domingo, 5 de outubro de 2008

Reflexão sobre o óbvio


Ferreira Gullar
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

O voto desinformado favorece o demagogo, o político que só visa suas próprias vantagens

NÃO TENHO nenhuma dúvida de que o homem é, mais que tudo, um ser cultural e, conseqüentemente, sustentado pelos valores que inventou e nos quais acredita e segundo os quais se comporta. Esses valores, por sua vez, determinam as semelhanças e diferenças entre os indivíduos, ainda que, em geral, os valores fundamentais sejam idênticos. Por exemplo, o sentido de justiça é um valor comum a todas as culturas. Dizer que o homem é um ser cultural não significa que todos os membros de determinadas sociedades sejam igualmente cultos. Basta lembrar-se do Brasil, onde a disparidade dos níveis culturais das pessoas é enorme, pois vai desde aqueles que têm curso universitário até os que mal sabem ler e que são a maioria.

Se o homem é um bicho cultural, que vive num mundo cultural, a diferença de conhecimento entre os indivíduos -sem falar na capacidade intelectual que é também desigual- os situa diferentemente na sociedade, ou seja, quanto mais conhecimento, quanto mais competência, melhores ganhos, maiores possibilidades de enriquecer e melhor posição na hierarquia de poder dentro da sociedade.

A conclusão lógica a tirar daí é que a capacidade intelectual e o grau de conhecimento são fatores de desigualdade entre os membros de qualquer comunidade humana. E essa desigualdade se expressa, não apenas no desempenho técnico e profissional, como em todas as demais atividades e opções que a vida social oferece ou exige de cada um.

As pessoas são iguais em direito -ou deveriam ser- mas não em qualidades. Dizer isso equivale a afirmar o óbvio, uma vez que todos sabem que, dos muitos jovens que se dedicam, por exemplo, a jogar futebol, raríssimos se tornam um Pelé ou um Ronaldo; dos muitos que se dedicam à música, raríssimos se revelam talentosos como Tom Jobim ou Pixinguinha -e o mesmo se pode dizer dos que se dedicam às diferentes atividades profissionais. Isso é sabido de todo mundo, mas, em certas circunstâncias, se faz por ignorá-lo ou quase se torna proibido dizê-lo.

A tese de que os homens são iguais é sagrada e se disseminou de tal modo que até a vanguarda artística chegou a afirmar que "todo mundo é artista", como se as qualidades inatas que tornaram Da Vinci e Van Gogh pintores geniais fossem apenas preconceitos classistas que a burguesia inventou, para também aí impor a discriminação e a desigualdade.

A tese da igualdade, que nasce com a Revolução Francesa e se aprofunda na pregação de Rousseau, Diderot e Babeuf, radicaliza-se com a exploração selvagem que o capitalismo industrial impõe à classe operária durante o século 19. Em contraposição à desigualdade que levou os trabalhadores ao desamparo e à miséria, surgiu um conceito de igualdade que tanto tem de generoso quanto de irreal, cuja formulação mais extremada é a utopia da sociedade sem classes, em que a riqueza social seria distribuída, não mais "a cada um segundo sua capacidade" e, sim, "segundo a sua necessidade", o que implicaria num tipo de organização social que o próprio Marx não se atreveu a definir.

Na prática, essa concepção utópica de igualdade -que desconhece as qualidades individuais distintas- implicaria em nivelar as pessoas por baixo, já que o talento e a operosidade não se encontram igualmente em todos. Se é correto entender que tais qualidades não fazem de seus detentores seres superiores aos demais, ignorá-las resultaria tratá-los injustamente e, ao mesmo tempo, impedir a sociedade de desfrutar da contribuição que lhe dariam.

Mas, mesmo se se põe de lado os indivíduos superdotados, não seria justo remunerar igualmente o operário eficiente e o relapso. Se as pessoas devem receber não por capacidade e, sim, segundo a necessidade, não há por que empenhar-se em alcançar excelência do desempenho.

A noção equivocada de igualdade contradiz até mesmo o propósito da sociedade de estender a educação e o conhecimento a todos os indivíduos. Chega-se a ponto de desconhecer a diferença entre o voto consciente do eleitor informado e o voto de quem mal conhece os problemas sociais. Levantar essa questão é visto como preconceito, muito embora todos saibam que é mais fácil perceber o que diz respeito a seu interesse imediato do que compreender as necessidades mais complexas da cidade ou do país.

Por isso, o voto desinformado favorece o demagogo, o político que só visa suas próprias vantagens, enquanto alija da vida política aqueles que agem com espírito público. Essa é uma grave ameaça à democracia, e só pode ser superada elevando-se o nível cultural e o grau de consciência dos cidadãos.

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