só não obstruiu até o último fôlego a aprovação da mudança para Brasília porque não acreditou que JK realizasse as obras a tempo de inaugurá-la. E a segunda, por medo do deputado udenista de Goiás, Emival Caiado, com físico de levantador de peso e fanático da transferência da capital para terras vizinhas ao seu Estado. Para o deputado Emival Caiado, a mudança da capital era um dogma, que não admitia dúvida ou discussão. Mas, se Brasília não mentiu, muitos apelaram para as restrições mentais para derrubar, uma a uma, muitas das apregoadas vantagens de mudança, que esvaziou o Rio e negou o sonho dos seus fundadores.

Nos debates parlamentares, os benefícios da mudança para o serrado, além das obviedades do estímulo ao desenvolvimento da região, da interiorização do progresso, os sinos bimbalhavam o sossego, a tranqüilidade de uma capital prevista e construída para acolher uma população de, no máximo, 500 mil habitantes, com previsão para o estouro de 600 mil.

O Executivo, o Legislativo e o Judiciário, nos amplos palácios, com largos espaços para jardins, garantiriam o sossego, a tranqüilidade do interior brasileiro para o exercício da atividade de cada um, com a independência e a harmonia facilitadas pelas condições ideais. Mentiriam em nome de Brasília. A capital, que o meu compadre e saudoso amigo José Aparecido de Oliveira, quando governador, conseguiu incluir entre os patrimônios da Humanidade, bate recordes vergonhosos do estouro populacional e pode enrubescer de vergonha com os seus 2 milhões, cinqüenta e um mil, cento e quarenta e seis habitantes do último censo. Nada funciona na cidade cercada por favelas, pela violência, pelos traficantes e com todos os vícios do progresso.

A conversa não acaba aqui.

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