quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Dois pesos, duas medidas


Maria Inês Nassif
DEU NO VALOR ECONÔMICO

No dia 29 de abril de 2002, os bancos de investimentos Morgan Stanley Dean Witter e Merrill Lynch recomendaram a seus clientes que reduzissem a exposição a títulos brasileiros, e o Salomon Smith Barney reduziu a projeção do Ibovespa de 2002. No dia 2 de maio, foi a vez do ABN Amro reduzir baixar a recomendação de negócios com o Brasil; no dia 3, o Santander; no dia 6, o Goldman Sachs. Em poucos dias, foi dada a largada para um longo ataque especulativo contra o país que só viria a arrefecer, de fato, quando o mercado soube os nomes dos escolhidos pelo presidente eleito apesar das pressões do mercado, Luiz Inácio da Silva (PT), para comandar a economia e o Banco Central - isso, já no final do ano. O governo americano e o Fundo Monetário Internacional (FMI) atuaram intensamente para que o governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB) contornasse a crise que se fabricou em torno de um processo eleitoral em que o petista era o preferido sem se distanciar do modelo político neoliberal - e para que o candidato com maiores chances de vitória se comprometesse com a manutenção dessa política.

O jogo de pressões foi pesado e claro. O então secretário do Tesouro americano, Paul O"Neill, no meio das turbulências que abalavam o país, declarou que se opunha à concessão de um empréstimo de emergência do FMI. "Jogar dinheiro do contribuinte dos EUA na incerteza política do Brasil não me parece brilhante", afirmou. Teve que se desdizer depois por pressão do Departamento de Estado - e se tratava de um desembolso de US$ 10 bilhões de um crédito que o Brasil já tinha. Somente a seguradora AIG, durante essa crise de 2008, levou US$ 85 bilhões do dinheiro do contribuinte dos EUA.

O atual secretário do Tesouro, Henry Paulson, era presidente do Goldman Sachs em 2002 - a instituição de onde emergiu, como uma provocação, uma fórmula feita por um analista, Daniel Tenengauzer, batizada por ele de Lulômetro, que "media" o medo que Lula causava no mercado. A direção do banco repreendeu o funcionário, mas só depois que o governo brasileiro reagiu.

Os jornais noticiaram, com furor, as análises dos bancos e as opiniões de operadores de mercado sobre as eleições brasileiras, com as devidas interpretações sobre o discurso de Lula e os documentos do PT. Em "Diretrizes para um Programa de Governo", aprovado pelas instâncias partidárias, os "players" apontavam como evidência de que o PT não iria respeitar contratos, caso vencesse a disputa para a Presidência, um trecho onde se definia o compromisso com uma "profunda alteração no perfil do gasto público envolvendo a redução da vulnerabilidade externa e a recomposição das finanças públicas". De alguma forma, Lula cumpriu a promessa. Não parece, todavia, que isso tenha sido a socialização do país, nem uma adesão ao "chavismo" que os bancos acusavam em 2002.

Os organismos multilaterais, o governo americano e os analistas de bancos impunham suas exigências de condução de políticas econômica e monetária. O subsecretário de Tesouro dos EUA, John Taylor, jogando nas costas do processo eleitoral as turbulências econômicas do país, disse que os EUA esperavam que os chamados "fundamentos" da política ortodoxa de FHC fossem mantidos, independentemente de quem fosse o eleito ("EUA dizem esperar "governo clone" de FHC", FSP, 13/6/2002).

As contas do país se deterioraram de tal forma, ao final de um período especulativo que entrou por todos os poros das fragilidades da economia brasileira, que quando o eleito Lula e os petistas que se envolveram com a formação do governo analisaram os números levantados pelo governo de transição, não restava outra alternativa senão "manter o conservadorismo fiscal e monetário", conforme recomendara, em seminário do Banco Central, o representante do FMI no Brasil, Rogério Zandamela, em junho (entre outras muitas e insistentes recomendações "de fora"). O primeiro governo Lula não teve escolha, pelo menos até tirar o pé do país da lama em que se afundara num processo eleitoral.

Esses atores são quase os mesmos da crise americana. A pressão do mercado, do governo dos EUA e dos organismos multilaterais sobre o Brasil, em 2002, foram no sentido de manter o país que era o aluno exemplar do neoliberalismo no caminho das "reformas estruturais" e da ortodoxia. O empréstimo do FMI tratou de garantir solvência ao país para resolver suas pendências com o capital especulativo que investia em títulos de sua dívida. Agora, a pressão do mercado financeiro e dos demais países sobre os EUA é para que garanta a solvência de um sistema financeiro, o que só ocorrerá se for jogado para debaixo do tapete, pelo menos provisoriamente, o receituário neoliberal.

Seria ingênuo cobrar coerência do mercado financeiro, ou imaginar que a crise brasileira de 2002 e a americana de 2008 fossem tratadas da mesma forma. Mas não existe nenhuma lei internacional que impeça que se cobre a isonomia - teoricamente, esse é um direito. O presidente Lula, em Nova Iorque, na semana passada, teve o seu dia de lavagem de alma. "Eu cobrei do G8, cobrei do FMI e do Banco Mundial que estava na hora de eles se manifestarem, porque quando é um país pequeno que tem crise, todos eles dão palpite. Quando é a maior economia do mundo que entra em colapso, a gente não vê nenhum palpite deles", reclamou. Deu-se ao direito de também orientar política econômica alheia, decretando o fim do neoliberalismo, pois a crise "demonstra que também no sistema financeiro é preciso ter seriedade, é preciso ter ética, não é apenas o cidadão comum que tem que ser ético". E, por fim, recomendou aos dois candidatos presidenciais uma "Carta ao Povo Americano" expressando compromissos para acalmar o mercado. A "Carta ao Povo Brasileiro" divulgada pelo PT em junho de 2002 foi uma exigência do mercado financeiro, que especulava que Lula romperia contratos e jogava o dólar nas alturas. Recomendar a McCain e a Obama o mesmo foi uma pequena provocação. Um pequeno prazer antes de voltar ao Brasil e esperar para ver o estrago que a crise americana vai fazer no nosso quintal.

Maria Inês Nassif é editora de Opinião. Escreve às quintas-feiras

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