domingo, 5 de outubro de 2008

Dores da recessão


Merval Pereira
DEU EM O GLOBO


NOVA YORK. A cada dia que passa, a crise se mostra muito mais grave do que se pensava, e mesmo a aprovação do pacote econômico não traz a promessa de tranqüilidade futura, mas apenas a sensação, não a garantia, de que ganhamos tempo para impedir que a crise se transforme em um buraco negro que engoliria todo o sistema financeiro, que continua sofrendo as conseqüências desses anos todos de "exuberância irracional" descontrolada. Do lado financeiro, não apenas nos Estados Unidos, mas também na Europa e nos países emergentes como Brasil, o fim dos bancos de investimentos ainda respinga nos bancos comerciais, na forma mais branda de enxugamento de créditos, ou mesmo na consolidação de empresas para evitar a falência pura e simples.

A incógnita é a China, onde a falta de transparência nas contas públicas pode esconder fragilidades desconhecidas, especialmente no seu sistema financeiro. O certo é que a recessão a nível global fará com que a demanda chinesa se arrefeça nos próximos anos, e a redução de seu ritmo de crescimento, mesmo que passe para 6% ou 7%, terá repercussões nos preços das commodities no mercado internacional, afetando de maneira direta a economia de outros países emergentes como o Brasil.

Nesses, a falta de dinheiro para investimento será a tônica dos próximos meses ou mesmo anos, o que, no nosso caso específico, pode atrasar a exploração dos campos de petróleo do pré-sal, tesouro que necessitaria de investimentos altíssimos para se transformar em realidade. Menos mal que, mesmo que se confirme a dificuldade momentânea de investimento, continuará com seu potencial intacto à espera de melhores dias.

Do ponto de vista produtivo, a boa notícia seria que a economia dos Estados Unidos não entrasse em recessão, como já seria o caso atual da Europa e do Japão, mas à medida que o tempo passa, essa estimativa ganha cada vez mais contornos de torcida do que de estimativa baseada em dados concretos.

De qualquer maneira, há um consenso entre os analistas de que a desaceleração da economia americana será longa, sendo certo, até onde é possível prever-se em uma situação como a atual, que não cresce até pelo menos o segundo semestre de 2010.

Essa constatação coloca a crise atual com uma característica basicamente diferente de todos os ciclos de retração passados, que foram marcados pela queda rápida da economia dos Estados Unidos, seguida de uma rápida recuperação.

Os próximos passos após a aprovação do pacote econômico ainda terão que ser de estímulo a setores básicos como o imobiliário, que deu início a todo esse processo de decomposição da economia norte-americana.

O economista Tomas Trebat, do Centro de estudos Brasileiros da Universidade Columbia, em Nova York, considera que a próxima decisão do Congresso, antes até mesmo de discutir as novas regras de regulação do sistema financeiro, o que deverá ser feito pelo Congresso eleito em novembro junto com o novo presidente, será reforçar os incentivos para os proprietários americanos que ainda estão em dificuldades para pagar suas hipotecas, fazendo com que o mercado imobiliário continue mergulhando em um poço sem fundo de desvalorização dos preços.

Além da questão financeira, o problema social provocado por essa bola de neve que continua rolando será um dos grandes desafios do próximo governo, especialmente em alguns estados como a Califórnia e a Flórida. No estado governado por Arnold Schwarzenegger, por exemplo, já existem verdadeiros acampamentos de sem-teto, que se espalham por barracas e até mesmo em estacionamentos públicos, com os antigos proprietários dormindo dentro de seus automóveis e sem pagar pela permanência.

Isso os que ainda conseguiram ficar com os automóveis, que servem de casa, na impossibilidade também de encher o tanque com o preço da gasolina. Não é apenas a tragédia social em si, mas a quebra da auto-estima do cidadão médio americano que está aumentando a insegurança com o futuro.

Pode ser estranho para quem não está acostumado com a dependência do americano comum ao automóvel, mas o exemplo que o candidato democrata a vice Joe Biden deu no debate de quinta-feira, do sujeito que disse a ele que não sabia mais quanto custava encher o tanque de gasolina de seu carro porque há muito tempo não tinha dinheiro para fazer isso, é sintomático da crise e, sobretudo, da mudança de atitude que o próximo presidente terá que comandar na sociedade para superar essa dependência.

Da mesma maneira, a candidata republicana Sarah Palin tocou em uma questão central da crise americana, a culpa que o cidadão comum tem pelo endividamento excessivo de cada família.

É claro que o estímulo ao consumo desenfreado está no centro da crise, e os empréstimos sem a correspondente garantia só ocorreram num ambiente financeiro alavancado exageradamente. Mas é a partir da crise que o cidadão americano está aprendendo que algumas certezas com que vivia, como a de que sua casa própria estará sempre valorizando e que seu aumento salarial virá sempre, não são verdades absolutas.

Todos esses hábitos e essas certezas, que terão que ser modificados, trazem insegurança à sociedade americana, fatores psicológicos que também terão que ser manejados com cuidado pelo futuro presidente da República.

O candidato democrata Barack Obama já começou a acenar com programas de incentivo a obras públicas à semelhança ao New Deal comandado pelo então presidente Franklin Roosevelt para tirar o país da Grande Recessão em 1932.

Não há dúvida de que quem assumir a Presidência em 20 de janeiro do ano que vem terá pela frente um país sentindo cada vez mais os efeitos de uma recessão econômica que a cada dia mais se torna realidade.

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